Nunca ninguém absorveu Lisboa no cinema como o suíço
Alain Tanner o fez em “Dans la ville blanche”. Onde podemos dizer, e
principalmente sentir, que o actor principal, o motivo, o centro, é a cidade e
toda a matéria orgânica que a enforma. Uma massa espessa, maleável, pantanosa,
plana e esburacada, como um borrão esventrado, que contradiz completamente o título
ou qualquer programa, para imagens e sons serem arrancados como de um grande,
fundo e temível buraco negro. Que Bruno Ganz ande viciado nos 8 mm da sua
máquina, que produz mais grão ainda que a 35 do realizador, serve para acentuar
mais a escuridão e a perdição, que é resumida ou obscurecida no plano
derradeiro.
Sem dúvida que existe ali uma finíssima linha
narrativa, uma torneirinha romanesca aberta no mínimo, que conta qualquer coisa
como o desembarque de um engenheiro alemão numa grande cidade, a sua entrada a
matar por ela adentro, entre pontapés a galinhas e borlas nos eléctricos, para
se perder de amores por uma jovem tão selvagem como ele e que ainda por cima
lhe diz que o mundo gira ao contrário. Entre o novo amor e o que deixou na sua
terra circulam filmes em forma de cartas, confissões, desgraças, para tudo ao
longo deste hiato em terras de ninguém se tornar num grande abstracto da existência
que é assim designado branco, essa solidão de todos os tempos e de todos os
espaços que se distende inexoravelmente como a música da harmónica do velho
Oeste trauteada por Ganz até à ladainha.
Duas criaturas comidas pelo infinito, porque
tiveram essa consciência dele e deram os passos proibidos, que se atraíram,
disponibilizaram e consumiram. Preciosidades ou o seu contrário no meio de um degredo
que é já o da incomunicabilidade e o de cada um por si. Fogacho que poderá
ficar como validação de uma passagem ou um motivo para viver. Recaída nos pecados
e obrigações da consumada sociedade de quem parecia completamente livre.
Encontro de duas poesias afins que se interlaçaram e desentrelaçaram algures e das quais aquele universo sem sombra de Deus
parece ter tido pena. Personalidade
traída ou apenas mais um estratagema do destino jogador. Talvez algo disto,
provavelmente muito pouco. Sem certezas.
Como se tudo respirasse. Pode-se, ou não se
pode, entrar por caminhos vários da pintura, do expressionismo ao
impressionismo, de um romantismo pesaroso até ao pontilhismo, da mais ampla
abstracção até à fúria sanguinária de Pollock ou à plasticina. Ou os respirares de Corot, ou as
angústias de Van Gogh. Ou não se pode, pois era preciso nunca ter visto mais
nenhum filme deste igualmente solitário Tanner para se entrar a fundo em tais
modalidades. Uma arte que é um ser vivo autónomo.
Porque vê-se e revê-se esta bomba orgânica, este
furador de olhos e de tímpanos que se deve experienciar o mais junto possível
da podridão, esta sanguessuga, e o que me atinge é sempre essa pasta que se
principalmente negra também percorre vastas gamas do espectro escuro, incendiário,
gélido. Onde a câmara de Tanner perscruta, apalpa, espanta-se, roça-se no
turbilhão e em sinais de fogo tais que não percebe como ali se pode ser tão
sozinho. Um pulsar de onde o inorgânico parece estar ausente, onde a latência é
eléctrica e os poros vilipendiam a pele praticamente invisível dos ecrãs que
acolhem isto.
Há montes de Lisboas, as calmas e furiosas, as fantasmáticas
e as límpidas, mas assim nunca vi. Desde logo a de Paulo Rocha, que se muito
nervosa é como que aplainada pelo seu lirismo ultra contido à espera do kaboom;
a de “Belarmino” que se é das que mais se aproxima a Tanner é também das que
mais se afasta pela vontade do documento e da invenção; a do magnífico e
esquecido “O Fio do Horizonte”, do mesmo Fernando Lopes, que se dolorosamente
viva é atravessada pela plástica e metafísica da banda desenhada e pelos fumos
funestos do filme negro americano; a de João César Monteiro, infecta, abjecta e
generosa, por isso mesmo ligada ao quotidiano desse homem e a uma poesia
indizível; a de Pedro Costa, trancada nos quartos da juventude e nos becos de Tourneur;
ou a de Manuel Mozos, esfaimada de personagens e de histórias, vibrante mas tão
intima.
“Dans la ville blanche” é feita em muitas mais
dimensões do que as três da moda, com mais perspectivas, camadas e níveis do
que os jogos de computador mais vendidos, sonoramente absorvente até ao
afogamento e com vias e atalhos que os surrounds mais evoluídos nem sonharam, e
de uma interactividade que reduzem um Peter Greenaway e os seus esquemas ao
vácuo e a menino de coro. É ver então como o João Canijo de “Sangue do meu
sangue” confunde o espaço e abafa as pessoas, em busca de um realismo que feito
assim só se sente pelo lado autoritário e por isso não humanista do realizador,
onde só fica, paradoxalmente, uma técnica e um exibicionismo que se contradiz
ao fundo.
Em Tanner, onde curiosamente Canijo fez
assistência, há uma frontalidade panorâmica que vai em busca do batimento
cardíaco que está nos corpos, no betão e nas águas, na relação e na colisão do
homem com o meio, onde tudo interessa pois tudo afecta tudo e existe, pequeno e
incomensurável, mar e putas, o ar do tempo e as ruínas. De um arejamento na
aflição ou de uma gravidade na pacificação. Tanner, Rivette, Ferrara, onde o
que bate e o que se busca se passa lá dentro do enquadramento que se vai
fatiando ao mundo e não do lado geek do domínio dos meios. Não se fechando os
olhos ao facto de o mundo ter nascido antes das máquinas. A vida a viver ou a
morrer de onde a câmara estará sempre no sítio certo. Lição e dádiva de um homem
do mundo.
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