sábado, 18 de maio de 2013


Nunca ninguém absorveu Lisboa no cinema como o suíço Alain Tanner o fez em “Dans la ville blanche”. Onde podemos dizer, e principalmente sentir, que o actor principal, o motivo, o centro, é a cidade e toda a matéria orgânica que a enforma. Uma massa espessa, maleável, pantanosa, plana e esburacada, como um borrão esventrado, que contradiz completamente o título ou qualquer programa, para imagens e sons serem arrancados como de um grande, fundo e temível buraco negro. Que Bruno Ganz ande viciado nos 8 mm da sua máquina, que produz mais grão ainda que a 35 do realizador, serve para acentuar mais a escuridão e a perdição, que é resumida ou obscurecida no plano derradeiro.

Sem dúvida que existe ali uma finíssima linha narrativa, uma torneirinha romanesca aberta no mínimo, que conta qualquer coisa como o desembarque de um engenheiro alemão numa grande cidade, a sua entrada a matar por ela adentro, entre pontapés a galinhas e borlas nos eléctricos, para se perder de amores por uma jovem tão selvagem como ele e que ainda por cima lhe diz que o mundo gira ao contrário. Entre o novo amor e o que deixou na sua terra circulam filmes em forma de cartas, confissões, desgraças, para tudo ao longo deste hiato em terras de ninguém se tornar num grande abstracto da existência que é assim designado branco, essa solidão de todos os tempos e de todos os espaços que se distende inexoravelmente como a música da harmónica do velho Oeste trauteada por Ganz até à ladainha.

Duas criaturas comidas pelo infinito, porque tiveram essa consciência dele e deram os passos proibidos, que se atraíram, disponibilizaram e consumiram. Preciosidades ou o seu contrário no meio de um degredo que é já o da incomunicabilidade e o de cada um por si. Fogacho que poderá ficar como validação de uma passagem ou um motivo para viver. Recaída nos pecados e obrigações da consumada sociedade de quem parecia completamente livre. Encontro de duas poesias afins que se interlaçaram e desentrelaçaram algures e das quais aquele universo sem sombra de Deus parece ter tido pena. Personalidade traída ou apenas mais um estratagema do destino jogador. Talvez algo disto, provavelmente muito pouco. Sem certezas.

Como se tudo respirasse. Pode-se, ou não se pode, entrar por caminhos vários da pintura, do expressionismo ao impressionismo, de um romantismo pesaroso até ao pontilhismo, da mais ampla abstracção até à fúria sanguinária de Pollock ou à plasticina. Ou os respirares de Corot, ou as angústias de Van Gogh. Ou não se pode, pois era preciso nunca ter visto mais nenhum filme deste igualmente solitário Tanner para se entrar a fundo em tais modalidades. Uma arte que é um ser vivo autónomo.

Porque vê-se e revê-se esta bomba orgânica, este furador de olhos e de tímpanos que se deve experienciar o mais junto possível da podridão, esta sanguessuga, e o que me atinge é sempre essa pasta que se principalmente negra também percorre vastas gamas do espectro escuro, incendiário, gélido. Onde a câmara de Tanner perscruta, apalpa, espanta-se, roça-se no turbilhão e em sinais de fogo tais que não percebe como ali se pode ser tão sozinho. Um pulsar de onde o inorgânico parece estar ausente, onde a latência é eléctrica e os poros vilipendiam a pele praticamente invisível dos ecrãs que acolhem isto.

Há montes de Lisboas, as calmas e furiosas, as fantasmáticas e as límpidas, mas assim nunca vi. Desde logo a de Paulo Rocha, que se muito nervosa é como que aplainada pelo seu lirismo ultra contido à espera do kaboom; a de “Belarmino” que se é das que mais se aproxima a Tanner é também das que mais se afasta pela vontade do documento e da invenção; a do magnífico e esquecido “O Fio do Horizonte”, do mesmo Fernando Lopes, que se dolorosamente viva é atravessada pela plástica e metafísica da banda desenhada e pelos fumos funestos do filme negro americano; a de João César Monteiro, infecta, abjecta e generosa, por isso mesmo ligada ao quotidiano desse homem e a uma poesia indizível; a de Pedro Costa, trancada nos quartos da juventude e nos becos de Tourneur; ou a de Manuel Mozos, esfaimada de personagens e de histórias, vibrante mas tão intima. 

“Dans la ville blanche” é feita em muitas mais dimensões do que as três da moda, com mais perspectivas, camadas e níveis do que os jogos de computador mais vendidos, sonoramente absorvente até ao afogamento e com vias e atalhos que os surrounds mais evoluídos nem sonharam, e de uma interactividade que reduzem um Peter Greenaway e os seus esquemas ao vácuo e a menino de coro. É ver então como o João Canijo de “Sangue do meu sangue” confunde o espaço e abafa as pessoas, em busca de um realismo que feito assim só se sente pelo lado autoritário e por isso não humanista do realizador, onde só fica, paradoxalmente, uma técnica e um exibicionismo que se contradiz ao fundo.

Em Tanner, onde curiosamente Canijo fez assistência, há uma frontalidade panorâmica que vai em busca do batimento cardíaco que está nos corpos, no betão e nas águas, na relação e na colisão do homem com o meio, onde tudo interessa pois tudo afecta tudo e existe, pequeno e incomensurável, mar e putas, o ar do tempo e as ruínas. De um arejamento na aflição ou de uma gravidade na pacificação. Tanner, Rivette, Ferrara, onde o que bate e o que se busca se passa lá dentro do enquadramento que se vai fatiando ao mundo e não do lado geek do domínio dos meios. Não se fechando os olhos ao facto de o mundo ter nascido antes das máquinas. A vida a viver ou a morrer de onde a câmara estará sempre no sítio certo. Lição e dádiva de um homem do mundo.

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