quarta-feira, 14 de agosto de 2013


O Det. Sgt. Walter Brown que o estoico Charles McGraw agarra em “The Narrow Margin”, o Fleischer de 1952, é uma continuação do Lt. Jim Cordell que o mesmo também fez em “Armored Car Robbery”. Só que nesta produção RKO com orçamento de varredor de estúdio, o seu braço direito de ofício morre mal abre o filme, o que é mais grave quando depois ficámos a saber que na larga vida que a fita tenta alcançar, o Det. Sgt. Gus Forbes, assim se chamava ele, estava perto da reforma, já não costumava dar o corpo às balas pois a rectaguarda servia a sua experiência, bem como entre os dois a questão era mesmo de pura amizade, corpo uno que tinha visto coisas incontáveis, relações familiares como laços de sangue que não se quebram. E tal vai assombrar o Walter Brown que desde o início nos surgiu como o aço, desprovido de emoções extravasantes ao crachá, chegando o seu sistema nervoso a entrar em atrofio quando a corrupção que é a sua anátema lhe bate à porta e ele vacila, em nome da redenção dos amados defuntos e pela comodidade dos que ficaram.

De Chicago a Los Angeles é um esticão jeitoso, e para quem vai fechado numa carruagem de um comboio ainda não moderno, com a morte do amigo ainda nas órbitas impressa, protegendo testemunhas que meio mundo quer abater e estonteando-se e fragmentando-se no que se revela como a desmultiplicação imparável da maldade humana, não vai ter tempo de fechar os olhos, respirar como deve ser, meditar caminhos seguros. Por aqueles vidros que se volvem espelhos do mal e reflectem mortalmente o seu vírus, na exiguidade de um espaço que a todos promete engolir depois de consumir, pelas metamorfoses desprovidas de qualquer resquício de escrúpulos de cada um que defende a sua, todos envoltos em vapores e poções vorazes e conspurcadas, Walter Brown vai descer ao fundo da sua solidão e do seu desamparo como, improvavelmente e num daqueles diabólicos boomerangs que a vida por vezes inflige, encontrar ou desencontrar o seu firmamento. Entre outras coisas - e dando razão ao amigo que dizia que não se deve generalizar nem com aquele tipo de mulheres com que eles se iriam meter, nem com os trapaceiros que as conquistam - os carrascos viram heróis ou heroínas e os inocentes tornam-se indecifráveis e nebulosos – constatação de que a posta em cena, carregada de ilusões ópticas e replicantes, refracções e imagens cindidas, é tanto o fulgor do cinema como arte dos múltiplos sentidos e leituras, como o “baralha e torna a dar” que é o eterno reinício desta porra orgânica.

Naquela negra serpente a vapor que reduz o mundo a pó ou à sua nitidez mínima, Fleisher mete a bandidagem toda, a sua origem e germinação, o seu potencial, o seu contrário, as cartas todas. Assim que a tragédia primeira se dá, e que vai ser o móbil moral e a engrenagem motivacional até final, toda a encenação é drenada, secada e cinzelada a carvão, desprovida de artifícios musicais ou pontuação evasiva, para se tornar numa reportagem sobre o discernimento do homem ferrado e encarcerado num cosmo ou no ralo de todas as possibilidades e géneros. Estado directo onde tudo desenrola no presente, onde o “tema” é exactamente o que acontece. Horizontes fugidios e confluentes. Reportagem que se estanca ou se abana, com câmara à mão e rodopiando e tudo quando tem de ser, ou que, como um Hitchcock de um “North by Northwest”, contempla e se molha com uma nascença do amor no reduto mais esquisito e nada recomendável. Espaço que no geral se pode comprimir, como no grande-plano arejar. Nada esperem e na esquina mais suja no ponteiro mais banal e com o tempo errado, tudo recomeçará, tudo começará.

A caminho da negra cratera final e já vendo a areia da cova acenar delicadamente, WB aplica uma guinada que deve ter virado ao contrário as molas, parafusos e restantes alicerces deste abarcante e paciente complexo que nos atura. O resto, neste fabuloso filme negro e estelar, são os segredos perdidos da desaceleração e aceleração perene a que a existência e o seu entendimento se votam, onde o cinema pode ser feliz; a sugestão e abstracção que na estrutura e no percurso mais definido se ousa atingir, nada a ver com os supostos experimentalismos de hoje, nesses absurdos dilatamentos e durações vagas que se envaidecem em si mesmas, antes sabendo que a luz tapa e aclara, mata, morre e revive, franqueia e bloqueia, estoura e se desvanece. Antes da retórica, da psicologia, do que for, a luz. E que como ela que possibilita o cinema e o milagre, tão efémera, cada corpo e cada alma é um outro, sistema ou organização de leis próprias não estanques que não para de espantar e subverter. Monstros ou anjos ou casualidades. Animais de um Tourneur em embrulhos correntes. Fim, silvo de promessas.

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