sábado, 10 de agosto de 2013



Richard Fleischer é um homem de muitos géneros, o que também significa que é de muitas vidas. “These Thousand Hills”, um dos que recentemente me impressionou pela singularidade e tradição com que se instala no Western, é resumidamente a história de um rapaz que perenemente molestado pela fraqueza de um pai que segundo ele se acobardou atrás da Bíblia, se torna um arrivista mesmo antes de arribar, que por conveniência esquece a mulher que mais amou e que mais o amou. Mata, rouba, corrompe-se. E que certo dia a certa hora, num lancinante lampejo de honestidade própria e de rasgar de coração, como que se redime ou justifica para lá do vacilante happy end e do que já não vamos ver.

Filme onde a profundidade de campo e a largueza de espaço se corresponde com a profundidade psicológica e a complexidade moral de Lat, o cowboy que enterra os escrúpulos tão fundo que para os alterar vai passar pelo seu cabo das tormentas. Ou a complexidade do espaço a debater-se com a desmesura emocional. Com Lat defronte da casa da verdadeira amada chamada Callie ou nas extensões intermináveis e poeirentas do Oeste, não se vão esbater os fundos ou permitir desfoques, ampliando-se sim tantas vezes a perfeição do estúdio e acentuando-se a limpidez, para dentro da horizontalidade que impera, também Lat sentir que o não acobardamento leva os níveis de verticalidade da consciência a um grau que a maior parte não pode aguentar, para bem da sanidade e para mal da puta da loucura.

Dentro das quatro partes que enquadram e pela disposição de infinitas variáveis lá por dentro, vão surgir troncos que o martirizam e não o deixam dormir, ramos que espetam e o sangram, complots com as atmosferas cálidas e glaciares no mesmo perímetro. Mas também autênticas diagonais, vagabundagens e ímpetos daquele cavalo negro de sangue puro, que mesmo assim magoa muitos menos do que as feridas abertas e sempre mais um bocado arreliadas que se cravam nos carrascos, na sua forma bruta e respirar solto que enche de incompreensão cada um que o tenta domar. A liberdade, em certos sítios e por certas alturas, costuma ser um privilégio só à custa de suprema vontade autónoma, que pode ser uma forma de bela violência. Tal colosso escolheu Lat para o cavalgar, e isso diz mais qualquer coisa, pois esse animal de helénico esculpimento parece ser o mais fiel, um dos pêndulos de uma bondosa balança que se equilibra com o sorriso ou lágrimas de Callie. Nada a ver com os outros ziguezagues das balas que já substituíram as flechas índias, das provocações dos imbecis consumados e da alastrante lei e justiça ambígua.

Callie…Lee Remick…fora de tudo…que é, tem de se escrever aqui, a alma mais alva e libertina, escandalosamente alva e escandalosamente libertina, que dá todo o dinheiro a quem lhe deu o que ela nunca tinha sentido, proporcionando-lhe a via alternativa ao Pai mas também a rampa da tragédia, que lhe abre sempre a porta apesar das humilhações, que espera, fica, e finalmente arruma a equação da maneira mais viril. É antigo dizer-se que a sombra da desgraça costuma pairar subtil e dissimulada no rosto e no olhar das coisas mais virgens e insuspeitas. Mesmo que Callie, para mim, jamais se tenha manchado.

Como tenho de me perder na cena mais exemplar, triste e saudosa, pois é aquela que resume toda a desistência da verdade em favor do status, mesmo que o referido acerto dos ponteiros na hora e no momento agudo seja como um canto de anjo no purgatório, um mimo de Deus, um perdão. Momento só comparável aos conselhos francos de um velho sábio que transporta esses dons na dorida cara. Que é a cena da caixa melódica infantil, da troca de vestido da menina linda e excitada para o encontro perfeito dos seus sonhos cor-de-rosa, do pentear-se ao espelho, do crescendo de excitação… e do menino cowboy que foge corado e que depois voltará devagarinho, pedindo desculpas sussurradas. Espaço agora interior ou ninho que é um oásis dentro de outra coisa vasta e fatalmente escorregadia, a sociedade. Onde finalmente a harmonia compositória de todos os elementos e as linhas não quebradas dão a paz e a impossível perfeição duradoura. Porque esses momentos duram pouco, efémera duração inigualável, mesmo nas discussões e misérias, brotando luzes serenas, apaziguadoras, resplandecentes. Podendo aqueles dois seres manietados e à deriva saberem o que é a contemplação livre, promessas, eternidade segundos. Esse oásis, nesses entretantos, transfigura-se no centro do mundo.

Tanto balanço e crispação, sem que o eixo mecânico e o foco sensível desabem alguma vez para o descontrolo ou excesso, melodramático, virtuoso ou outro. Uma mão e uma inteligência arquitectónica, um olhar imperturbável, instintos apurados, para um todo cruelmente erigido. Eternas batalhas com a pressão que rodeia e com o afunilamento da agulheta…Arte do espaço, arte da relação nele. Do tempo que dele se abarca. E do estremecimento das conjugações. Nada mais humano.

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