“(…) Vítor Mature, tão injustamente apelidado de
canastrão, protagonizou, no Arizona, um sábado violento de assaltos sangrentos,
que nunca mais me saiu da imaginação. Fleischer outra vez em Violent Saturday.
E, nos dois filmes, era também a glória do scope a afirmar as virtudes
cardeais, essas que nos faziam dizer como o cinema era grande.”
João Bénard da Costa
Cinema grande é o que realmente não falta em “Violent
Saturday”, largura que raramente assim se instalou em território tão íntimo e
nada convencionalmente épico, profundeza na absorção de uma galeria de
personagens, que mais uma vez no cinema de Fleischer, de tão variada, lacunar e
complementar, parece meter, em caldeirão, uma possível enciclopédia da existência
e a sua lengalenga. Virtudes cardeais que vão relacionar e fazer corresponder
em desmesura, dando razão à personagem viciada em fotografia que só fala em
dimensões e perspectivas, homens queimados pelas mulheres e mulheres que se
queimam por homens. Uns que não se declaram, outros que se declaram demais.
Quem olha nos olhos e quem vira a cara. Os que apagam o fogo e os que nele se pelam.
Pela perspectiva fora apanha-se a fiada toda, e
daí a importância, tal como no Western de 59, da relação entre o subtilíssimo
Mature e o seu pequeno filho. O pai que se queria desenvencilhar das misérias
do seu pai e o filho que queria ver no pai o herói que alguns têm. Heranças de
pais que passam para filhos, em perda potencialmente infinita. Questão de
remissão dos pecados do mundo por violência como a final que secamente explode
na tela? Onde até quem se entregou a um Omnipotente, falo de Ernest Borgnine e
da sua família Amish, tem de fechar olhos e espetar gadanhas num instante
incomportável ou num instante de salvação suprema? Fleischer decidiu terminar este
conto ou o seu mosaico com várias crianças e o seu Deus, depois de tantas
entregas clamantes e volúpias retardadas. Alguma coisa quererá dizer essa
triangular composição, para o bem que está facilmente implícito ou para um novo
e necessário perpetuar do mal. Ambiguíssima imagem final.
Mosaico, grandeza, quadros fixos que se aguentam
num único ponto de vista pela abanante perscrutação, coordenadas unidas de
sentido ou não-sentido e deslizar de um olhar num espaço ao jeito de um grande
tabuleiro universal. Zappings e suspensões. Confluências lógicas e
impossibilidades de reconciliação. Falei no final violento, falo no entrecruzar
de opostos e no passo minúsculo da diferenciação. Não estamos tão longe uns dos
outros, parece-me sussurrar uma espécie de Deus ex machina surpreso, que é essa
câmara ousada e tão esclarecida que na sua digressão estabelece a montagem
dentro do plano uno, que só quebra por razões que não detém ou pelo excesso que
nos finda. Bocados de falas que ficam no ar e regressam, presenças que saem de
campo para depois invadirem campos alheios, geometrias que não se aguentam nas
canetas pela bondade ou pérfida circundante.
Vertiginoso scope que percebe, de modo natural e
sem desculpas, que há que ir até ao fim. Mesmo que as linhas limites se vejam
côncavas, retorcidas, deslustradas, deselegantes. Que as dimensões e ângulos
entrem em guerras de escalas, proporções e hierarquia. Que se perca ou esfume o
fundo que nos conforta. Que um rosto ou uma verdade extrema tenha que conquistar
o direito de ir ao grande plano sem que seja a retórica determinista a fazê-lo. Toda a
compressão de um dia a dilatar e a detonar a narrativa da causa e do efeito,
para se tornar pintura abstracta, tal como a questão da herança resolvida. O
cinema de RF cada vez mais condensadamente fragmentado, até a umas certas
panorâmicas com split screen lá para a frente.
Epígrafe de JBC que nada tem de saudosismo ou de
retrocesso, antes todo o progresso e modernismo que a evidência, a filigrana e
garra da posta em cena deste verdadeiro realizador afirma. Alguém que está em
sintonia com um passado de um Renoir ou de um Pabst, meter o infinito no quadro
cinematográfico e permanecer silencioso, mesmo que a combustão seja instantânea,
para assim ousar voos nunca tentados. E lembro-me agora de uma espantosa
introdução de António Mega Ferreira (pelo menos ali, grande crítico de cinema)
à visualização e construção do outro mundo em que assenta “O Fio do Horizonte”,
o nosso Vertigo e o nosso Borges, quando dizia que Lopes e Tabucchi não
precisavam dessas linhas da moda e dessa cacofonia barata que, não disse ele
mas pensei eu, muitos prodígios, jovens inconscientes ou “mestres”, têm
necessidade de forçar em nome de uma suposta evolução que só me cheira a atrofio
mercantil, carnal e formal. Enchimento mais perto de um espectáculo multimédia
ou do design pós-moderno do que instrumentos de um trabalho e a sua urgência a
exercerem potência.
“Violent Saturday” é um grandioso fresco, sempre
ao terreno nível. Valsa intemporal, sinfonia total urdida a um só instrumento leve
e ordinário, talvez de sopro, para ir em busca de todo o peso. Pintura, música,
dança funesta e ávida, poesia, quotidiano, por aí fora, volumosa dramaturgia intraduzível
que todo o grande cinema deseja e lá toca.
Sem comentários:
Enviar um comentário