Foi há pouco tempo que uma valente e risonha
professora de uma academia de música de Lisboa tão sui generis como ela, ao
introduzir a duas crianças igualmente valentes e risonhas uma canção que tinha
tudo para ser antecipada como a famosa “atirei o pau ao gato”, os precaveu para
uma decisiva variante. Acompanhada ao violino, a letra trocava o pau por
beijinhos, bem como o morreu pelo sorriu, pois, segundo a compositora, naquela
casa ninguém atira paus a gatos.
Jacques Tourneur, o tão enorme como discreto
realizador que na Hollywood mais preciosa se meteu solitariamente nas penumbras
e nos balcões dos tascos, longe das famas e das estatuetas douradas, também se
meteu toda a vida com gatos, panteras e demais bicharada, e acabou praticamente
a sua carreira a render-lhes homenagens, como cartas de amor em forma de
enaltecimento cinematográfico. Para Tourneur houve o claro e o escuro e os
constantes deslizes do homem e do seu interior para tais zonas inesperadamente,
como houve Greer ou Mitchum impossivelmente belos e tragicamente lânguidos, mas
também, deixando-o igualmente tão fascinado, toda uma larga gama de gataria e
sucedâneos, esses felinos que se dizem esquivos e manhosos e que por isso se
costumam contrapor aos cães.
“The Comedy of Terrors”, de três anos antes da
sua reforma, em Portugal curiosamente chamado de “O Gato Miou Três Vezes”, para
assinalar os momentos em que esses vociferares estiveram em consonância com a
morte que é o ganha pão do estaminé que o acolhe, termina com um desfilar tão
sensualista, apurado e misterioso desse bailante gato que por lá andou em cima
de cadáveres ou a aturar a bela que não teve possibilidades de frequentar a
escola da música, que atinge a mesma moral da referida professora e da sua
criação – quando se julgava que após serpenteantes deambulações e matreiras
expressões a tampa de um sarcófago se fecharia sobre ele e sobre o filme…zás,
este salta cá para fora e vai viver mais uma das muitas vidas que dizem que eles
têm. Que Tourneur lhe dedique todo o seu saber e toda a sua incomum luz, todas
as complexidades e maravilhas de tanto ano de ofício, e que o gato lhe pareça
retribuir com o seu contemplar sedutoramente ameaçador a desvanecer-se, tudo é
comoção.
Aparentemente sob o signo da comédia e da
leveza, é algo onde, à semelhança de “Stars in my Crown”, se ressuscita
inacreditavelmente e se tomba sem controle. Pintado sobre auroras, crepúsculos
e entre noite e dia à hora inidentificável; fumarado como envolto em tons
vibrantemente pálidos, azul pálido, prateados e róseas pálidos; de infinitas
gradações pálidas e faiscantes como as trovoadas cortantes, tudo nos avisa,
entre operatismos de cinco tostões e
vertigens assexuadas, que há entre nós alguns que tudo fazem pelo vil dinheiro
ou pela vil bebida que mata sedes e desilusões, sem pestanejarem, entre orgulhosos
júbilos e legitimados por uma moral autónoma, consumada como as leis da praça.
Entre o expressionismo germânico que
provavelmente sai das entranhas de um Peter Lorre que me surge tão maquiavélico
como o seu comparsa, embora vidrado em abundantes carnes e suores femininos que
o dominam, e as surreais atmosferas abstratas e baratas de Roger Corman e
quejandos que se disseminam a partir Vicente Price, ou seja, cruzamentos de
feéricos fogos magnéticos e repelentes, chega-se a uma súmula de género mas
também a bem mais do que isso, pois o já referido vale tudo em prol do whiskey
ou da preguiça, assenta sobre o principio filosófico e pragmático de que o mau
se julga o bom e de que metaforicamente ou realmente há coisas que se pagam
caras, mesmo que da tumba alguém se levante para ajustar contas.
Olhares. Mãos. Caixões reutilizáveis. Enterros e
desenterros. Animação. A vida depende de como se olha e para onde se olha, e o
cinema que dela depende, muito mais. Essa grande sinfonia entre a lente que são
os olhos da câmara e os outros que se encontram nas pessoas que filmam, e
Tourneur como um dos mestres incontestáveis entre encontros de mecânicas e de
almas, ângulos e perspectivas. Por isso mesmo o olhar vago, supostamente
desprendido e desinteressado de Price a jogar com a estudada compaixão de
Lorre, nesse cemitério de cartão que abre a obra a toda a física e metafisica.
Dali olha-se para a morte da bezerra ou faz-se contas à vidinha rasteira. Eles
os dois mais o Karloff louco, que anda por ali dissimuladamente a vigiar até
conseguir aplicar pela calada o golpe de misericórdia do seu regozijo, adeus
rival parece dizer sem dizer e sem olhar, ainda com James Whale na mente e nas
tripas. Mas, tentando ver bem, no término uns fecham-nos para eternidades ou
para qualquer amanhã e outros resistem. Num olhar, como num efeito Kuleshov,
mil significações.
Ainda nesse plano, as mãos de Lorre que seguram
o chapéu do lamento, para se contraporem às que vão violar portas, túmulos e
sexos alheios. Como Lang nos fez ver, também estas raramente se escancaram de
primeiras intenções. Para de tão inocentes pegarem em pás como se pegam em
armas, martelos assassinos, provocarem sufocações, arquitectarem cofres
derradeiros que vão regressar à oficina ou morgue, darem os golpes do baú,
vulgos gamanços ou trocas de sítio sem arrependimento. Lorre que dos calabouços
regressou e de outros piores tenta ao longo do filme sair. Price que as torna
gadanhas do belzebu e vira o feitiço contra o feiticeiro que é ele. Por pouco
se mata, por muito se deixa a derradeira morada, todas as lógicas do avesso na
arte mais ilusória e mais baixa das oficiais sete.
Primeiro
já referido cenário do filme que lança toda a ética, estética e poética
(ó inescapáveis considerações!?!?), tudo o que um Edward D. Wood Jr sonhou e
tudo o que um Tim Burton ousou com o filme que para ele fez em 1993. Entre outros
milagres, avanço a galope do tempo, do “realístico” e da realidade, via verde
aos delírios e ao irracional do lado de cá e do lado da arte – para se fazer
das duas uma coisa só, chegar pelo excesso à transparência, trilhar e
concretizar sem amarras e sem normas os arco-íris possíveis em sonhos.
Sonorização/audição estratosférica, no abafamento do comum, do esperado e do resolutamente
em campo, para assomarem em primeiro ou grande plano vozes, coros e reinos
normalmente esconsos e soterrados aos preguiçosos ouvidos. Por isso aos agudos
da desajeitada artista, os vidros partem mesmo, as velas derretem e o gatinho
tapa os ouvidos, para já não lembrar que até os mortos se queixam. Sem
desculpas e sem multas, os movimentos verdadeiros. Que é um fecho ou um quase
fecho de uma carreira – ainda faria coisas indispensáveis ao todo – à altura da
liberdade, do saber e da bondade dos grandes velhos que fizerem no final das
suas vidas o que nunca foi feito nem será repetido. Ford ou Oliveira, Bergman
ou Hawks, José Álvaro de Morais mas também Richard Fleischer.
Animação ou bonecada, como quiserem - para não
meter à guerra as gravuras seculares, o mais prosaico rabisco ou a mais fina
pintura - a fazer as pazes ou o pleno com a chamada imagem real. Os temíveis animais
que outrora se metamorfosearam para deformações e bestialidades inaceitáveis a
merecerem a encenação mais inaudita e consagrada só às divas e galãs de outras
núpcias com o divórcio há muito carimbado. O genérico a acolhê-los com a mesma
ordem de importância, nessa estilização com o máximo de reconhecimento das
vinhetas que apanham aquela coisa sem importância que faz o sal de cada um. Uma
Cleopatra que representa todos. E as saudades de tamanhas ousadias. Um João
para cada Joana, só para baralhar mais os ditados, um Tourneur para mil
fantasiosos ou criativos do agora tecnológico.
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