Phil Karlson fez de facto parte de um sistema
calibrado, oleado, fiável. Logo, perfeitamente reconfortante e pronto para o
risco. Pois lá dentro, como os melhores e em todas as profissões, podia meter a
sua persona, a sua febre, o seu riso, ele mesmo. À custa de muita cabeçada,
possivelmente, mas conseguia-se. Ele consegui-o, seguramente, e o filme de que
vou falar um bocadinho, “The Brothers Rico” de 1957, sendo uma peça de fabrico
da terra de Zanuck ou de Thalberg, é um filme de autor desde que a personagem
de Eddie acorda até quando concretiza o sonho de uma vida. Com a tragédia toda
no meio. Uma obra e um processo marcado, enrugado, com um organismo singular. Nenhuma
indiferença. Para tais questões que vão decorrer, a câmara e o seu parceiro não
têm certezas, nem respostas. Vejam e digam. Chorem ou simplifiquem.
Um filme de irmãos e um filme de rostos. Rostos
que logo se notam sofridos, cheios de insónias e fatigas, definhados, à espera
de um pior que virá. Câmara que os olha sem contemplações, através de espelhos
cruéis que revelam a verdade e de proximidade que muito menos deixa mentir. Onde
todas as negras sombras se sentem perdidas e esbatidas no cizentismo que tudo
abrange e come. Tudo desespera. “The Brothers Rico” são viagens de um homem que
à porta de conseguir adoptar o seu filho pressente que tem finalmente de salvar
os que há muito são do seu sangue. E é tarde. Cai num cerco e numa teia onde os
Estados Unidos da América são uma aldeia. Em cada esquina um suspeito. Não se
pode enfrentar o sistema, é o que alguém lhe diz muito para a frente e depois
de muito tiro. O grande sistema, que se é puramente Americano e contextual, é
reflexo de uma História de corrupção e deterioramento Humano no seu todo. Entre
os destroços, algum inventário: segundas classificadas de concursos de beleza
assanhadas e a tentação; manos mais novos que ao contrário dos manos mais
velhos têm filhos a rodos e por aí vai; mercenários anestesiados.
Se estamos de frente a um filme rude como aquele
mundo, seco, nada contemplativo a não ser da morte próxima, os ecos bíblicos
são demasiados para que o filme se feche numa redoma somente ali ou aqui
contemporânea. Desde os filhos pródigos e as Mães perdoantes de tudo, o que me
lembra muito outro ordinário conto bíblico que é o “Matar Saudades” de Fernando
Lopes, até aos volumes ainda chamados homens que chegaram a tal nível de
disformidade e alienação, que sentem fome de bicho selvagem depois de
espalharem mais miolos. A prisão e a fronha do grande espaço com o seu grande
desenvolvimento e os ecos intemporais rezados na partida. Ou por vezes a
esperança no espaço íntimo e os aterradores avisos do infinito passado. O mesmo
círculo.
Karlson, autor. Assim poderia ser possível e
produtivo as universidades, ou os sedentos de gavetas e museus que aniquilam e
fazem esquecer, chegarem a algum lado e perceberem que tudo nunca foi tão
simples. Como o mais virgem rosto que esconde a mais terrível maldição. Neste fresco
que fecha inundado em sorrisos de crianças e imaculados pensamentos, vai ser
impossível esquecer o plano anterior que o combate e contradiz, para uma
síntese da inadaptação. Da reconciliação. Um contra o outro e cada um que faça
as contas. Olá, Senhor Eisenstein.
Tudo, mas tudo, tecido e esquentado num realismo
ou num desencanto, faz mais sentido, que o liga a coisas que outro americano
chamado Edward Dmytryk ousou em “The Sniper” (e fê-lo igualmente no terreno do
Western com esse incandescente “Warlock”) ou um Francês como Claude Sautet atingiu
com o neo-realista “Classe tous risques”. Que é sair para as ruas e meter-se
sem medo pela bicharada adentro. Fugir do calor dos estúdios. Desnortear-se com
a paisagem e com o cheiro e a ameaça e a massa do real. De tanto
incompreensível. Debater-se. Para uma estética sem definições e em certos auges
perto do doentio.
Tema principal do cinema moderno assim como Gilles
Deleuze o definiu e sistematizou? Talvez, se quisermos, mas que em “The
Brothers Rico” se parta de uma novela de Georges Simenon e da sua féerie inata,
se trabalhe uma decupagem cinematográfica rigorosíssima, o ritmo calibrado,
oleado, fiável, actores já Kazanianos, e tanto ainda da famosa máquina. Que se
chegue ao pasmo e ao coração ou cancro das coisas despidas, inteiras e por
elas, com formas brutas que nenhum assumido documentário impessoal conseguiria
tanto, que nenhum autor actual só por carregar o rótulo ou assim ser
considerado pelas autoridades igualaria em perigo - é segredo que eu não tenho
e desconfio perdido. Ou se é ou se não é, sem disfarces ou cauções.
Richard Conte, genial actor.
Sem comentários:
Enviar um comentário