"Um Adeus Português", João Botelho, 1986
João Botelho tem já uma longa carreira em mais de trinta
anos, com objectos muito diferentes e constantes desafios, tendo estreado
recentemente aquele que poderá ser considerado o auge do seu interesse pelo
artifício, pelo grafismo, pintura, enfim, um investimento no chamado
"falso" para desse modo atingir uma emoção que advenha do cinema como
conjugação das restantes artes, num auguro de gesto total que dispensa a
invisibilidade clássica e os seus mecanismos realistas. Mas o filme que aqui
nos trás hoje é uma página rara e delicada, o seu melhor; está bem longe de
"Os Maias - Cenas da Vida Romântica" e nem o constante choque entre o
passado e o presente, a guerra e a paz, preto e branco e cores, consegue anular
o profundo humanismo, calor e suavidade (e calor e suavidade tão grave em certos
momentos) que se desprende de "Um Adeus Português", que só terá
comparação com outro seu filme secreto e intimista feito já no início dos anos
noventa, "Aqui na Terra".
Na altura alguns lembraram-se daquele que porventura também
será a obra mais lancinante de Yasujiro Ozu, "Tôkyô monogatari", e,
de facto, não nos podemos deixar de lembrar dessa visita de um casal assente
longe dos grandes centros aos seus filhos citadinos e do desfasamento que tal
encontro revela quando Isabel de Castro e Ruy Furtado deambulam tristemente por
Lisboa. Aqui como no Japão. Do Norte Português parte esse casal em direcção à
capital, para matar saudades e para apaziguar almas, mas o que aí encontra são
os seus não lá muito bem na vida e cheios de afazeres, embrenhados no ritmo
moderno e numa luta pela sobrevivência que adormece os bons sentimentos de cada
qual. Particularmente exemplar é Alexandre, subtilmente encarnado por Fernando
Heitor, fantasma envergonhado pelo seu ganha-pão, da sua inércia abstracta, que
não o deixa como a tantos outros expandir-se. E assim, esse périplo ou essa
peregrinação, destapa tanto as feridas da guerra e do passado português como do
falhanço da sua revolução. E a acalmia, como o abafamento e o silêncio
incómodo, fazem depender os tempos uns dos outros rumo à evidência de um
destino conformado que teima em não virar.
Além da beleza, mesmo que trágica, fluente ou assombrada que
assoma momento a momento, não esquecendo uma montagem que não quebra mas antes
unifica, vale a pena insistir: Isabel de Castro e Ruy Furtado, dois dos nossos
maiores actores, são a imagem, o corpo e o peso da grande gente lutadora e da
grande tradição humanista e panteísta antes do descalabro social, cultural e
artístico do contemporâneo e do virtual feito moda. O filme trata muito disso e
o aparecimento do grande cineasta António Reis em trabalhos do campo só
relembra a questão da verticalidade humana ao invés da corrupção fácil. Na sua
aparente pequenez, uma verdadeira grandiosidade. A permanência a si, essa fidelidade.
"December 7th", John Ford e Gregg Toland, 1943
As razões que levam um homem a ir ver a guerra são verdadeiramente
obscuras, alguém o disse certa vez. John Ford, o grande cineasta americano,
foi-o algumas vezes, e não só pela potência construtora da ficção.
"December 7th" é um caso paradigmático e no seu contexto bem
enigmático. Depois das grandes obras que lhe deram o reconhecimento e o
sucesso, de "The Grapes of Wrath" a "How Green as My
Valley", Ford (acompanhado pelo não menos guerreiro e sensível Gregg
Toland) interessou-se, em plena segunda guerra mundial e nas convulsões
inerentes, a ir ver in loco como funcionam tais mecanismos, pretensões, enfim,
o grande tabuleiro da existência humana. Mas, coragem maior e abertura à
complexidade infinita das coisas e do mundo, da natureza e do homem nela, não se
limitou a mergulhar de cabeça nos abismos da realidade - como também mergulhou
sem qualquer rede - antes efabulou ainda a partir do que viu, ouviu e sentiu
para assim as coisas atingirem não só a ferida do instante agudo mas também os
ecos e reverberações do grande arco da História, mitos incluídos. Do plano
inicial de um avião desfeito até às bandeiras finais ao vento da união,
monte-se em conjunto e perdição as crianças asiáticas a cantarem o hino
americano com o rosto de um bebé ligado a uma campa do cemitério - é a
eternidade, as suas voltas e revoltas e a impossibilidade de juízos
demagógicos. Pois demagogo ou propagandista é tudo o que este "December
7th" não é. É sim, como noutro filme duro e terno realizado dois anos
depois, "They Were Expendeble", uma travessia nos destroços nossos. A
encenação, o lado descritivo, arquivista e até romântico de querer saber do
próximo e de como sopra o vento comum no outro lado da terra, por inteiro -
cada árvore uma árvore e cada choro ou riso um choro e um riso sem truques -
olha a massa do real de frente e não lhe nega qualquer segredo ou
incompreensão. Todo o Cinema de Ford, o muito Humano. Para lá ou para cá da civilização domada.
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