O máximo de leitura com
o tempo adequado, a distância e a composição exacta e assim evidente, a
conservação do imperscrutável, o humano como princípio e fim na sua relação com
o meio – antes partir do que coçar, em 1928, já John Ford utilizava todo o
manancial a que se apelidou de clássico nos anos 40 ou 50 do século passado, de
onde a sua selvajaria, o indomável, nunca este na violentação formal ou no alarde
mas antes do lado da crença (antes ainda da ideologia). “Hangman's House” abre
em cenário de oficiosa guerra e cheiro a pólvora mas logo parte para as
paisagens idílicas da Irlanda, entrando lamentavelmente noutra guerra mais suja
e covarde, a da pequena mesquinhez, mal e poder exclusivo.
O primeiro longo plano para Victor McLaglen é
mais um abraço de admiração do cineasta, onde se pode apreciar o colosso da
bondade, mas tudo começa no interior a vibrar e essa presença impassível grita
que tem de matar um homem. Quando assim se grita, foras e dentros estalam. A
limpidez começa a esfumar-se, irrompe água e isolamento, logo depois o fogo que
a apaga, e uma consumição de visão dos infernos com os mortos de cada um a
pularem de alegre vingança dentre libertação de cadafalsos e humilhações. É
aqui que realmente se deu um encontro com F.W. Murnau, porque essa mansão, as
suas linhas, arcos e ar de terror tem a mesma constituição dos castelos vivos e
monstruosos e sedentos (mesmo que imperturbáveis) dos do alemão; e McLaglen é
um Nosferatu que em positivo ou mantendo o negativo - pouco interessa pois
estamos no terreno plástico, instintivo e abstracto do mal – vem vingar e
espalhar certas coisas que se pretendiam esquecidas. Mas Ford é Ford e a
restituição e devolução é feita de outra maneira, não como fim na danação mas
como justiça demencial porque obstinada, intemporal e a ferros tirada. A ferros
pois toda a lógica, causa e efeito, toda a coerência narrativa supostamente
alicerçada na realidade que o cinema costuma seguir, todo o reconhecimento e
cópia-conforme, tudo isso é vergado e, agora sim, assombrado para que se
perceba que há limites que não se devem transgredir e que compete ao verdadeiro
gesto cinematográfico como ao verdadeiro ser que respira livre cometer os
massacres certos para que o bem possa ainda brilhar ou espreitar dos escombros.
O par jovem prometido e devastado, a morte do
colossal carrasco, o diabo na terra idílica, o encapuçado de sorriso largo e
mão generosa (chamar-se Citizen Hogan é tão afirmativo e representativo como
hoje anacrónico e provocador). Isto seria o que estava no papel, Ford, na sua
tradição, rasgou e baralhou na certeza que o caos da premissa tenderia, ainda
antes das grandes rupturas e violações civilizacionais, antes da degradação
política do contemporâneo galopante e cego, para a origem. Mesmo que nesse
turbilhão fosse parcial pois em sintonia com os das margens, ou por causa disso
em primeiríssimo lugar. Da cena mais bela desta jornada do pó à luz: a
digressão em sonho pelas névoas e águas da salvação nessa barca e nesse éden por
que passaram almas de Mizoguchi ou os meninos assustados de “The Night of the
Hunter” ou os amantes perfeitos de “Sunrise”; até ao incêndio final perpetrado
pelas línguas de fogo do firmamento. O que limpa e o que arde, do bem ao mal e
a convulsão, cantos e gritos. É essa alternância que é via da existência. E o
acreditar. Toda a criação.
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