"Spring in a Small Town" (“Xiao
cheng zhi chun”) erigido em 1948 pelo grande cineasta Chinês Mu Fei talvez fale
mesmo de um renascimento depois das tormentas, tempestades, plantios, e, a
mesma coisa, aprendizagem. Ou então, o quadro final que parece tudo redimir e
rasgar em relação aos sentimentos e enquadramento anterior, crave ainda mais os
segredos e o lado incompreensível de estar nesta vida. É um mistério num filme
tenso, afligido e ao mesmo tempo sereno como o que não tem volta a dar. E
merece cada imersão, transformação e via-crúcis nele. Por todos os motivos
inesgotáveis da carne e do espírito. Narrado pela esposa à deriva, logo nos é
apresentado o marido agónico, depois a jovial irmã dele, o criado fiel, e o bondoso
amigo do marido que vai abalar os adormecimentos, impor a insónia, sem controlo.
As contendas vitais vão estremecer e pulsar novamente, mas, talvez o mais insondável
e sublime (e logo duro) desta jornada, não vão haver anátemas diabólicas ou
duelos fatais, todos se vão querer e amar para lá ou cá da normalização, de
onde as transgressões passionais ou sanguíneas deixam de fazer sentido. Envolto
em ruínas que são as da guerra mas são também as da rotina mais perigosa (o
caminho faz-se passo a passo seguro como os muros que crescem lentamente), será
para lá delas que quem quiser ver acederá a uma salvação pessoal e depois
universal. Narrado pela mulher, é a mais críptica das vozes, pois se é off e se
domina acima de todos, se paira nos ares, o que a câmara vê, cá bem nos baixos,
o que vemos nós, no presente, faz a diferença, e esse choque vacilante entre a
palavra e olhos e rostos e acções une o a posteriori e o agora num indefinível
que é o centro do filme e da encenação. Encenação que vai sempre desvelando e
velando pacientemente o que encontra em frente e em torno, aproximando-se
conforme a temperatura, ora começando nos pés e indo ao todo para a energia se
concentrar e permanecer, ora raramente olhando os céus ou uma lua que, sabe-se,
tem o poder de tornar rarefeito qualquer vulcanismo. Nessa encenação - a
manifestação do natural - o som é fundamental e irremediavelmente
revolucionário. Nunca pela técnica acabada ou não, em si mesma, mas porque a
primeira vez que o vento sopra selvaticamente nas árvores e no resto tem o
mesmo fôlego catártico dos silêncios e do mudo que antes presidiu e destacou os
gestos, não ditos, o dentro. Depois desse vento sucedem-se os movimentos para
fora e tudo parece revolver-se a outro nível, pelo espírito e compreensão que inflige
no físico. De braço dado com a elipse, verdadeiramente ou cripticamente em
acção, não por cortes largos no espaço e tempo, antes intervindo em quartos, em
leitos mesmo, por infinitesimais porções, carregando em paroxismo até o coração
de cada um ser audível, sensorialmente e materialmente. Um cosmos pode ter
acontecido no entretanto onde o cinema corta, ou apenas uma brisa ter passado.
O plano final... não há como não voltar lá, assim com nunca se esquecerá a
esposa e o amigo contra o fundo etéreo que acolhe, comenta, se mantém
impassível e resume a beleza lírica do instante – ali passaram milhares de
anos, o afogueamento da decisão, todas as posições, contradições e gama de
sentidos e sensações; como a passeata pelas águas e brilhos plenos de si pelas
flutuações de quem o atravessa; como a dança, canto e brincadeira infantil
entre a irmã e o amigo que abole qualquer idade. O plano final liga ao Jean
Renoir das razões para cada qual e ao Ozu dos destinos. Sem esquecer Paulo
Rocha, basta ver qualquer das suas obras ou escritos ou ele mesmo a falar ou
caminhar, essa vertigem dos abismos primordiais da criação e da vivência em correspondência
com a arte e a crueza do real na fixidez do plano prestes a explodir. Para
valer por si como cada qual vale por si acolhendo a paixão. Puro, alvo e
assombrado por um fora que para dentro trouxe e trás toda a negrura; por um
dentro que não escapa às imemoriais ambivalências. E a transfiguração a conquistar.
Indecifrável, como todas as grandes histórias de amor.
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