José Oliveira
Junho de 2020
I, Planos à altura da situação,
tentar a distância certa (exteriores). Simples campo-contra campo (interior da
carrinha).
Bairro em Alvalade, lusco-fusco inapelável,
atmosfera sufocante, veículos de alta cilindrada, Mercedes, Jaguar, BMW,
vivendas espaçosas, jardins aritméticos, matriz asséptica. A brigada nocturna
carrega a carrinha, sacos com duas sandes, refeições quentes na prata, peças de
roupa variadas, jantar e ceia garantidos, vestuário possível. Máscaras
comunitárias, luvas descartáveis, um voluntário usa sempre, outro nunca usa,
dois usam conforme. Um homem do desporto, dois estudantes, um desempregado. Na
rota impressa num tablet, as residências mais inóspitas à face do planeta
terra. Sem comentários. Pelos Olivais velhos, duas paragens. Na primeira, o
freguês habitual não aparece, no lugar vago apenas uma embalagem tetra-pack de
vinho maduro tinto Lidl, um cobertor acobreado, a comida intacta do dia
anterior. Na segunda, uma longa descida desde a estrada sossegada ladeada de
vivendas germinadas até a um jardim encafuado, típico de tarefas de escuteiro, um
senhor de barbas brancas, sem muito cabelo, desgrenhado e carregado de
pauzinhos das árvores, casa de cartões junto a um casebre de guarda, mudo, com
gestos entre a aflição existencial e a impossibilidade de explicação de coisa
alguma. Um par de quilómetros e de curvas e contracurvas em fuga para a frente,
duas casas abandonadas, grafitadas, ocupadas, número oitenta e quatro, de onde
saem uns braços e uns farrapos agradecidos, juvenis, numa matriz desolada a cores
garridas. No quarto ponto, Lidl de Xabregas, ruínas de alguma coisa antiga, de
alguma habitação ou fabriqueta, chama-se, berra-se, Alguém aí?, boa-noite,
alguém aí?, temos refeição quente, hoje é quente. Aparentemente, nada. Vinte
metros à frente, numa paragem de autocarro, um senhor dos seus sessenta anos,
explica que conhece muita gente da instituição, conta das saudades, cumprimenta
o velho amigo voluntário que se voluntariou pela primeira vez, inicia uma
ladainha cifrada, vários minutos, ininterruptos, vísceros. Seguidamente, ainda em Xabregas, um carreiro,
metade terra-batida, metade empedrado, fragoso, bravio, sem data, conduz aos
abismos do cemitério do Alto de São João, que paira em silhueta nos altos, as
campas alinhadas como sentinelas inconfessáveis contra um firmamento ainda resistente,
os ciprestes já como que adormecidos, repousados, noite de completo breu
estranhamente luzidio, dois voluntários transportam o cesto da comida, um à
frente e outro atrás, alinhados, como quem transporta um caixão, o terceiro, na
frente, topa o caminha, na rectaguarda, o último deles, tactea melindrosamente.
Distinguem-se várias tendas, variada alvenaria, ora tosca, ora limada, aviários
sem bicharia, grutas ecoantes, secas, o resto é um nublado dos mais diversos
materiais e combinações. O supervisor chama, Aí alguém?, amigos, não querem
comer nada, então, já de barriguinha cheia?, aparecem ou quê? Levanta-se um
vulto negro, magro, depois outro, mais velho, de pensos nos joelhos, Boa-noite,
hoje somos seis. Contam-se refeições. Seis?, mas já têm novos inquilinos outra
vez, é? De cada vez é sempre mais um, sim senhor. Vou pousar aqui mas não deixe
cair, veja lá, não posso arranjar mais porque está tudo contado, depois não
temos para os outros. Seis pacotes para as mãos, as refeições quentes em cima
de uma estaca de madeira instável, sorrisos cúmplices, agradecidos, talvez um
pouco tímidos. Próximo ponto, falhado. Um número quarenta e quatro apenas
conduz ao cemitério judaico, nem vivalma. Na estação do Oriente, metade da
carga aliviada. Três voluntários na rectaguarda, em organização, em contagem,
um a entregar em mãos, a dizer bom-apetite. Refugiados, meninas estilo dread, uma
velhinha magra de cabelos branco-mítico a pedir roupa e informações do espaço
de apoio, aleijados, doentes, tosses, estômagos a doer, drogados, esfarrapados, surrados, cancerosos,
uma numerosa família com um rapaz de dez anos, gordinho, camisa do Benfica, que
deixa tombar imediatamente a refeição quente, Não dá para outra?, deixei
escorregar sem querer. Não, se não, não chega para todos, faltam muitos pontos.
Correrias na última da hora, salvações na última da hora, já depois da hora,
nos descontos, uns com sorte ainda, outros a correrem atrás da carrinha,
falhanços, braços caídos. Parque das nações, três em frente ao Altice Arena,
meia idade, brancos, praticamente indiferenciáveis, agradecidos, encolhidos,
outro em falta, Talvez tenha ido mijar, deixe a comida aí, por favor, eu
informo, é bom moço. E um espaço estranhamente vago, austero, com uma prata da
comida quente de ontem ainda intacta. Na carrinha, um ciclista estafeta da Glovo
estaciona, Não tem comida?, é apoio, certo? Eu preciso de comida também, esta
merda de empresa não paga um caralho. O saco das sandes é oferecido, e logo
recusado. Caralho, recusando comida, é?, não quero a merda das sandes, quero
comida quente. Olhares suspeitos, sem solução. Não dão, recusando comida, puta
que pariu. Segunda paragem do Parque das Nações, várias filas de cartões
colados, formando cubos-casas, num dos últimos, uma mulher dos trinta anos, parece
uma menina, bem-parecida, cabelos castanhos longos, penteados, sorriso ténue,
fala do tempo e da ventania, do acaso e da esperança, um casal de travestis com
barba de três dias, primeiramente só um, Fala lá carago, ainda ontem me chateei
porque não acreditaram que somos duas, anda, levanta-te. Chegam, a correr,
cambaleantes, os atrasados da estação do Oriente, um deles pede mais uma sandes
para o pequeno almoço, pedido recusado, resposta aceite, Eu percebo amigo, já
cá não está quem falou, evidentemente que se pudessem vocês ofereciam outra,
qual é a dúvida, e afasta-se sorridente com a sua mala de rodas estilo aviador,
impecável, em direcção a nenhum aeroporto. Antes da partida, ainda um
sem-abrigo recente, inglês, prudente, simpático. A carrinha rola, rola. Zona
marginal, Av. Infante D. Henrique a Sta Apolónia Cais da Pedra, manobras intrincadas
de acesso, imediações da discoteca LuxFrágil. Meia dúzia de tendas frágeis, atadas
com molas, pregos, abraçadeiras finas, carcomidas, uma putrefacta, encostadas a
caixas de electricidade com anúncios de festas canceladas, postes de iluminação
toscos. Numa das barracas, um casal, pedem água, Não é possível, só comida,
hoje não foi possível garrafas de água. Outro pede uma camisa, Talvez seja
possível, já vou procurar. Numa tenda improvisada a tecido variegado, um jovem
ainda, trinta e tal anos, dentes corroídos, olheiras carregadas, Olhe, o meu
amigo daqui, você sabe quem é, aqui o vizinho, foi para um hostel e eu não,
como é qué isto?, tem algum jeito, éramos inseparáveis... Incompreensão, falta
de resposta assertiva, Vamos tentar saber alguma coisa. Na tenda final, esverdeada,
desmaiada, junto à porta de entrada da discoteca, entesada com molas, a frase
escrita Jesus Ama Os Pecadores, a borrona preta. Uma mão sai de dentro dela, esquiva,
uma fracção de segundo, cortante, Obrigado. Segue-se em frente, até ao próximo
viaduto, Mesmo ao lado onde aqui atrasado largaram um bebé num caixote do lixo,
foi um destes quem o descobriu. Para cima de vinte habitações, tendas, cartões,
plásticos, cobertores, perímetros inventados, cercados, colheres de sopa
niqueladas, cantis vazios, gorros de todos os feitios, rádios forjados,
baterias desenrascadas, cuecas, peúgas, graxa para sapatos, secadores de
cabelo, pentes tortos, pentes impecáveis, espuma para a barba, lâminas,
sabonetes, detergente Omo, escovas de dentes, mata-moscas, chaves de fendas,
broxas, diluente, quinquilharia indistinguível, ferruginosa, nada. Uns levantam-se
e vão à carrinha, casais na tenda suplicam água, dormentes profundos, um deles
que não quer nada, resoluto, a ruminar de solidão, outro em volta, a falar
animadamente ao telemóvel, num para-cá-e-para-lá de fala-barato típico, fato de
treino branco, Adidas, cabelo e aspecto cuidado, a percorrer os becos forjados
pelos quais ninguém reza, na noite ali cavernosa. No fosso da linha de vagões,
vários objectos pousados, pendentes, recônditos, mini-rádios, mini-garrafas de
whisky, headphones, temperatura irrespirável, electrificada, quase nuclear,
frio interior. Estação Ferroviária de Lisboa-Santa Apolónia, bondade, só bondade,
um senhor de sessenta anos que não pode andar, sentado num cartão, operado
várias vezes antes da pandemia, espécie de incontinência urinária, Tenho de
mudar o saco de quatro em quatro horas. Vá entregar àquele amigo que não anda,
por favor, ou levo eu, e do outro lado da estrada está uma família nova, passem
por lá, se puderem. Na Ribeira das Naus desce-se ao fundo de um oceano clamante
de água, martelado a pedrinhas, enfarinhado, lúgubre e heróico, duas refeições
a alguém invisível. Ainda em torno de uma esplanada outrora só para
estrangeiros, dois jovens barbudos com tendas relativamente novas. Várias
voltas ao Rossio, um suicida do Terreiro do Paço que se mete na frente da
carrinha, desesperado, fora de rota. Dois dormintes perfeitamente em baixo da
porta do Teatro Nacional de São Carlos, só cobertores e farrapos coloridos, em
fiapos, precários, os mais austeros de todos, a razia. Estação do Rossio,
várias construções inauditas, futuristas, barrocas, artilhadas, desenrascadas,
espaçadas. Numa delas, vazia, vários compêndios em língua chinesa, uns em cima
de outros, quase simétricos. Ninguém, mas de repente, alguém, novo, fresco, O
que eu precisava era de uns cobertores, lençóis, roupa de cama, dá para marcar
aí? Acenos de cabeça, Vamos tentar. Obrigado, eu percebo perfeitamente se não
der para trazer. Tem aí peúgas e slips, que bom, isso é sempre preciso, eu
prefiro slips aos boxers, muito mais suaves. Metam aí as refeições que eu
distribuo, são quatro a contar comigo, ali no parapeito, deus vos abençoe.
Estou aqui há três dias mas quero dar um jeito a isto, portanto se der para me
trazerem uma vassourinha também agradeço, só ontem contei as beatas e parei nas
cento e vinte, mas pretendo tornar isto catita, arrumadinho, boa noite e
obrigadinho. Sé de Lisboa, porta incomensurável, um acordado, outro a dormir, e
uma estória contada pelo supervisor passada nesse lugar. Alguém, há uns tempos,
que saiu da casa de saúde nesse dia, e o morador habitual. Vocês prometeram-me
umas sapatilhas, onde estão?, não vos perdoo cabrões. Tentativas de socos,
insultos, entre-ajudas, fuga. Mas não admito humilhações, estou cá para ajudar e
não para me rebaixar, se tivesse de ser partia-lhe os cornos. Costumamos comer
uma bifana ali no Rossio, na primeiro de Dezembro, mas por causa desta coisa
está tudo fechado, chegamos a casa pela uma da matina e matamos o bicho. Faltam
duas paragens. A família do outro lado da Estação Ferroviária de Lisboa-Santa
Apolónia, perto do rio, meia-idade, perfeitamente normal, apaixonada, abraçada,
com sede. E a última, entre a fábrica da Nacional desde 1849 e os Silos
Portuários. Como numa picada, como numa guerra, atravessa-se, passo a passo, pelo
meio de duas filas de vagões de mercadorias, enferrujados, poirentos, quase
orgânicos, expressionistas, pés bem assentes nos trilhos, Ajuda alimentar, boa
noite, alguém aí? Languidamente, olhando à direita e à esquerda, ajustando o
olhar no escuro, o ouvido no silêncio, verificando e perscrutando o canto mais
esconso, o buraco mais denso. Um elemento pula vagão acima, tenta uma panorâmica
geral, chama, nada. Para lá dos vagões, um descampado, árido, ervas, areia,
duas tendas gigantescas, arrebentadas, pendentes, aparentemente nenhuma alma
humana dentro, nenhum corpo humano, nenhuma réplica, muitos gatos, gordos,
escanzelados, peludos, carecas, velhos, doentes, esfomeados. O supervisor
avista um vulto ao fundo da tenda, sombreado, opaco, algo a suspirar
microscopicamente, diz-lhe que tem a comida junto a ele. Nenhuma resposta humana,
nenhum avatar, nenhuma raça, nenhum credo, apenas miares e choros, sem idioma. Pula-se
os vagões, um atalho, outro. A Brigada nocturna regressa a um bairro de
Alvalade, luminoso, chamativo, calmo. Cumprem-se os rituais de fecho de missão.
Nenhum eco pairante de consumição, nenhum sinal pairante de suplício, uma calma
de morte.
II, Ponto de vista do carro. Simples movimentos
descritivos.
Alameda Dom Afonso Henriques, uma
hora da madrugada, passadeira do lado do Hotel AS Lisboa, calor frio. Uma jovem
de trinta anos, calças brancas de hospital, camisa branca de hospital, chinelos
descartáveis de hospital, touca branca transparente de hospital ao pescoço, fita
de triagem de hospital no pulso, adesivo de soro descolado nas veias do pulso. Pára
junto à passadeira, descalça os chinelos descartáveis de hospital, vira-se ao
contrário, atravessa a passadeira ao para trás, lentamente, olhar em frente às
arrecuas, sorridente, despida. Pára novamente, na placa central divisória, um
carro pára também, apesar de estar o sinal verde. Estás bem?, precisas de
ajuda, não devias fazer isso, sabias? A menina sorri ao condutor, Muito
obrigado pela informação, se o diz, eu acredito, vou estar atenta, e
responsável. A menina atravessa a outra faixa, passa pelo meio de um bando de
jovens, indistintos, indiferentes. Como quem ensina o caminho ao diabo, diziam
os antigos. O carro arranca, hesitante.
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«No entanto, segundo fazia notar o
secretário-geral da Federação do Trabalho, os negócios resistiam a novas
quebras de actividade.
Autoconfiança para os sem-cheta e
apoio governamental para os que já tinham mais do que aquilo que podiam gastar,
esse era o plano. No entanto, os bancos dos jardins estavam húmidos todas as
manhãs, quer chovesse quer não; e era possível uma pessoa fartar-se, mesmo que
fosse de bananas.»
A Walk on The Wild Side, de Nelson Algreen (tradução:
António Borga e Salvato Telles de Menezes)