Já nem falo da sua primeira obra, do ano de 1988, mas “A Fei zheng chuan “(“Days of Being Wild”, no ocidente), é já, talvez, o ponto alto da carreira do cineasta de Shanghai.
É certo que os seus filmes sempre andaram a várias velocidades, a aceleração sempre conviveu com a lentidão e vice-versa, sempre existiu como que uma relação temperamental e impulsiva entre o sangue que corre, a latência e uma espécie de vigília. Mesmo que peças como esta, ou como “Fallen Angels”, pareçam correr a uma só celeridade.
É um cinema tão efusivo e por vezes tão impressionante que dá perfeitamente para divagar e imaginar fórmulas. Seria algo como a intensidade, a gravidade e os abismos absolutos do cinema de François Truffaut, com o niilismo, o desprendimento, a liberdade e mesmo o desespero (e aqui também Truffaut, obviamente) de Antonioni.
"Days of Being Wild" é a história de um jovem violento que vive com uma mãe adoptiva, na Hong Kong dos anos 60, que toda a vida perguntou pela verdadeira mãe, e que ao mesmo tempo acumula mulher atrás de mulher, num delírio metafórico e meio inconsciente, que lhe permite deslizar pela vida e pelos afectos e relações, sem o mínimo de comprometimento.
A maneira como Kar Wai trata a coisa, ou seja, a procura de identidade e de lugar, da raiz e do verdadeiro afecto, de uma razão e de um objectivo, das peças a se acharem e a se juntarem, é fulgurante.
Desmultiplica-se em elipses pela sequência e pelos lugares, raccords traçados por corpos e por ambiências, fragmentação obliqua do desenrolar das acções e dos gestos, entre os tempos, etc…Filme de câmara, cerradíssimo e recortado, daí uma ofegante sensação de falta de ar que encontra o seus reverso nos momentos de pura explosão e dilatação espacial.
Se a sensualidade e o erotismo poderão ser um centro primordial e fortíssimo no seu cinema, o que agudiza o empreendimento até aos limites e aumenta a vertigem, é a coabitação destes elementos, e logo dos corpos e dos lugares em questão, com uma languidez e um romantismo terminal, temperaturas e desejos a tocar o funesto, enfim, um doentio desfilar de desejos e pulsões.
Daí, obviamente, o feiticismo, com uma câmara que se cola literalmente à carne, aos décores e aos objectos, para deles sugar todas as vibrações e para revelar – daqui nasce a humidade, o suor e o factor escorregadio das peles e das texturas. Transpirações e olfactos que emergem constantemente à superfície e que se tornam como que saliências na imagem.
Para mim é por aqui que este cinema se salva do objecto e da construção «lego» e se torna essencial.
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