quinta-feira, 30 de abril de 2009

em 64 minutos, o mundo todo.


Penso que o texto do Daniel, publicado pela altura do festival de Berlim, e agora o do Luís M. Oliveira, dizem tudo o que é necessário, concordo em absoluto com cada palavra. Portanto, nos sumptuosos 64 minutos que dura “Singularidades de uma Rapariga Loira”, filme que, confesso, tinha uma vontade tremenda de ver, isto pois a obra de Eça de Queirós foi a que mais gostei de ler no secundário (a única?), o que me levou a fazer mais de 100 Km para assistir a mais uma peça essencial na obra de Oliveira. “uma espécie de amor frustrado”, "Convicção no cinema como uma arte clara e precisa". “Um filme sobre a dificuldade de trabalhar, de ganhar dinheiro, de ter dinheiro. Sobre o que fazer com o dinheiro que se tem, e sobretudo com o que se não tem. Sobre uma "moral materialista", sobre o trabalho e a cleptomania, a honradez e o arrivismo.” Perfeito.

Só mais isto: continua a ser impressionante a firmeza de um homem rumo à destruição e ao desprezo da maior praga do cinema e do audiovisual das últimas décadas: o naturalismo do tempo e dos gestos, a cópia-carbono do dia a dia, a ilustração. Oliveira já não necessita dos apêndices e das bengalas que praticamente todos os restantes realizadores precisam, basta-lhe o fundamental e o substancial , daí uma densidade e uma condensação total. Cada quadro é um tudo ou nada, cada quadro é um mundo e parece conter lá dentro o absoluto. A vertiginosa dialéctica estabelecida entre o velho e o novo; o texto de Eça e a Lisboa/Mundo contemporâneo; A crença no cinema como algo que põe ordem no cosmos e nas coisas, dito isto, temos todos os mistérios, a todos os instantes, no fora de quadro ou no som, nas luzes ou nas sombras dentro dele. Nos humanos. Sim, cinema de alguém que sabe tudo, mas cinema novo, fresco, com coisas perfeitamente inauditas, porque jamais duas janelas e uma rua a separá-las foi utilizada com esta essencialidade e, volto a dizer, vertigem. Porque aquele travelling rumo à tocadora de harpa, e logo ao par, não existe e só Oliveira assim o inventou. Ou porque em termos de planos novos, aquele que têm em primeiro plano uma mesa de jogo e em último Luís Miguel Cintra, a declamar Pessoa (até a uma coisa destas temos direito), também só existe uma vez. Ou aquele inicial, no comboio, em que o tempo entra mesmo… Grande filme pedagógico, pois nos dá a conhecer coisas, história, factos, os homens, mas, sobretudo, porque nos lembra o que o cinema foi e o que ainda pode ser. Gigantesco.

4 comentários:

Álvaro Martins disse...

Também estive a ler a crítica do Luís M. Oliveira e cada vez que leio algo sobre o filme dá-me mais vontade de o ver. Infelizmente ainda não tive oportunidade.

Ricardo-eu disse...

Tiras-me as palavras e os argumentos.
Estava a pensar comentar o teu post falando do maravilhoso Travelling ou das cenas do comboio ou do Alberto Caeiro declamado, mas referiste tudo!
Sem dúvida, dos momentos maiores do nosso cinema e do cinema no geral.
Melhor que isto ainda não vi este ano, apesar de Gran Torino estar ao mesmo nível, não?

José Oliveira disse...

sem dúvida. dois dos maiores dos maiores. custe a quem custar. e custa a muita gente.

Evandro Duarte disse...

Sensação semelhante tive ao ver/saborear O Sonho de Cassandra por esses dias. Um cinema de quem sabe e mostrando um frescor de novidade incomparável.