quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

boas festas


- «Só percebo quando acredito», Philip Marlowe, “The Lady in the Lake”, Raymond Chandler.



No derradeiro plano de “Juventude em Marcha” está contido todo o movimento do filme, da obra de Pedro Costa e do mundo enquanto mundo habitado dos homens. O velho e o recém-nascido. O velho em demencial e sereno equilíbrio e o recém-nascido espantado. Os monstros metálicos que mandaram abaixo as casas do bairro da Vanda. Os berços assombrados a todos pertencentes. Os pátios luminosos do recreio janela adentro. O obscuro monstro televisivo. O chilrear invisível dos pássaros. O apocalipse. A primavera. Passagem e equilíbrio cósmico. Se até aí a negrura intolerável das tripas e das teias do esquema social tinha sido vergada a favor dos merecidos na terra, tudo floresce a partir do buraco negro. O Princípio do Mundo.



Dezasseis anos antes Charles Burnett já assim tinha rasgado os confins para reiniciar a partir de um baralho sacudido pelas visões de um Novo Testamento. Novo, Primeiro Testamento. Em “To Sleep with Anger” o profeta escandaloso atravessa o caminho todo e o lar todo. Anjo e Demónio com o bem e o mal quebrados os finos liames. A serpente e as pragas nos bolsos. O mar vermelho e a pedra de Lazaro aos fundos ou no imediato plano. Harry, nome da graça, reduz a pó o próximo entre idas e voltas à prometida terra nunca vista ao mesmo tempo que mete o caos burocrático na ordem primeira. Em pontuação, fundido ou complemento, o menino mais novo do mundo toca a trompeta da luz inaugural entre a terra revolvida, as aves dos altos aléns e os vórtices da nascença. Andamentos carregados de gravidez e de cadáveres permanentes, para ficar limpa a imagem do Novo Mundo.


“Dark Magus”, Miles Davis, 1974. Ferragem carnívora, ventania revolucionária, fogo nuclear interno, tripas permanentemente tripas. O Punk, Chopin e os espinhos do calvário. A narrativa do centro dos centros.

Entre esses tempos e ligando-os na volta desconhecida, a juventude em marcha. A Ventura.

sábado, 26 de novembro de 2016


I've never had any difficulty defining
the differences between people.


The difference between people is what
they want, what they come from...


how much money they have-
all those problems.

But they're not groups of people.

The groups can go fuck themselves-
all of them.


To me, there's a name for each person.

I think it's marvelous to have a name.

John

terça-feira, 1 de março de 2016

o fim da aventura

«Os críticos disseram que era obra de um homem senhor do seu ofício: tudo o que me resta do que fora uma paixão»

Graham Greene

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016



De “Broken Lance” que Edward Dmytryk realiza em 1954 se diz que é um remake de “House Of Strangers” de Joseph L. Mankiewicz e por sua vez da história de Philip Yordan por Richard Murphy; mas a actualização ao para trás no tempo não necessitava de âncoras ou então tais só foram precisas para relembrarmos que estamos sempre a falar da mesma coisa, do José da Bíblia a King Lear a Oakley Hall: paixões tormentosas, fogos proibidos, infâncias perdidas, predilecções mortais, cordão umbilical, coração na boca.

Por isso, saberemos mais ou menos como evoluirão as coisas, como acabará a jornada e da forma que tudo começou, mesmo só o lendo nos cantos das expressões e em frases escondidas; a surpresa, ou seja, o terrível e fascinante do instante imprevisto depende do cada qual que cada um de nós é, e aí está todo o drama. Tratando-se de cinema a questão é de dramaturgia, e duas cenas se enlaçam e constituem o âmago clássico e logo o novo: começando pela segunda: a oposição derradeira em plano fixo de vários minutos antes das vanguardas entre Spencer Tracy e Richard Widmark, que só é tão dura e tão tensa para todo o passado se volver imediato e o imperdoável se impor; Widmark mete de fora as tripas da falta de amor, do abandono, do abuso; Tracy mede o pulso aos limites e morre; já se sabe do próximo capítulo. A primeira das cenas foi o encontro entre o torcido e retorcido Robert Wagner com a sabida inocente Jean Peters; sendo esse momento mais um remake de “East of Eden”, a forte menina faz ver ao frágil Wagner da maldade e da parcialidade horrenda do seu Pai, para evidenciar o amor do pai ao filho, e do filho ao pai; dessa luz paradisíaca sobeja o embate familiar mais antigo do que tudo, prometendo-se o eterno retorno ao fruto proibido.

Pelos meios da cena da morte e da cena da nascença - a vingança e o reconhecimento - a Mãe que vai olhar o desenlace de longe, impassível e a velar, como o lobo que ronda por ali desce cedo, centros da discórdia fiéis ao chamamento e fiéis à liberdade. Katy Jurado, sublime, trágica e mágica, que completamente se entregou e completamente cedeu passagem, orienta e faz-se ponto de vista de todo o filme, de todo esse grande arco. E a dramaturgia com ela, estancando-se para tudo sair de uma só vez, tacteando num novo mundo derivado e irreprimível. Por isso Edward Dmytryk faz parte do legado convocado, sempre em repetição, sempre no jardim inaudito.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016


“The Young Lions” saiu dali do final dos anos cinquenta e já com tudo para os sessenta, onde tanta coisa se decidiu e vergou, e na sua imensa força e fragilidade está ao nível de “Some Came Running” ou de “Rio Bravo”, mas também de “Meghe Dhaka Tara” ou “L'avventura”. A partir daí, muito do que foi já não mais seria, para surgirem novos cenários e novos mitos. A força tem a ver com o CinemaScope que não cede a nenhuma pressão – nem quando treme nas bombas sem efeito especial – às variações de temperatura ou de paisagem, personalidade ou ambição. Fragilidade pois qualquer um dos três protagonistas, seja o alemão de Marlon Brando ou os quotidianos soldados americanos de Dean Martin e de Montgomery Clift, são resolutamente verticais, medrosos, heróicos e cobardes, estóicos e desistentes.

Com a guerra no seu encalço apaixonam-se vezes sem conta, para permanecerem inocentemente fieis. Brando é o caso mais complexo, desde que olhamos para ele que temos a certeza de que nunca será nazi, e assim continuaremos com a certeza até ele morrer como um grande, depois de se ter escapado – não mata os seus comandantes como sabemos que lhe apetece, mas antes de um passeio à Philippe Garrel com alguém que o percebeu diz a esse alguém que pensa como ela mil vezes ao dia, guerreiro encolhido no seu brilho, vencedor na arena dos perdedores. Dean Martin começa na sua imagem de marca, a conquistar os amigos pela bebida e pela disponibilidade e as mulheres pela simples presença, evoluindo até se despir de todas as cintilações e famas que nunca pediu e permanecer nessa expressão descarnada de melhor amigo. Quanto a Clift, do nada surge despido e despido acaba, como a criança mais pura e sem saber como se comportar na terra de todas as dissimulações (sobretudo quando tenta a mentira, recurso fácil dos nada opinativos), e desse modo tanto conquista o anjo loiro que lhe dá um filho como pena infernalmente no clube dos duros para onde é chamado por não ter família nem significado. Quanto às mulheres que vão surgindo e lhes vão deitando a mão, todas têm as suas razões, da esposa do nazi com influências que se sente mortalmente sozinha até à francesa que perdeu o marido e não vai na lengalenga da paz proferida pela boca fora; quando tudo acaba só Clift entra no lar, mas qualquer uma delas apelaram a isso mesmo, silenciosamente.

A grande vitória de Edward Dmytryk está em ter trocado o génio e a glorificação que o tema e as vedetas teriam assegurado para ir pelas sendas e pela mão da disponibilidade, entendendo o que só o tempo pode permitir entender. Seres resolutamente verticais, medrosos, heróicos e cobardes, estóicos e desistentes, enquadrados ternamente pelo formato largo que lhes agiganta a verdade e perscruta o inominável; distância que expõe as feridas – Clift tem aqui afinal o seu papel e a sua biografia mais profunda, grave e esventrada – mas também busca a cura; firmeza que se impõe nos abalos terríveis às fundações – sejam os campos de concentração, seja o mal praticado como bem cego (tremenda a condensação de Maximilian Schell) – permitindo a passagem aos bons sentimentos; escutar os rumores finos e secretos que contradizem a bruta aparência. E o fundamental é então disso – no centro terrorífico da nossa História, pelo cinema, resguardar alguma coisa, o olhar estraçalhado mas firme de Clift como o regresso a casa. Mesmo ou sobretudo depois do encontro dos três na terra do nunca, onde é mais uma vez a raiva e o susto que operam sem controlo. Mas o olhar como a câmara frontal assim inatos nunca mentem, e muito se resguardou ainda.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016


“The Killing” não é um mecanismo perfeito, um relógio suíço montado e mantido à maneira de Jean-Pierre Melville. A começar pelo actor mais visível do grupo que almeja o golpe das suas vidas - longe da possibilidade de ser um ponteiro firme como o foi Alain Delon, Sterling Hayden, talvez ainda agitado pelos ventos e fogos de “Johnny Guitar”, treme por todos os lados e ainda por cima tem o destino a fazer-lhe marcação cerrada.

No grupo há pouco ou nenhum do sangue frio necessário para tais movimentações e timings, e a forma como Stanley Kubrick monta o mosaico ou o explosivo apenas manifesta o antro de perdição em causa e a incapacidade dos artifícios formais e do génio da manipulação artística para investir contra a ontologia puramente e fundamente humana. Casais criados pela manipulação do sexo e do dinheiro, solitários mantidos em acção pela violência a testar, a doença e a fidelidade e o vício indomável em atracção, é desta matéria composta as almas e os corpos em pulsões turvas e turbulentas, que terão de funcionar como o tal objecto imparcial do tempo e do espaço científico.

Ao invés da ciência será o sagrado a advir, isto é, a imprevisibilidade, a transcendência, a síncope que a missão humana ostenta em relação à máquina. E da gama de sentimentos ignóbeis que cobrem e riscam a crosta do preto e branco para também lhe retirar a gaveta do género noir, há resguardada a noção e a luz clara de que nem todos são assim tão odiosos. Ao invés do circo da política, do circo das finanças ou do circo da segurança social, da polícia e da lei, enfim, ao invés das autoridades protegerem as pessoas, a carne e o osso, os cidadãos, os frágeis, a nação, etc., parecem eternamente trabalhar contra eles – nunca se há-de compreender o grande paradoxo da chamada sociedade oficial e é isso que faz cair os protagonistas deste filme. Ao invés de a política servir as pessoas, faz-lhes a vida negra, e é isso que faz cair os protagonistas deste espelho.

Depois de tanta coisa feia, o final é o instante mais feio, essa cena desconsolada logo depois do acaso da ciência e do acaso do sagrado se embrenharem. Porque entre tantas girândolas contradiz ou continua o desfecho do anterior “Killer's Kiss”. Ao abraço sucede-se um abandono de um desejo tão lindo e, sem dúvida, puramente inocente. Yeah... What's the difference?, responde Hayden ao amor incondicional, e tudo é desamparo e armas apontadas, suplício e Apocalipse. A cruz de KK invertida, a negação em hipótese, e o resultado de tanta perfeição dos nossos altos. Mas já a possibilidade de uma moral de toda a obra de Kubrick: toda a espantosa precisão só revela da destruição. Ou seja, uma generosidade que tem de permanecer trancada. Porque em primeiro ou em último plano demencial.

sábado, 6 de fevereiro de 2016


Recuperado recentemente como deve ser, “Fear and Desire”, primeiro filme longo de Kubrick em 1953, é um impressionante topo que se liga e religa com os finais da sua lenta caminhada. Topo imensurável e de espaço ecoante no abismo cósmico e no presente que nos vela, como as mentes e os antes e durantes e depois da lembrança. Em acordo com tal, já é a soldadura do “Apocalipse Now” de Coppola com o Terence Malick essencial, dos contrários e das pontas, compactando-se a loucura e a busca, a serenidade e a nostalgia, na pena de Twain ou na película de Philip Jones Griffiths. Milhões e biliões ou um segundo entre a primeira montanha e a última que é a mesma. Dos coros celestes e do muito terreno. Mas por agora, um passo em frente.

“Killer's Kiss “ é um filme surpreendente, e também muito por parecer umbilicalmente ligado aos cinzentos, negros e brancos gastos dos empreiteiros da série-b e dos noirs; um H. Lewis ou um Tuttle em romantismos terminais que só almejam a nitidez da realidade, o lavar da face depois do sono; mas mais do que isso porque reduz ideias feitas que só servem para aplacar o ser-humano à condição relativa do sopro que nos segura eternamente no fio da navalha. Na vida, o mais leve dos ventos como o discurso mais veemente pode mudar o curso de todas as coisas.

Segunda longa-metragem de Stanley Kubrick logo na entrada nos afasta do epíteto do mestre frio e gelado para nos colocar num palco ultra-sensível que faz lembrar o Chaplin de “Limelight” e a história grave do palhaço velho e da bailarina suicida. Jamie Smith é um boxeur com a data de validade pronta a esgotar, dessas velhas promessas constantemente adiadas, que levou a sua carreira sempre a baixo das potencialidades, sem se saber se por falta de jeito, por preguiça crónica ou azares da vidinha. Irene Kane é Irene Kane, corpo frágil e alma ainda mais frágil, melindrada da nascença pela morte de quem a trouxe ao mundo. Sozinha nestes palcos agarrou-se à bailarina desfalecida que foi a irmã e ainda não ajustou as contas com o progenitor. Mora mesmo ao lado do lutador e mediante tais circunstâncias o encontro estava marcado.

A figura do looser que vamos encontrar, a lamentar-se dos sucedidos e a convencer-se de que não serve para nada, junta-se à boneca de porcelana que escolheu viver entre espectros e no espectro mais sombrio. E o fascinante desta construção fílmica tão triste como radiante está no paralelo entre a dança e a violência dos combates com o angélico esvoaçar desses alguns anjos caídos que em branco se entregam aos mais inocentes e voluptuosos movimentos. Um encontro assim, mesmo com a bênção de alguma providência sagrada ou não, teria de passar pela mais medonha provação. E passa mesmo, acontecendo nessa espécie de dia alongado ao pesadelo, pedido ou estropiado à noite, as agruras e rugas das etapas de uma vivência – dos ciumes à inveja, do incompreensível ao milagre.

Assim, entre alvoradas cheias de pássaros divagantes, recordações ao retardador e luzes da ribalta desabadas como as da cidade que anoitece em longo fade, o espectáculo da confrontação entre iguais dá-se em torno de homens e mulheres artificiais, modelos impassíveis que assistem nas tintas às nossas disputas; metidos no meio e a ajudar decisivamente à festa. Quando a penúltima cena se esfuma e cede passagem à merecida oportunidade, fica uma máscara que se ri de alguma coisa séria ou ridícula, mas sem dizer do quê. E então o realizador glacial sentiu das entranhas e do coração de Chaplin, estilhaçando a mitologia do perdedor e da beleza da perdição, dando um last shot ainda à maneira de Sylvester Stallone, em bailado transcendente, abraço ou cruz reservada no centro da multidão. É coisa muitíssima, em rotações estonteantes, dos sapatos de veludo ou de cetim às luvas do boxe, que nos permite girar mais algum tempo. Embalados por um tema musical que agradece a Eternally, o Terry's Theme de Charlie Chaplin. Triste e belo. Como choro seco.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016


Cinematograficamente belo é o primeiro quadro do genial “Barry Lyndon”, atmosfera indefinível onde a presença de espírito alguma vez experimentada ou simplesmente pressentida faz sentido; ou uma aurora de David Wark Griffith, o acordar do mundo em consonância com o espanto de um novo olhar impresso na nova película. Mas também a entrega e a perdição e a garra de Robert Kramer nas suas viagens aos confins de tudo, rumo a pessoas. Mas um pouco ao lado das esferas cósmicas, ou precisamente envolto nelas, uma mulher a unir-se a um homem, ou um homem a unir-se a uma mulher, por crerem sem ver o mais secreto da sua existência, é do mais belo que o tão desconhecido universo e o tão desconhecido cinema pode oferecer.

“Three Days of the Condor” é uma narrativa de espionagem, de ar do tempo e futurologia, mas é também, ou acima de tudo, um esplendor estético simples, desses sem qualidade demarcada ou controlada; essa aceitação sentimental de dois seres que se aceitam só pelo olhar e pela temperatura e tremor de um corpo ascende à categoria indizível das emoções. Evidentemente que no prólogo há armas, ameaças, altercações, mas nunca olhares mentirosos sobre o fundamental. Robert Redford é um peão num jogo que ultrapassa os comuns e no momento de aflição recorre ao acaso. E vira-se para Faye Dunaway, a fotógrafa que escolhe os meses incaracterizáveis de Novembro para mesmo assim esvaziar a paisagem, deixando só os aros de suporte de todas as coisas. Redford, ao vê-las e ao elogiá-las, vê-a a ela e elogia o seu recôndito.

Mas o tempo e o cerco ao mundo continua a girar e Redford sai para a luta. Volta a casa e redescobre que só nesse ser que tem algo magoado nas expressões básicas pode confiar. Tinha-a prendido, mas ela solta diz-lhe que não tem de a amarrar mais à força. Depois brota o inadjectivável e o patético da paixão, aqui reforçado pelo insólito do tal acaso - falam das coisas que só se mostram aos muito íntimos, do que só se deve contar a um, do inseparável. E a noite do amor chega tão de rompante como o encontro deles, misturando-se os corpos com os segredos, o desejo com a libertação, o fixo com o movente, o fugaz com o pleno, de onde a morte fica parte relativa.

E aquilo que poderia ser um beco da humanidade e do poder feio como o grão surgido nas emulsões que quer espreitar torna-se belo por esse sol que se decidiu a brilhar no buraco longínquo. Vai entrar no filme obrigatoriamente o ritmo da acção e o laboratório do argumento, a calibragem no gume da faca e o jogo de espelhos e reflexos; mas no centro dos massacres e dos desesperos globais, aquelas duas criaturas escondidas vão brilhar em resgate – a despedida na estação de comboios típica das despedidas é a possibilidade de salvação global pela entrega sem freios. O desenlace garante da imprevisibilidade absoluta, estacando o filme no realismo necessário, mas a luz de Frank Borzage já tinha eliminado pelo menos uma grande porção de sujidade.

“Infortunadamente, a culpa não é nossa, mas sim da nossa fragilidade, / porque assim somos, tal como fomos criados!” escreveu Shakespeare em “A Duodécima noite”. A propósito de um filme de Sydney Pollack que nem é dos mais representativos do seu tempo só expõe da irresponsabilidade do par central que passa todo o tempo a velar-se de tudo e de quase todos, na treva presente. Irresponsabilidade, aquilo que Redford também desejou para o suposto mecanismo perfeito da Nossa organização. E que ele pelo medo mas sobretudo no ápice do sentimento decidiu enfrentar. “Three Days of the Condor” é um filme muito belo, pois no ápice do degredo ainda se ousa o amor, trocando-se o suicidário pelo sublime singelo.

* Ver, se ainda possível, na versão não-remasterizada, essa original onde nada foi limpo para efeitos datados. Os escuros sem medo de se escurecerem; o grão pulsante, fervente, esventrado ou sossegado, nunca amansado; as sombras como os brilhos e as almas, tacteantes.

domingo, 31 de janeiro de 2016


Com “Exodus” Otto Preminger atira-se para as incomensuráveis escalas em irresolúveis tabuleiros (a ruína ameaçadora de "Anatomy of a Murder" ainda era sustentada ao mesmo nível pela serenidade de James Stewart). Planando e escavando no abismo as salas irrespiráveis ou a largueza do primeiro plano deste filme comportarão a mesma compressão atómica. A missão do Israelita de Paul Newman ou a do árabe que ele enterra no final vai da nobreza clara até à mortandade inominável; os montes sagrados que eles pisam, respiram e contemplam têm inscritos as câmaras de gás de Auschwitz; Moisés trazido no instante da paixão que une todos os povos entrelaça-se nas utopias de Hitler que circundam cada balão de oxigénio e cada ocaso de fulgor dourado. O momento mais belo poderá ser o da história contada pela menina loira, que também será enterrada inacreditavelmente ou normalmente, ao Sal Mineo que deve ter queimado as pupilas nos limites que experimentou e já não destinge nada – história de fugidos, de reis e de fraternidade. Lembrar-se-á dela um dia, talvez quando não consegue atirar terra para a futura mulher, antes de partir furiosamente para a guerra, depois de o seu rosto mostrar que percebeu a inconsequência.

E a inconsequência já faz parte da descomunal dialéctica do duplo funeral, dois seres opostos unidos abaixo da terra, onde se chega à conclusão de que só os mortos partilham a paz; onde se reconhece que a terra final é a terra universal e aí a partilha é absoluta. Essa dialéctica, ou seja, o embate cego, surdo, mudo e sangrentamente omnívoro, estilhaça e extravasara no poder de fogo e no fogo que se escuta e se humilha, nas bombas que se impõe à inteireza do discurso de Newman, a terra a arder em combate com o rosto grave, cavado e já angélico de Eva Marie Saint – figura do incompreensível divino. Maria, José, os meninos, a terra prometia por que lutar, e mesmo assim o Apocalipse a cantar. Mas igualmente incompreensível e terreno é já o epílogo sempre prometido à raça – homens, animais, bichos e santos cavalgando para a morte, depois de no segundo anterior a terem olhado de frente e de dentro, à procura da paz do eterno e da justiça abstracta de que se falou. O apuramento do plano-sequência de Preminger surgiu pela necessidade de ver melhor tudo disto, fielmente e duramente, prendendo os opostos como a lucidez e a loucura no campo comum. Perene contradição e descomunal olhar que tudo abarca - os próximos filmes de Preminger iriam aos confins materiais e metafísico para exporem deste tipo de inferno na aparente normalidade e na aparente seriedade – em eterno retorno lá para 1965. Acima da terra da nossa paz.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016


Certeza absoluta: os longos filmes com que Otto Preminger entrou nos anos sessenta são tão eléctricos como “Whirlpool” ou “Angel Face”. Uma qualidade outra de electricidade que só pelo largo scope transforma o vácuo em abismo tão centrado como na típica janela clássica dos citados fantásticos (de tão vísceros). O crescente drama moral de “Advise & Consent” passa certamente pelos homens direitos de Henry Fonda e de Don Murray que mentem e se matam pela preservação da liberdade de escolha e da liberdade de contradição, da personalidade e dos limites, ou seja, a elevada redenção; encontrando-se e falando esses homens no abismo mais aterrado e aterrador que une o presente ao passado sempre actuante. A despedida de Murray para com a sua mulher e filha é um dos grandes momentos do cinema americano pois estilhaça os valores de perseverança que John Ford conservou e ousou inclusive além morte. O restante coro, do miúdo dos olhos limpos estupefacto à velha rata de Charles Laughton, sabido, imprevisível e queimado de tantas imagens e sons mesclados, não esquecendo o presidente consumido e disponível, vão ligando e desligando interruptores, na nossa perene crença e descrença que ainda nos segura.

Scope que vai dos corredores privados onde se joga o social aos patamares míticos para turista ver, dos quartos de casal aos ecos perdurantes da História naquela Washington Grega e Romana; deixando ainda todo o barulho e actualidade - a guerra iminente mas também a paz e a podridão seculares – ao lado desse campo de pressão e de tensão onde o instinto parcial pode cheirar tanto a verdade como os factos ou o asseio curricular. É esse tipo de choques que esta encenação faz faiscar em primeiro plano – os valores julgados indestrutíveis contra o momento fatal: seres em alta rotação, devorando o espaço e o tempo sem consciência, à maneira da geografia estonteante em “The Cardinal”. No términos, nada se decide depois de tanto se ter escancarado do processo ou dos circuitos complexos do cérebro e da máquina. E a câmara de filmar anda para ali às voltas, a divagar, a ziguezaguear, tão à nora como a lógica procurada. E sente-se na pele, e na cabeça, sem fio terra ou filtro protector, que os únicos homens tombados são ali os que continuam de pé. Fantasmaticamente mas sobretudo poderosamente vibrantes.

sábado, 16 de janeiro de 2016


Se neste mundo a justiça fosse plena, assim como a lógica, um filme como “Hitori musuko”, “O Filho Único” na nossa língua, um dia haveria de acertar as contas com ele, ajustando todos os atritos, voltando a um princípio claro, cheio das oportunidades e da afinação que certa vez nos concederam. A beleza de Yasujiro Ozu sempre foi a beleza inequívoca da passagem, chegando-se lentamente e normalmente do novo ao velho, do arcaico ao moderno, do nascimento à morte; e do dia à noite, aqui literalmente pelo milagre da exposição e da fusão da película. Passagem agarrada no seu pleno, numa construção indestrutível que revira inclusive os pressupostos e a cronologia. Mas nesta caminhada da Mãe que sacrificou a vida toda para dar o melhor ao seu filho, chega-se ainda a outro patamar de passagem. Sacrifício que pretendeu a honra, a posição social, o bem-estar financeiro, mas que pelo acaso e pelo fundo que passa de sangue para sangue, de espírito para espírito qualquer, se volveu dignidade. Na aldeia velhinha era a tecelagem e os sonhos fora dela; na Capital nova esse compasso mecânico e o seco desengano. Da aldeia sai-se para se ser maior; a Capital espeta cada um no seu devido lugar e altura. O professor que largou a sua terra para evoluir e acabou na evolução a vender carne frita. E a Mãe que redescobriu o filho por quem se esfolou já com mulher e um filho também, mas de cabeça baixa, paralisado nas contas da consciência. Onde as elipses são toda a história possível deles e de nós marcada na face e na alma. Se neste mundo a justiça fosse plena, assim como a lógica, as lágrimas e as palavras da Mãe sobre a importância de continuarmos de pé e de construirmos o nosso trono valeriam para todos e cada qual, ajustando a ganância e o arrivismo, ruído abjecto que humilhou o canto iniciático. E o silêncio final, porventura terminal, desencanto volvido encanto, luz singela da satisfação plena da naturalidade, teria a força dos conquistadores primitivos, dos projécteis lunares. Como o teorema do quadro do professor pobre que só lá pode estar para reequilibrar as crianças e nos reequilibrar sabidos. Naturalmente.




Creed”, oferecido por Sylvester Stallone a Ryan Coogler tal como há milhões de anos lhe tinham dado a única oportunidade, larga-nos obviamente na escadaria monumental que urge subir, para vermos toda a vida e toda a terra, dois seres fundidos contra a violência da prometida solidão, eternamente. Daqui a mais alguns milhões de anos, continuarão lá, o velho acabado e doente abraçado à estrela do momento mais ofuscante, sem distinções e salvando cada queda mal dada. Rocky Balboa é uma Mãe doce de Ozu, um obstinado puro de Frank Capra e um Hawksiano firme como um cepo. Pode dizer-se Mãe dura como um cepo de Ozu, um puro de Hawks, e um doce de Capra. Pode continuar-se a inverter as combinações e tudo dará tão certo como o dito teorema. Chegando-se à conclusão de que a arte e a moral de Stallone nunca foi a do romantismo mas antes a do trabalho, da realidade bruta, disciplina como na guerra ou no xadrez, sem comiseração. Essa dedicação bela que retira a carga negativa ao sacrifício. Mais perto dos pequenos clubes desportivos do fundo da tabela que vão fazer o brilharete ao campo dos tubarões do que das metáforas testamentais. Stallone vai à prisão ver o miúdo que ele mesmo foi há uns dias e promete não se matar vivificando o seu duplo. O miúdo perde e ganha as noites no hospital que é um lugar como os outros. Stallone sussurrou-lhe do tempo, o único adversário invicto, que importa agarrar na essência; isso é, vai-se compreendendo na demanda do conto, misturar os humanos uns com os outros, no suor e nos abraços, na carne e na experiência, sempre a aprender e a passar, unos, principiantes, consumados. A Mãe, Sly, o puto de Ozu ou de “Creed”, nas rezas ou nas noites perdidas das questões impronunciáveis, na aflição ou no momento do condão de fada, de certeza comungam com Robert Musil em "O homem sem qualidades”: «Deprecio pessoas que não seguem a expressão de Nietzsche: “passar fome na alma, por amor à verdade”; os que recuam, fracassam, os moles que se consolam com doces palavras sobre a alma, e a alimentam com sentimentos religiosos, filosóficos e poéticos que são como pãezinhos desmanchados no leite, por recearem que a razão lhes dê pedras em vez de pão.»

1936, América das oportunidades, 2016 ou o Japão expectante, a limpar o chão ou a tentar caçar galinhas, com o título mundial na palma da Mão ou prometendo ao bebé que dorme – movimentos embrenhados, encontrados e passados algures no tempo e no espaço que nos envolve, de onde a fatalidade se ajusta também. Em pleno, olhando o desenrolar e o encontro. Um passo... um soco... um round... os eixos partidos do nosso pedaço a recomporem-se. Doridos e felizes.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

«Zidane tem o lado misterioso que rodeia as estrelas. É um mito capaz de despertar emoções nas pessoas, nem sempre positivas. Não é uma estrela sem problemas, não é um indivíduo gentil. É capaz de qualquer coisa e isso faz dele um deus humano.»

Raymond Domenech, “Le Monde”

John Garfield condensa o máximo de aprumo e o máximo de suplício. O bloco perfeitamente depurado à pedra bruta. O tremor em definição. Deve ser por isso que Jean-Marie Straub o eleve tanto em película como fora dela. Em “Force of Evil” a sua personagem é também uma estrela do seu meio. Resolve o que tem a resolver, escava a solução escondida, desbloqueia o caminho. Sempre em alta cilindrada. Impossível de travar sem choque mortal. E não pensa que está a cometer o Mal. A planar nas suas sendas. Não sabe do que trata tal coisa pois nele esteve sempre metido. Não faz sentido. Muito menos o remorso. Não se recorda do antes e para um depois só a tragédia lhe desvenda a outra face. No seu terreno, no berço, no leite materno, onde o medo operou em cada acto, esquina e hora, foi o que lhe calhou. E querendo responder ao medo tornou-se o melhor da sua rua. A estrela. O Deus da luz indefinível. O dinheiro, a traição, os balcões dos cafés das seis da manhã, os cigarros em consumição, o clamor da carne, a morte a cada segundo no coração, no ar que se respira, a fidelidade. Deus, moral, amor, ensinados como a qualquer criança. A inteligência nada mais é do que seguir as correntes vitais. Homem capaz de muitas coisas. Do mais rasgado estender de mão até à cobardia degradante, a fórmula de grandeza segundo John Steinbeck. A bíblia sagrada com o velho e o novo, os livros, capítulos, versículos. Nos cúmulos orgásticos de “The Sign of the Cross” de De Mille – a víbora a tentar em torno do anjo e o desporto da raça perfurada – travam-se de razões a fé e o poder, o canto e o barulho, o sexo e o amor, a fossa e o divino, a beleza e a sua anátema – para na ascensão final se virar as costas a tamanhas dialécticas em direcção à chamada silenciosa. O rosto de Garfield, esse pequeno rectângulo espacial, em alegria, terror, desarmado, genuíno.




«Of all the Marxists who came to Hollywood, Polonsky was the most successful – single-minded, if you like – in setting the capitalist ogre within a gilded narrative frame. The scripts for his late-forties trilogy on the profite movie (Body and Soul, Force of Evil, I Can Get It for You Wholesale ) reveal characters so obsessed with money as to make Greed, by comparision, look like A Christmas Carol.»

Richard Corliss, “Talking Pictures”

Abraham Polonski conheceu e viveu pelas arestas da sobrevivência, e não perdoa uma nem se escapa a uma. A cena da matança derradeira tem a inevitabilidade de toda a ambição humana. No barril de pólvora completo só a explosão liberta. Nesse fogo, a sombra ajusta todas as contas. Orienta os estilhaços. Uns para um lado, outros para outro. Cena que rima inevitavelmente com Garfield a unir-se ou a entrar na menina inocente. Os seus fundos e as superfícies destacadas numa claridade que vale por si. Foram um ter com o outro e essa é a história. Ele diz-lhe do medo, da solução única, da verdade. Ela diz-lhe que só sabendo do mal não consegue deixar o mal. E a tragédia destapa-se toda. Revela-se lá no fundo das escadas todas. No centro do mundo. Onde se descobre que a vida é longa e o fim a acompanha. Foi preciso descer tudo para se revelar a altura dos homens. John Garfield e as lâminas circulares dos eternos retornos. Dos mármores e dos mitos. Da alma e do sangue. Polonski e Cecil B. DeMille, o realista e o fantasista, tão longe e tão perto como o corpo e a alma podem estar. Na descida e na subida, a falarem e a encontrarem-se.