quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Filmar assim devia ser proibido. “Sparrow” é um festim, um tour de force. Livre e evocativo. É Demy e Tarantino. A graça e as deambulações de um e o fetichismo do outro. É To acima de tudo, aquele de "Running Out of Time", por exemplo. O cineasta e os seus actores a curtirem a sua cidade e a exporem a solidão. Repito: filmar assim tão bem, trabalhar desta maneira o som…

c'est du cinéma...

terça-feira, 25 de novembro de 2008

“Honkytonk Man”, de Clint Eastwood, foi um daqueles filmes que me arrebentou todo. Mais, o que eu ia pensando para mim durante o visionamento do filme era algo de absoluto, reconfortante e seguro, e, reconheço, um pouco infantil. Reacção semelhante às imagens e sons (e neste caso à personagem de Clint) que ia recebendo do ecrã, só me lembro de ter tido com “No Quarto da Vanda” do Pedro Costa. Na altura disse para mim: "foda-se, o cinema é isto, só pode ser isto e nada mais, o resto é merda!". Uma estupidez que nesses momentos de arrebatamento é impossível, pelo menos para mim, escapar.
Durante e de depois da experiência transformadora de “Honkytonk Man” tive a certeza absoluta de que o classicismo, os actores e o respeito pelo mundo real são a razão de ser do cinema, a maneira imbatível de o praticar. A única. Pelo menos a que me interessava. Pelo menos a que eu queria praticar, com aquela câmara à altura do homem, aquela découpage extraordinária e serena, aquele trabalho orgânico sobre a luz (inacreditáveis as cenas em que Eastwood destila a sua música), aqueles homens em vez de bonecos. E a secura, uma drenagem primitiva que jamais permite qualquer efeito de cinema que não advenha do real ou da carne. Obviedade para trás, obviedade para a frente (inventar o quê?), jamais depois de Ford e Hawks vi o cinema desenrolar-se assim, com tal acalmia, com tal saber, com tal simplicidade e evidência. Não precisamos de truques de narrativa ou de maneirismos formais quando estamos a seguir as motivações e as pulsões de uma personagem assim. Jamais depois de Eastwood, excepto nos seus próprios filmes, senti que o cinema clássico e puro ainda acontece.
O filme começa em plena manifestação dos elementos naturais, com a poeira da terra e o vento a mandarem aquelas pessoas do interior americano para dentro de casa. É o panteísmo de Eastwood a rimar com o panteísmo do Ford de “The Grapes of Wrath”. E vão existir tantos reenvios, uma sensação tão próxima a esse filme, mesmo no que diz respeito à viagem e à procura, à utopia de fixação, à resistência. Uma das personagens (o comovente Grandpa) vai pegar num pouco de terra com a mão e exaltá-la, exactamente como no monumento de 1940. As sensações são as mesmas, o tom crepuscular também. Ainda vale relembrar aquele extraordinário plano em que a família, já dentro de casa, observa através da janela a chegada de Red Stovall – que ali, bebedeiras e estados físicos e psicológicos aparte, se podia chamar Ethan Edward, como o John Wayne de “The Searchers” – o homem que apareceu do vento e do nada.
Só um homem como Clint, já em 1982, para se encenar numa longa e dolorosa caminhada, numa última caminhada, com essa consciência do fim. Se aquele tivesse sido o seu último filme, diria que o cinema da velha Hollywood tinha acabado ali. Sem dúvida. Como foi possível um homem, acompanhado por um rapaz – numa relação e afectação muito próxima com um filme que Eastwood faria nos anos 90, “A Perfect World” – atravessar assim a América, a sua mitologia e os seus espaços, cultivando e espalhando a sua arte, a música country e o cinema, tão junto daquelas gentes e daqueles lugares, para se auto emular por um sonho. Para eternizar o que lhe está no sangue, na sua origem. Do nada viemos e para o nada vamos, a importância do legado e da memória, por mais singelo que seja, é agudamente exaltado naquele final simplesmente brutal. A personagem de Red Stovall, um homem simples que sabe que está a morrer e que mesmo assim recusa qualquer iniciativa de tentar uma cura para a sua doença, que recusa tratamento e que bebe mais e mais, que se consome mais e mais, que vais aos limites num objectivo e numa relação, que não desiste nem olha para trás por nada deste mundo, fica como paradigma da grandeza de um cineasta e de um homem. Vale a pena relembrar o que Olivier Assayas escreveu num célebre texto para a Cahiers du Cinema: “A obstinação que leva Eastwood a filmar puros e simples arcaísmos, destinados a público nenhum e pegando ostensivamente o contrapé de todos os valores que a Hollywood de hoje coloca como os mais altos, não vem de um ator egocêntrico, de um cineasta azedo ou de um produtor revanchista. Esse cinema familiar, ao lado da fogueira, vagamente elegíaco e inteiramente impregnado de paisagem americana não tem uma utilização polémica, não pertence a alguém que deseja dar uma lição ou de um nostálgico da velha Hollywood, esse cinema é simplesmente o cinema de Eastwood.”
Nada de mais justo para este cinema do humano e da terra, dos valores e da reminiscência, da humildade e do sagrado. Uma caminhada para a morte que significa uma caminhada para a eternidade. Como no último plano, câmara baixa e quadro rasgadissimo, os dois jovens em direcção ao infinito e à vida, o passado a fundir-se no presente. Todos os tempos naquele bloco de tempo.
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Crescendo de euforia e comoção. "Gran Torino" está quase aí. Que imagens, que voz.

sábado, 22 de novembro de 2008

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O que dizer sem recorrer muito à componente sociológica que cerca este filme (interiormente e exteriormente)? Que estamos tão longe de uma poética e de uma nostalgia de um François Truffaut ou de um Jean Vigo, obviamente, como do lirismo, derivante do real e das suas convulsões, de Pialat, que muitos, inconscientemente, tentaram fazer ponto de contacto com este “Entre les Murs”, para além do prémio de Cannes. Também se pode dizer que estamos afastados do arrebatamento lírico e niilista de Gus Van Sant e, acima de tudo, do cinema americano, e dos filmes glorificadores associados ao género.
Lauren Cantet é um cineasta singular, pouco ou nada o liga aos seus contemporâneos Franceses (dos mais antigos até à geração de Assayas ou Desplechin) como nada o une à velha tradição ou a qualquer baliza. Não cinéfilo (no que transparece no produto final), o que para a sua nacionalidade e meio resume muita coisa. Não faz nunca à maneira de, nem sequer deixa transparecer marcas, antes é alguém atento e dedicado ao real, às suas agitações e nuances, interessado na matéria que ocupa o quadro. Não tanto à porosidade e organicidade das coisas em si, sim aos movimentos internos ao plano, aos movimentos existentes nos lugares. Atento ao humano e às suas relações e contradições, como atento à sua disposição no meio. Não temos estilo, mas também não existe displicência, muito menos esta mise-en-scène, um pouco agitada e convulsa, têm a ver com essa onda de praticantes do faux-raccord e de uma vitesse que deve tanto à nouvelle vague como a um Cassavetes, ou mesmo a qualquer série televisiva (aliás, este filme junto com o último Romero é um belo antídoto a essas coisas).

O empreendimento é simples e à sua maneira radical: respeitar o real, os corpos dos não-actores e o seu discurso, permitir a imanência do segredo. O segredo aqui como espelho que quebra o que à partida poderia ser a armadilha do dispositivo. E toda esta formalidade, no perfeito e sereno domínio dos materiais, só está em consonância e a permitir o surgimento da fatalidade. Fatalidade que é o centro fílmico e o lado perverso e nada puritano do filme.

Ali, entre os muros, a personagem interpretada por François Bégaudeau, ou os seus colegas, não tem saída, estão condenados a escorregar em armadilhas e em problemas que os ultrapassam, que são antigos e que não lhes compete mudar – têm a ver com a base. Para não entrar mais na componente sociológica, basta dizer que o professor ali está inevitavelmente lixado, pronto para se queimar, o seu método só servirá para apaziguar ou para disfarçar, para passar mais um ano. Esse perigo é inerente à profissão. Aquilo, o ensino, está mal feito - é a malvadez e é o triunfo da posta-em-cena de Cantet. Uma câmara e uma montagem que destila esse confronto, essa batalha entre os dois lados, daí que o ângulo certo e a duração justa permaneça sempre tão fugidia, porque em comunhão com a matéria e com o cerne. Basta notar como a dramaturgia das cores é perfeitamente inteligente, porque fria, pálida e plana, em consonância com a justeza do olhar e da distanciação usada pelo cineasta. Distanciação? Sim, pois nunca o filme nos enclausura em sentimentalismos ou melodramatismos, nunca entra em condescendência, antes deixa o ar e o espaço necessário à construção e à dúvida, à verdade singular e não adivinhavél de cada ser. Portanto, o contrário do aleatório e do maniqueísmo. Filme sequíssimo e essencial, é uma lufada de ar fresco.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

“Fixed Bayonets!”, de Fuller, é sumptuoso, para tal empreendimento as palavras serão sempre escassas. Tal comunhão (e o seu reverso, a irracionalidade e a tragédia) entre o homem, o solo (neste caso aquelas montanhas gélidas…) e os céus, só em “They Were Expendable” de Ford. A mesma dimensão telúrica e o mesmo fôlego panteísta. Como aquele, o filme mais clássico e o mais moderno, na totalidade.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008


“Eu conheci um realizador, Pierre Romasn, que disse que um actor nunca deveria parecer poético, ser poético, que tem de interpretar de uma forma realista, com um elemento trivial. Eu concordei com ele e, desde aí, penso dessa forma em relação a tudo, incluindo a forma como componho os planos. A poesia no cinema só pode existir inconscientemente. Aparece se o filme tiver alma.”

Acho uma valiosa lição e um comentário a muitas das coisas que se vê hoje em dia nos festivais de cinema, e não só nos de cinema, nem só nos festivais. Ou seja, existe uma máquina, à frente dela está a cena, e depois, quando se quer produzir poesia, assim sem mais, sem nada por detrás, desacelera-se o tempo, os corpos mexem-se devagar, os olhares e os gestos parecem flutuar num ar mais denso do que o original. Filtrada a cena pela câmara só pode dar uma daquelas monstruosidades pretensiosas, inúteis e cheias de complexos, que fazem a marca registada e a qualidade desses circuitos. A sua quintessência. O arty, o selo de qualidade. A quingentésima variação impressionada de um Bergman, de um Resnais.
Claro que o contrário é ridículo na mesma proporção. “Vamos fazer à americana, à Tarantino, à Al Pacino”. Mesmo que uma personagem, cool e de óculos de sol, esteja a comprar o jornal, ou aos tiros, tudo nele é adrenalina, rapidez, explosão.

Nas formas é a mesma coisa, é bastante fácil, numa dessas salas onde passam esses produtos, adivinhar, dois planos depois (ou mesmo um), a influência, a fonte. Ou possui a lentidão e a pretensão meta (física, temporal, narrativa, etc, etc.) de um Tarkovski, de um Bergman, ou então está montado à bruta, à Scorsese, à Quentin, à nouvelle vague. A câmara a voar e a ausência de um olhar.

Realismo? naturalismo? acho que não é assim tão simples. Têm antes a ver com o segredo (em Garrel sente-se, existe alma), com algo original, ontológico, algo que corte essa fascinação, esse impressionismo. Se existe o pólo lei e o pólo segredo, como afirmou Rivette, o savoir fair estará na maneira como se lida com essas oposições, como o artista se deixa perder nesses caminhos para atingir outros voos, não cedendo a um equilíbrio premeditado, académico. Uma verdade das coisas e dos seres. Por aqui a poesia poderá irromper, na prosa, ou então num rosto ou numa paisagem, em qualquer coisa.
entrevista, Philippe Garrel

Como explica o título, A FRONTEIRA DO AMANHECER?

Enquanto o estava a escrever, o filme chamava-se O Céu dos Anjos, uma expressão que encontrei em Blanche ou l’oubli , de Louis Aragon. Gostei muito mas o lado neo católico perturbou-me. Uma noite, às quatro da manhã, surgiu-me A FRONTEIRA DO AMANHECER, que evocava o suicídio e a temática mais fantasmagórica. Fiz o filme com este título em mente e isso deu-me a chave para cada cena. Talvez este título seja deliberadamente demasiado poético. Eu conheci um realizador, Pierre Romasn, que disse que um actor nunca deveria parecer poético, ser poético, que tem de interpretar de uma forma realista, com um elemento trivial. Eu concordei com ele e, desde aí, penso dessa forma em relação a tudo, incluindo a forma como componho os planos. A poesia no cinema só pode existir inconscientemente. Aparece se o filme tiver alma.

De onde vêm estas aparições?

O meu amigo Frédéric Pardo, o já falecido pintor, deu-me, Spirite, um romance deThéophile Gautier, a história de uma mulher que aparece num espelho depois de se suicidar e que chama um homem para a vida após a morte. Na história de Gautier, ela nunca conheceu o homem. Fantasiava sobre ele, entrou para um convento e cometeu suicídio no dia em que percebeu que nunca o poderia ter… um dia, quando o homem está prestes a casar-se, a mulher aparece-lhe e conta-lhe a sua história. Acho que este conto sobre a aparição é muito bonito mas, ao mesmo tempo, não muito cinematográfico. Então comecei a pensar sobre contar a história de uma mulher que cometeu suicídio, que reaparece num espelho e leva à morte o homem com quem teve uma relação infeliz. Sou um racionalista mas acho que o sobrenatural é uma veia muito rica do cinema, se for usada da forma que os surrealistas a usaram. O sobrenatural é útil para fazer a arte florescer.

Porque é que filmou a preto e branco?

Por causa das aparições! Não podia fazer um filme assim a cores. O preto e branco leva-te mais facilmente para um mundo imaginário. Estamos mais abertos à ideia de alguém aparecer num espelho. Não usei preto e branco só por capricho. Para OS AMANTES REGULARES, foi justificado pela dificuldade de reinterpretação. Não se pode fazer o Maio de 68 a cores! Ao escolher o preto e branco, metade do trabalho já estava feito.

Como escolheu os actores?

O meu método de trabalho desenvolveu-se imenso desde The Birth of Love, em termos de direcção de actores. O cinema é maravilhoso, desde que os actores sejam bons, o que pressupõe uma boa direcção. Está no coração de tudo. Se uma cena não funciona, se um filme parece pouco convincente, é porque os actores são maus, ou porque há más vibrações no plateau. Desde 1995 que comecei mesmo a trabalhar em algo que já tinha começado mais cedo: ensinar arte dramática. Depois de cinco anos no conservatório e dedois anos à frente de uma turma entre o conservatório e a Fémis, trabalhei no TNS recentemente e no ano que vem vou voltar para o conservatório. Faço-os interpretar cenas em frente à câmara e levo-os para as ruas, cafés, cenários reais, para que eles percebam que nos cenários naturais não se pode interpretar como se interpreta no teatro, ainda que o método seja o mesmo. O ritmo é diferente. Quando chego a um plateau, passados dois ou três anos, é como se eu nunca tivesse parado de filmar se estive a trabalhar com bons estudantes. O que eu possa ter perdido em relação ao mundo (à medida que envelhecemos, tornamo-nos mais e mais alienados), compenso com uma direcção de actores mais sofisticada. Penso que agora poderia trabalhar com qualquer pessoa, não interessa se com muita se com pouca experiência… e antes eu não sabia isso. Mas não surgiu nada de novo. Durante uma conferência no IDHEC, o Robert Bresson explicou que cada vez que ele escolhia alguém para um papel, trabalhava com essa pessoa todos os dias durante três meses! Quando trabalhei com Mehdi Belhaj Kacem, fiz a mesma coisa, como se ele fosse um dos meus alunos. Não tem nada de mágico.

Clémentine Poidatz, a actriz que faz de Eve, é uma das suas alunas ?

Ela é do conservatório. Como a Julia Faure em Wild Innocence, que foi quando eucomecei a pôr alunos em diversos papéis. Em OS AMANTES REGULARES, todos os papéis foram interpretados pelos meus alunos. Passou-se o mesmo com A FRONTEIRA DO AMANHECER, à excepção da Laura Smet. Até o Louis foi um dos meus alunos, o que criou esta coisa… do filho do professor… mas permitiu-nos relacionar um com o outro de uma forma simples e sincera. Para os meus últimos dois filmes pedi à produção para me alugar uma sala de ensaios para o teatro e todos os sábados à tarde, ensaiávamos todos os papéis… então quando filmámos, acabou depressa. Um take basta porque eles estavam a trabalhar há um ano! Aí está o método!Dizem que o meu método é o oposto do de Jacques Doillon, que faz 15 takes enquanto eu faço só um. Mas é porque eu os faço ensaiar. Esta forma de fazer as coisas tem vantagens económicas. Também é uma forma de encorajar os produtores a deixar-me filmar: é mais barato. O custo do A FRONTEIRA DO AMANHECER foi um milhão e oitocentos mil euros.

Esta é a segunda vez que trabalha com o seu filho, Louis Garrel. Também já apareceu nos seus próprios filmes. Ele tornou-se no seu alter-ego?

Não gosto de ser actor. Fi-lo em Les Baisers de secours porque o Doillon era suposto interpretar a parte do realizador e desistiu no último minuto, três semanas antes, e disse:«oh la la, não posso, estou muito ocupado com o meu filme», que eu percebo porque quando as pessoas me pedem para interpretar um papel, eu digo sempre que não. Odeio. Durante um tempo dirigi o meu pai, Maurice. E agora o Louis. Também é uma forma de lidar com o tempo, passar as coisas de uns para os outros entre nós os três e de geração para geração. Louis não é apenas ele próprio. Ele encarna a sua geração como eu fiz como a minha com a mesma idade.

E Laura Smet Smet?

O produtor do filme, Edouard Weil, fez Eager Bodies, de Xavier Gianolli. Uma noite, deram-me um DVD do filme e eu achei que ela tinha presença. É como se eu tivesse tirado um actor à trupe deles e o tivesse trazido para a minha. Pedi-lhe para nos encontrarmos para ver se ela podia trabalhar com o Louis, porque quando dirigimos os actores temos de saber como emparelhar as pessoas. Quando pomos dois actores juntos, ou temos duas pessoas que conseguem trabalhar e questionar-se, ou temos dois actores lado a lado e não há nada que possamos fazer. Podemos trabalhar o que for preciso que se dois actores permanecerem apenas dois actores, está tudo acabado. É uma questão de química e abordagem. Laura tornou-se numa aluna extra, excepto pelo facto de eu rapidamente ter percebido que ela é mesmo uma actriz. Ela é boa.

Carole, a personagem dela, passa por uma sessão de terapia de electrochoques. Isso é uma referência ao que lhe aconteceu em Roma quando estava a filmar The Inner Scar?

Fi-los reconstruir o quarto onde levei electro choques, de memória, com o colete-de-forças e a mesa de ferro. Um especialista confirmou que as coisas se passam exactamente assim mas, é inevitável, as pessoas dizem-me que parece falso, como algo saído de Fritz Lang! Sim, identifico-me com isso. Sinto-me parte do que ela está a passar, quando ela é declarada louca assim que ela se torna politica. Isto permanece muito contemporâneo, quando as pessoas começam a aderir à revolução, estão a delirar! Mas isso são apenas pormenores. É uma história muito ficcional.

Nunca passa os limites da decência nos seus filmes. Nunca filma as suas actrizes nuas…o que acontece na cena em que o François quer fotografar Carole no banho e ela diz «Não, assim não!».

São os dois sinceros, não escondem coisas. O François não tem más intenções. É o acto em si que profana algo.

«Tens uma câmara em vez do coração», diz Anne Wiazemsky em L’ Enfant Secret…

Quando a arte é a totalidade da tua vida, temos de testar um pouco os limites para poder criar, para exercer a arte e podemos ser rudes sem intenção, sem nos apercebermos, mesmo que tenhamos muito cuidado. Como já disse, não gosto de ser actor mas eu sei que é muito complicado colocar o corpo à mercê de uma câmara! Eu sei que é difícil.Psicologicamente, a arte é tão perigosa como o alpinismo. Pegar numa personagem e depois deixá-la para retomar o quotidiano é uma coisa muito complicada. Pode ser uma experiência perigosa. Tal como o ensino racional, temos de ensinar segurança. Em todo ocaso, quer seja a nível psicológico ou físico, eu sinto-me sempre responsável por todo o elenco e equipa quando filmo. Nunca faria uma cena que envolvesse o mais pequeno risco. A arte tem de permanecer inócua desse ponto de vista.

Um homem, uma mulher, duas mulheres, o casal, a criação, o desejo ou medo de ter um filho: comparado aos seus outros filmes, qual é a questão em jogo aqui nesta história?

É a intrusão do sobrenatural, fazer um filme fantástico como Franju. Fiquei de boca aberta com o sonho em Phantom Heart. Tinha escrito os meus sonhos e filmado o quotidiano de alguém, a pensar que se mostrasse esses sonhos seria construtivo. No entanto os quatro sonhos (que eram demasiado curtos) não tiveram peso na duração do filme e não conseguíamos ver como o sonho era um reflexo da realidade. Então desisti dos sonhos afavor do sobrenatural, para continuar a exploração da relação entre o real e o imaginário. A aparição no espelho permite-me entrar no sonho acordado. O fantástico gera uma história. Eu estou a contar uma história real que, de repente, no rolo final, é totalmente colocada em causa. O que eu adoro no Rosemary’s Baby do Polanski é quando a heroína percebe que todas as personagens que conheceu desde o início fazem parte do culto ao demónio: o marido, o médico, os vizinhos, etc. Vemos o filme sob uma nova luz por causa disso. Eleva tudo o que vimos a um nível diferente. É fascinante. O filme do Polanski despertou um ataque de paranóia em mim. Fui para casa a abraçar as paredes (como fiz depois de ver a visão no Alphaville, de Jean-Luc Godard, devido a uma interpretação levemente delirante. Eu percebi que nesta cidade, toda a gente trabalhava para a polícia). Estava à procura de algo como isso. Um acontecimento no final do rolo que revelasse o resto, a razão pela qual a história está a ser contada.

Porque é que Carole se apaixona por François e vice-versa? Há já pistas da sua separação quando se conhecem? Eve, como Carole, é uma jovem muito frágil com um passado doloroso. François é atraído por este tipo de mulheres.

Sim mas ele está prestes a começar uma família com uma e com a outra ele teve apenas uma relação amorosa. Claramente, não é a mesma coisa. Na primeira história, há dois solitários que se agarram um ao outro. A segunda é mais séria.

O que está por trás do medo de ter uma criança?

François perde o controlo. Ele fica louco. Ele apaixonou-se pela aparição e começa a amá-la mais ainda do que quando ela estava viva. Isso tem de se mostrar na forma como o actor o interpreta. Uma vez vendo a aparição, a interpretação dele tem de ter algo de alucinado, passando do impressionismo para o expressionismo. Então para evitar ter um filho, ele salta pela janela… ninguém sabe porque é que as pessoas cometem suicídio. Lembro-me de uma sessão de Night Wind, seguida de um debate no qual as mulheres estavam furiosas comigo por mostrar a Catherine Deneuve a tentar suicidar-se. Foi como se eu tivesse blasfemado. As pessoas não conseguiam aceitar um romance noir que fosse realmente sombrio. É inapropriado. Mas eu penso que a arte é um campo onde vale tudo porque tudo é a fingir. Não acho que um suicídio no cinema incite as pessoas a fazêlo. Pelo contrário. Mas se queremos matar-nos e se nos deparamos com um filme que fala sobre isso, o filme tem de fazê-lo tal e qual como as coisas são, não fugir ao assunto, aí acho que é mais como uma vacina. Não deve encobrir o que não se diz. Não gosto de filmes cínicos, mas a tragédia é bela. A arte faz-nos querer viver. Faz com que os jovens não façam coisas estúpidas… eu nunca cometerei suicídio mas foi a arte trágica que me salvou. Quando eu era novo, tive uma vida muito violenta e fiz filmes que escondiam esta violência, que eram remédios. Agora que tenho uma vida familiar sólida, posso fazer filmes violentos porque não tenho um problema com o equilíbrio.

E em relação aquele comentário acerca do dia em que o ultimo sobrevivente de um campo de concentração morrer?

Só recentemente é que percebi o que Sartre e Beauvoir disseram acerca do porquê do existencialismo: depois do holocausto, do horror do nazismo, já não podíamos acreditar na humanidade e todas as filosofias que tinham sido previamente discutidas já não tinham como se sustentar. Teria de ser inventada uma nova doutrina para o quotidiano.

Como é que chegou à música?

Quando dirigimos um actor, se queremos que ele seja engraçado ou comovente, ele tem de se focar em algo além de ser engraçado ou comovente. Ele tem de ser sincero. Com a música é a mesma coisa. Antes de acrescentar a música, os meus filmes não eram comoventes. Só têm de se adicionar três notas e o que está latente é revelado. É para isso que serve. Desenha as emoções. Faço-o num auditório em frente ao ecrã. Projectamos o filme e pomos a música por cima das imagens, com os músicos, ao vivo: um pianista e um violinista. Sem a música há o risco de o filme se tornar demasiado cerebral, pensado, seco e frio. A música é feita para medir, para reintroduzir emoções e o classicismo. Introduzo-a instintivamente. É como pintar. Quando levamos o pincel à tela, não há retorno. É um gesto instintivo.

É o derradeiro acto criativo, depois da edição?

Eu filmo por ordem cronológica para criar cenas de um dia para o outro, para que a personagem faça o seu papel sem contradições. E monto enquanto o filme está a ser feito, gradualmente, como faziam durante a Nouvelle Vague. Dessa forma, se eu fizer algo errado, posso filmar outra vez logo de seguida. Os últimos quatro filmes foram feitos assim. A melhor coisa disso é quando te apercebes, depois da terceira ou quarta cena do filme, que encontraste de novo a porta para o cenário, que tens de volta o prazer e o direito de ser um artista, como se o tivesses perdido entre dois filmes.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008


“Terror in a Texas Town”, 1958 (estava a acabar...), é outro filme impressionante de Joseph H. Lewis. O título é todo um programa de horror e é exactamente isso que vamos encontrar nos 80 minutos deste Western singular. Singular, tão singular como os seus inclassificáveis noirs e géneros afins. "Wagon-Wheel Joe", a carinhosa alcunha posta pelos montadores dos estúdios, por causa das suas composições tantas vezes conterem raides (de carroça) que ocupavam grande parte do plano, e que “não colavam com nada” (diziam eles), fixa-se mais uma vez num género tão codificado para o implodir e para o fazer vibrar como poucas coisas análogas vibram, estremecem.
A investida, numa história que se assemelha a tantas outras do velho oeste, é tratada por uma mise-en-scène que parece estar a dar conta de um filme negro ou de qualquer policial puramente citadino, sujo e viscoso (pensem em Preminger e merecem um "that's it!" ).
Repare-se nesses frames ali em cima (ou noutros exemplos melhores) e constate-se o ruído na imagem, a disposição das personagens, o seu posicionamento no quadro, derivante dos mistérios dos noirs, o preto e branco languidamente contrastante, bem como uma découpage e uns enquadramentos, ao mesmo tempo tão clínicos como nervosos, que não podem fazer parte da história e do legado de género tão mistificado.
É um objecto de ambivalências múltiplas, tanto no projecto estético e formal – pois apesar da fêvera há muitas coisa e muita paisagem directamente nascida de Ford, Hawks ou Walsh – como na tocante personagem de Sterling “Johnny Guitar” Hayden, indivíduo atingido por algo brutal e apanhado em eventos rocambolescos, que não percebe muito bem (embora perceba sempre à frente do “local people”), calmíssimo, quase letárgico, mas num paroxismo que o fará explodir, numa daquelas sequências em que digo imediatamente que Lewis é tão mestre como qualquer um dos que se possa citar.
E é bruto e é comovente, o que forma um dos melhores paradoxos.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008


PEGGY SUE GOT MARRIED

por João Bénard da Costa


«Du Berlioz, c`est ce que je préfère», dizia aquele rapaz meio maluco, chamado Richard (André Jocelyn), ouvindo, num jardim, o Romeu e Julieta. Sei lá porquê (talvez porque eu o prefira também), essa frase ficou-me no ouvido e com a Serenata para 13 instrumentos de sopro (K.361) é o que ainda hoje mais recordo do filme À Double Tour de Claude Chabrol, que vi no Império, em Lisboa, mais ou menos na mesma altura em que Peggy Sue (Kathleen Turner) se «graduou» em Santa Rosa, na «classe de 1960».

E Peggy Sue «du Coppola, c`est ce que je préfère», embora, como no caso de Berlioz (há muitas semelhanças entre Berlioz e Coppola) prefira muitas coisas dele: The Rain People, os três Godfather (por ordem crescente), One from the Heart, Bram Stoker`s Dracula. Qualquer deles é «o mais belo Coppola», qualquer deles o podia ter escolhido para os «100 melhores filmes da nossa vida».

Mas Peggy Sue, que parece ter sido uma encomenda, que dizem ter sido uma expiação depois do estrondoso fracasso de Cotton Club e que quase toda a gente tratou em tom menor, é o filme de Coppola a que mais vezes torno e que mais vezes me torna.

Compararam-no a Back to the Future de Zemekis (1985). Compararam-no a It`s a Wonderful Life de Capra (1946). Para além do óbvio (a viagem ao passado) não tem nada, mesmo nada, que ver. Back to the Future era uma brincadeira sem consequências e um pretexto para recriar os anos 50, com o complexo de superioridade que o tempo jamais autoriza. O episódio de It`s a Wonderful Life, em que James Stewart volta ao passado, é a demonstração exemplar do que esse passado seria, se se pudesse realizar o desejo que exprime numa noite de desespero: «Quem me dera não ter nascido!» O anjo da guarda, para lhe dar uma lição, faz-lhe a vontade e o mundo que James Stewart revê, se não tivesse estado nesse mundo, é tão horrível, que, mesmo no fundo da fossa em que está, dez minutos passados só suplica ao anjo que o traga de volta. Para ele, a «viagem no tempo» foi pesadelo pior do que tudo, foi viagem ao inferno. Nada iguala a sua alegria quando regressa. Bastou-lhe essa experiência para descobrir que «it`s a wonderful life». Mas aqui e agora, com nós próprios como protagonistas de nós próprios.

Peggy Sue propõe o movimento inverso. É feio e baço o mundo do início e do fim do filme, ou seja o mundo contemporâneo da obra (o filme foi rodado em 1985 e estreado em 1986). A festa dos 25 anos da «classe de 60», as pessoas com 40 anos em vez de 15 (já não com a cara com que nasceram mas com a cara que mereceram), o «crazy Charlie», marido ou ex-marido (Nicolas Cage) visto em plano subjectivo por Peggy Sue, todo de branco e saracoteante, descendo a escada que o leva ao palco, os reis e as rainhas, o bolo de velas, a falsa, falsérrima alegria. Ou então o mundo espectacular em que Beth, a filha (Helen Hunt), vem mostrar, como nos anúncios, que tal mãe, tal filha, ao perguntar, por desgraça dos cosméticos, qual é uma, qual é outra. Percebe-se, a cada rodopio da câmara, como esse mundo, aquela história e aqueles personagens são repulsivos (sem sequer serem infernais) e, embora a questão nunca seja posta, percebe-se que Peggy Sue se pergunte como foi ali parar, como tudo acabou assim e dali para a frente só pode ser pior. Percebe-se que Peggy Sue queira morrer e que o coração lhe pare, quando para ela avança o bolo de velas. E é enquanto a protagonista está entre a morte e a vida (como em A Matter of Life and Death de Powell e Pressburger) que «viaja no tempo», regressando aos 18 anos, a Santa Rosa natal e à época em que «era feliz e ninguém estava morto» e «a alegria de todos e a dela estava certa como uma religião qualquer».

E, passada a cena da transfusão de sangue (capital e obscura), quando já se está meio-cá-meio-lá, o filme muda 180º de tom e de estilo, a partir do plano – o mais bonito, o mais comovente – em que Peggy Sue, ainda com o vestido de alças azul que tinha mandado fazer para a festa de 1985, se imobiliza diante da casa branca – tão branca – em que nasceu e viveu até aos 18 anos. Há um travelling minnelliano sobre a casa e depois uma panorâmica à Kazan, que a acompanha até à porta entreaberta, devagar, devagarissimamente. Peggy Sue hesita e bate à porta. De dentro, ouve-se a voz da mãe (Barbara Harris): «Who`s there?» «Peggy… Peggy Sue» responde, baixa e lentamente, aquela a quem não sei se devo chamar a própria, de tal modo o rosto se lhe transfigurou, enquanto a panorâmica continua para mostrar o interior da casa, subjectivamente visto em maravilha. E, sempre em off, a mãe, com o tom mais quotidiano do mundo, diz-lhe que entre e que deixou a porta aberta para ela. Não entende, nem pode entender, o abraço seguinte, quando Peggy Sue lhe diz que se tinha esquecido como ela fora tão nova e evoca o cheiro tão bom do Chanel 5. E a maravilha continua, quando ela sobe ao quarto de solteira e vê a cama, as bonecas, os jogo, os sapatos, o disco no pick-up.

Ingmar Bergman escreveu que a génese de Os Morangos Silvestres (1957) estava ligada a uma estranha experiência pessoal dele, quando, um dia em que viajava de automóvel de Estocolmo para Dolarno, sentiu um «súbito e irreprimível desejo» de voltar a visitar a casa da avó, onde tanto tempo vivera em criança. Mas, quando entrou em casa, assaltou-o um «medo terrível» de reencontrar o passado intacto, de nada ter mudado. «O que é que aconteceria se, de súbito, voltássemos à infância?», interrogou-se Bergman. E pensou então fazer «um filme completamente realista, sobre alguém que abre uma porta, existente na realidade e, de repente, ao virar de um canto, se encontra noutra época da sua existência. Diante dele, o passado desfila, vivo.»

Bergman nunca fez esse filme, nem Os Morangos, em que o passado também desfila, o é. Esse filme é Peggy Sue. Com uma capital diferença: o que para Bergman seria o máximo do horror (o medo terrível de nada ter mudado) para Coppola é o céu e não o inferno. A vida ensinou-me que as pessoas se dividem nestas duas categorias: aquelas para quem uma viagem como a de Peggy Sue seria uma experiência infernal (reencontrar o passado intacto, repetir tudo o que foi, como foi) e aquelas para quem tal seria a maravilha das maravilhas: viver com consciência, o que se viveu sem ela.

Para mudar? Tal como, em It`s a Wonderful Life, James Stewart volta atrás como castigo do desejo de nunca ter nascido, Peggy Sue, desta vez sem intervenção de qualquer anjo, volta como resposta ao lugar-comum que diz no início: «Se eu tivesse vinte anos e soubesse o que sei hoje.» Regressada aos 18 anos, Peggy Sue sabe (nunca perde a memória do que aconteceu depois) mas esse saber não lhe serve de nada. Repete tudo, e repete sobretudo aquilo que mais chorou no início: o seu amor e o seu casamento com Charlie.

Mudam algumas coisas anedóticas e sentimentais. Responde ao professor de álgebra que não estudou a matéria porque já sabe que a álgebra de nada lhe vai servir no futuro. Faz amor com o outsider poético que é Michael Fitz Simmons (Kevin J. O`Connor) de quem no princípio diz ter sido o único dos colegas (além de Charlie) com quem desejou ir para a cama e nunca foi. Mas, no essencial, não muda nada e quando o seu único confidente (o único a quem conta a sua estranhíssima história), o rapaz dos «quatro olhos», Richard Norvick (Barry Miller) lhe propõe que mude o destino e se case com ele, recusa, como teria recusado há vinte e cinco anos. Na noite «fatal» (a noite dos 18 anos dela, a noite em que sabe que se entregou a Charlie, engravidou e por isso teve de casar) ainda tenta fugir e ir para casa dos avós, esses avós que ainda não estavam mortos e a quem ela ainda não sobrevivia «como um fósforo frio». Mas a persistência de Charlie arranca-a de lá (arranca-a mesmo à estranhíssima cerimónia maçónica presidida por John Carradine) e, na mesma estufa e debaixo da mesma chuva, o desejo dela (e o desejo dele) é mais forte do que o conhecimento do que vai suceder. Peggy Sue Got Married. Dois verbos no passado podem mais do que qualquer substância futura. Nenhum remake altera o original.

Porque eu estou a falar de um filme e no cinema estamos. E a aposta genial de Coppola foi opor o filme do passado ao filme do presente. Se sentimos tanta paz e tanta felicidade (tanta nostalgia também) no regresso aos anos 60, é porque Coppola recapitula e retoma a estética e os valores dos anos 60, como quem volta a um paraíso perdido.

Em tantos, tantos momentos do filme (a compra do Cadillac pelo pai, as aulas, as canções de Buddy Holly, de Dion, de Fabian, o «She Loves You» dos Beatles, as conversas sobre sexo com os pais ou com os namorados) o que volta – mais do que qualquer realismo «cópia conforme» – é a mítica dos grandes filmes de Hollywood, dos finais dos anos 50 e dos princípios dos anos 60. Estamos a ver imagens de Coppola, mas estamos também a ver imagens de Some Came Running de Minnelli, de Strangers When We Meet de Quine, de Splendor in the Grass de Kazan, de To Kill a Mockingbird de Mulligan, de Sweet Bird of Youth de Brooks e de tantos, tantos outros. Mas estamos a vê-los, como Peggy Sue, do lado de cá e do lado de lá. Toda a viagem carnal é viagem metafísica. O que talvez só o cinema consiga dar, ao dar «que meu amor, como uma pessoa, esse tempo», como queria Álvaro de Campos no poema «Aniversario».

Porque todos os tempos se confundem no tempo do cinema. E não julgo que tenha sido por acaso que Coppola situou este filme em Santa Rosa, onde mais de quarenta anos antes, Hitchcock (Shadow of a Doubt) filmou outra história de personagens que se cruzam nos séculos e desencontram no presente um outrora a que não sabem nem podem voltar.

Por mim, se uma fada me aparecesse a perguntar o que eu mais queria da varinha de condão, pedia-lhe a viagem de Peggy Sue. Ver tudo outra vez com outra nitidez. Que só então seria nítida, porque nítida e mesma, e nítida mesmo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008


Aaron Hillis da Village Voice, entre outras coisas, atirou assim: "Yoshio Miyajima's black-and-white 'Scope spaciousness is stunning (John Ford called from beyond the grave; he wants his clouds back)"

Está muita coisa de Masaki Kobayashi no sitio do costume, incluindo as 10 horas do épico "Ningen no joken".
-Antes que hablar de imágenes preferiría hablar de planos. Cuando era joven creía en la belleza de la imagen, pero hoy creo, sobre todo, en la justeza del plano. Porque el cine -esta es una de las lecciones que he aprendido- no es una cuestión de imágenes, sino de planos. La belleza de un plano, su justificación, su acierto, es algo muy distinto a la belleza de una imagen.

-Los planos son la manera en que las imágenes de una película respiran. Tienen que ver, sobre todo, con la duración, el ritmo. Hasta el punto de que puede decirse que hay cine, verdadero cine, sólo cuando las imágenes respiran. En caso contrario, se cierran sobre sí mismas y solamente ostentan una belleza decorativa. Pero a los rasgos que usted cita yo añadiría el sonido, la banda sonora en su totalidad, que para mí es también un recurso básico. En cuanto al silencio é Robert Bresson, el más grande cineasta vivo, aunque hace mucho tiempo que no ejerce, escribió algo que conviene recordar: ``El cine sonoro ha inventado el silencio.'' El silencio del cine mudo era de otro orden, puesto que sus imágenes eran capaces de hablar con una elocuencia especial.

Victor Erice
Insisto. O filme verdadeiramente fundamental deste ano (Resnais, Rohmer, também são cruciais…), aquele que recorda o que foi o cinema e o que pode verdadeiramente ser, o que põe certas coisas essenciais no lugar, bem como um dos raros que nos faz sentir, na cena, o pulsar do mundo e todas as suas incertezas, saliências, rugosidades, etc. Bem como o verdadeiro filme experimental, clássico e político (toda em off, como escreveu Andy Rector), saiu em DVD, custa apenas 10 € (metade de uma ida ao cinema). NE TOUCHE PAS LA HACHE, de Jacques Rivette, é redefinidor e, talvez por isso, foi ignorado pelas salas de cinema.

Fica o texto de Francis Vogner dos Reis, quem não perceber por aqui não vai perceber nunca.

Mas essa noção de “classicismo” nada tem a ver com qualquer investida reacionária que pede que a roda da história volte e recupere uma mise-en-scène padrão, reconciliada e ideal. Muito pelo contrário. O caráter romanesco e teatral de Não Toque no Machado exige dessa proposta dramática e estética tudo o que ela pode dar em sua radicalidade, o que naturalmente vai transcender qualquer tentativa de categorização, descrição ou sistematização de seus meios e efeitos. É nessa zona indiscernível em que se dá o cinema – e em especial a obra-prima de Rivette – e é nela que ele é único.

terça-feira, 11 de novembro de 2008



Já tinha realizado dois filmes históricos antes: "La Marquise d'O", em décors reais, e "Perceval le Gallois", inteiramente em estúdio. Sabia que nenhum dos métodos daria um retrato autêntico de Paris. Por isso tive a ideia de inserir personagens reais em pinturas feitas sob a minha direcção, e fieis à topografia da época. Este processo é um dos truques mais velhos do cinema: Méliès foi sem dúvida um dos primeiros a utilizá-lo...
Mas há dez anos, quando eu comecei a pensar neste projecto, a tecnologia digital não estava tão desenvolvida como hoje: se as personagens e os cenários tivessem sido criados no filme, cada camada poderia fazer com que houvesse uma perda de qualidade de imagem. O telerecording, isto é a transcrição de vídeo para película, não era uma técnica muito satisfatória na altura. Hoje em dia estas duas técnicas já foram aperfeiçoadas.

Vi três - "Orphans of the Storm" de D.W. Griffith, que se passa durante a Revolução; "Napoleon", de Abel Gance e "La Marseillaise" de Jean Renoir. Todos estes filmes são admiráveis por razões diferentes. Por exemplo, durante muito tempo, Renoir foi elogiado por fazer as suas personagens falar como se fossem dos anos 30, não se importando com o discurso do século XVIII. Isso é falso, a não ser que acreditemos que a linguagem dos anos 30 está mais próxima da do século XVIII do que da nossa! Griffith também me ajudou a perceber outra coisa: eu estava a pensar como é que iria filmar exteriores, isto é, como inserir as personagens no cenário pintado. Deveria filmar planos-sequência ou contra-planos que tornariam a instalação do processo ainda mais complicada? Ao ver "Orphans of the Storm" outra vez, apercebi-me de que a sua força, a maior parte das vezes, deve-se ao facto de cada plano ser absolutamente fixo. Por isso fiz planos fixos, e planos mais aproximados com uma segunda câmara.

Eric Rohmer

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E depois ainda se têm lata de exaltar coisas como “Speed Racer”, “Matrix” e afins, como grande exemplo de coabitação entre o clássico e o moderno, o velho e o novo, o analógico e o digital.

Que fique claro, a única grande lição neste campo continua a ser "L`Anglaise et le duc", algo tão artesanal e primitivo como Méliès e Griffith, tão furiosamente clássico como a medida e fulgor do romanesco adoptada, e tão moderno como só Rohmer sempre soube ser, desta vez, nessa inserção pelos quadros e técnicas derivantes de Méliès trabalhadas sobre o digital, que o transportam para anos-luz deste nosso tempinho. A maior simplicidade e logo a maior complexidade, Rohmer onde sempre esteve.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Tourneur e a arte da insinuação.

domingo, 9 de novembro de 2008