O que dizer sem recorrer muito à componente sociológica que cerca este filme (interiormente e exteriormente)? Que estamos tão longe de uma poética e de uma nostalgia de um François Truffaut ou de um Jean Vigo, obviamente, como do lirismo, derivante do real e das suas convulsões, de Pialat, que muitos, inconscientemente, tentaram fazer ponto de contacto com este “Entre les Murs”, para além do prémio de Cannes. Também se pode dizer que estamos afastados do arrebatamento lírico e niilista de Gus Van Sant e, acima de tudo, do cinema americano, e dos filmes glorificadores associados ao género.
Lauren Cantet é um cineasta singular, pouco ou nada o liga aos seus contemporâneos Franceses (dos mais antigos até à geração de Assayas ou Desplechin) como nada o une à velha tradição ou a qualquer baliza. Não cinéfilo (no que transparece no produto final), o que para a sua nacionalidade e meio resume muita coisa. Não faz nunca à maneira de, nem sequer deixa transparecer marcas, antes é alguém atento e dedicado ao real, às suas agitações e nuances, interessado na matéria que ocupa o quadro. Não tanto à porosidade e organicidade das coisas em si, sim aos movimentos internos ao plano, aos movimentos existentes nos lugares. Atento ao humano e às suas relações e contradições, como atento à sua disposição no meio. Não temos estilo, mas também não existe displicência, muito menos esta mise-en-scène, um pouco agitada e convulsa, têm a ver com essa onda de praticantes do faux-raccord e de uma vitesse que deve tanto à nouvelle vague como a um Cassavetes, ou mesmo a qualquer série televisiva (aliás, este filme junto com o último Romero é um belo antídoto a essas coisas).
O empreendimento é simples e à sua maneira radical: respeitar o real, os corpos dos não-actores e o seu discurso, permitir a imanência do segredo. O segredo aqui como espelho que quebra o que à partida poderia ser a armadilha do dispositivo. E toda esta formalidade, no perfeito e sereno domínio dos materiais, só está em consonância e a permitir o surgimento da fatalidade. Fatalidade que é o centro fílmico e o lado perverso e nada puritano do filme.
Ali, entre os muros, a personagem interpretada por François Bégaudeau, ou os seus colegas, não tem saída, estão condenados a escorregar em armadilhas e em problemas que os ultrapassam, que são antigos e que não lhes compete mudar – têm a ver com a base. Para não entrar mais na componente sociológica, basta dizer que o professor ali está inevitavelmente lixado, pronto para se queimar, o seu método só servirá para apaziguar ou para disfarçar, para passar mais um ano. Esse perigo é inerente à profissão. Aquilo, o ensino, está mal feito - é a malvadez e é o triunfo da posta-em-cena de Cantet. Uma câmara e uma montagem que destila esse confronto, essa batalha entre os dois lados, daí que o ângulo certo e a duração justa permaneça sempre tão fugidia, porque em comunhão com a matéria e com o cerne. Basta notar como a dramaturgia das cores é perfeitamente inteligente, porque fria, pálida e plana, em consonância com a justeza do olhar e da distanciação usada pelo cineasta. Distanciação? Sim, pois nunca o filme nos enclausura em sentimentalismos ou melodramatismos, nunca entra em condescendência, antes deixa o ar e o espaço necessário à construção e à dúvida, à verdade singular e não adivinhavél de cada ser. Portanto, o contrário do aleatório e do maniqueísmo. Filme sequíssimo e essencial, é uma lufada de ar fresco.
8 comentários:
eu não sei (mas creio que seja alguma ignorância da minha parte), mas a secura, a frieza, o realismo só pelo realismo, faz do filme, um objecto que não se quer assumir como documental (que não podia ser, pela parte que toca aos actores), mas, que cai num realismo de reportagem (mesmo sabendo que de televisivo não tem nada) que não me enche de maneira alguma.
Parece um bom documentário, mas mais nada do que isso, não toma partido, não se interessa verdadeiramente por assunto algum, mostra tudo em igual pé, nunca quer ser tese e acaba por não dizer nada, nem fazer sentir o que quer que seja.
Apesar de admirar o filme no que respeita ao realismo alcançado e também na parte da representação amadora (o trabalho com os alunos é surpreendente), o realismo é em demasia e o filme não tem qualquer fundamento, a não ser dar a noção de que alguma coisa vai mal na educação, mas isso já nós sabíamos.
Artisticamente interessante, mas inútil em conteúdo.
Mas concordo que é uma lufada de ar fresco, mas mesmo assim...
" não toma partido, não se interessa verdadeiramente por assunto algum, mostra tudo em igual pé, nunca quer ser tese e acaba por não dizer nada "
...sem querer ser esperto, é isso que me interessa. mostrar aquele espaço como fatalidade, SEM MAIS NADA.
Num tempo em que os filmes querem ser sobre tudo, são estas singelezas (complexas porque humanas) que me interessam, ao contrário do que a publicidade e as inúmeras páginas do "ípsilon" querem contrariar.
mas isso é uma inevitabilidade, grandes cineastas tiveram os seus filmes como sendo sobre tudo quando não eram sobre nada (assim sobreviveram) - simplesmente uma preciosidade estética, uma contemplação, um olhar.
Por isso é que odiei o "The Dark Night", e odeio os afins, esses filmes são sobre tudo, cheios da grande mensagem, a maior delas todas (bem vs mal) e assim mesmo são inertes.
Em Cantet posso contemplar aquele lugar e aquelas vidas.
E não é documentário, é ficção. O resto é "impressão do real" e ladainha teórica que fica bem dissertar sobre.
Também posso dizer que gosto do filme na proporção inversa às razões dos professores e dos publicitários.
devo concordar no que ao The dark Knight diz respeito, não é, nem de perto nem de longe, um grande filme (embora não se possa acusar de péssimo), no entanto lembro com um sorriso, os filmes que este ano já deu e penso: será que A turma é 'melhor' que Alexandra, There will be blood, Couers, Before the devil Knows you're dead ou The assassination of jesse james ...? no meu entender de grande apreciador de cinema, mas de inculto em muitas das áreas técnicas ou históricas, creio que não.
Todos os que enumerei são filmes com uma sensibilidade superior ao que é corriqueiro, Resnais é um mestre a captar a solidão das novas metrópoles e a sua ânsia por amar e ser amados, Sokyrov capta as consequências da guerra e a destruição da alma pelos horrores, mostra a dessensibilização dos homens e morte dos que sobreviveram, P T Anderson cria um épico maior, que no futuro será posto lado a lado com Citizen Kane, a História da América, os seus pilares: A fé, o Petróleo e A Ganância.
E depois vejo vários críticos a receberem com notas superiores Entre les murs, que apesar de admiravel, faz figura de anão ao lado de filmes como os que referi.
A mim ninguém me faz mudar de opinião e espero não fazer mudar a de ninguém, porque todos temos direito à nossa; no entanto é normal que não concordemos.
Desculpa a pergunta idiota, mas onde conseguiu ver o novo Cantet?
Ricardo: longe de mim querer convencer alguém. continuo a escrever simplesmente o que acho. por vezes de maneira tão privada que me esqueço que há pessoas que lêem esta coisa.
Não tenho certezas, não sei se este filme é melhor ou pior do que qualquer um que referis-te. De que o Resnais não é com certeza. Do que o do Rohmer também não. Enfim, esta coisa é relativa.
p.s: ainda ontem li o jonathan rosenbauma escrever sobre o "The Deer Hunter" como se falasse do "Tróia"...há coisas que me ultrapassam.
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Mayor: em Portugal o filme estreou em várias salas.
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