entrevista, Philippe Garrel
Como explica o título, A FRONTEIRA DO AMANHECER?
Enquanto o estava a escrever, o filme chamava-se O Céu dos Anjos, uma expressão que encontrei em Blanche ou l’oubli , de Louis Aragon. Gostei muito mas o lado neo católico perturbou-me. Uma noite, às quatro da manhã, surgiu-me A FRONTEIRA DO AMANHECER, que evocava o suicídio e a temática mais fantasmagórica. Fiz o filme com este título em mente e isso deu-me a chave para cada cena. Talvez este título seja deliberadamente demasiado poético. Eu conheci um realizador, Pierre Romasn, que disse que um actor nunca deveria parecer poético, ser poético, que tem de interpretar de uma forma realista, com um elemento trivial. Eu concordei com ele e, desde aí, penso dessa forma em relação a tudo, incluindo a forma como componho os planos. A poesia no cinema só pode existir inconscientemente. Aparece se o filme tiver alma.
De onde vêm estas aparições?
O meu amigo Frédéric Pardo, o já falecido pintor, deu-me, Spirite, um romance deThéophile Gautier, a história de uma mulher que aparece num espelho depois de se suicidar e que chama um homem para a vida após a morte. Na história de Gautier, ela nunca conheceu o homem. Fantasiava sobre ele, entrou para um convento e cometeu suicídio no dia em que percebeu que nunca o poderia ter… um dia, quando o homem está prestes a casar-se, a mulher aparece-lhe e conta-lhe a sua história. Acho que este conto sobre a aparição é muito bonito mas, ao mesmo tempo, não muito cinematográfico. Então comecei a pensar sobre contar a história de uma mulher que cometeu suicídio, que reaparece num espelho e leva à morte o homem com quem teve uma relação infeliz. Sou um racionalista mas acho que o sobrenatural é uma veia muito rica do cinema, se for usada da forma que os surrealistas a usaram. O sobrenatural é útil para fazer a arte florescer.
Porque é que filmou a preto e branco?
Por causa das aparições! Não podia fazer um filme assim a cores. O preto e branco leva-te mais facilmente para um mundo imaginário. Estamos mais abertos à ideia de alguém aparecer num espelho. Não usei preto e branco só por capricho. Para OS AMANTES REGULARES, foi justificado pela dificuldade de reinterpretação. Não se pode fazer o Maio de 68 a cores! Ao escolher o preto e branco, metade do trabalho já estava feito.
Como escolheu os actores?
O meu método de trabalho desenvolveu-se imenso desde The Birth of Love, em termos de direcção de actores. O cinema é maravilhoso, desde que os actores sejam bons, o que pressupõe uma boa direcção. Está no coração de tudo. Se uma cena não funciona, se um filme parece pouco convincente, é porque os actores são maus, ou porque há más vibrações no plateau. Desde 1995 que comecei mesmo a trabalhar em algo que já tinha começado mais cedo: ensinar arte dramática. Depois de cinco anos no conservatório e dedois anos à frente de uma turma entre o conservatório e a Fémis, trabalhei no TNS recentemente e no ano que vem vou voltar para o conservatório. Faço-os interpretar cenas em frente à câmara e levo-os para as ruas, cafés, cenários reais, para que eles percebam que nos cenários naturais não se pode interpretar como se interpreta no teatro, ainda que o método seja o mesmo. O ritmo é diferente. Quando chego a um plateau, passados dois ou três anos, é como se eu nunca tivesse parado de filmar se estive a trabalhar com bons estudantes. O que eu possa ter perdido em relação ao mundo (à medida que envelhecemos, tornamo-nos mais e mais alienados), compenso com uma direcção de actores mais sofisticada. Penso que agora poderia trabalhar com qualquer pessoa, não interessa se com muita se com pouca experiência… e antes eu não sabia isso. Mas não surgiu nada de novo. Durante uma conferência no IDHEC, o Robert Bresson explicou que cada vez que ele escolhia alguém para um papel, trabalhava com essa pessoa todos os dias durante três meses! Quando trabalhei com Mehdi Belhaj Kacem, fiz a mesma coisa, como se ele fosse um dos meus alunos. Não tem nada de mágico.
Clémentine Poidatz, a actriz que faz de Eve, é uma das suas alunas ?
Ela é do conservatório. Como a Julia Faure em Wild Innocence, que foi quando eucomecei a pôr alunos em diversos papéis. Em OS AMANTES REGULARES, todos os papéis foram interpretados pelos meus alunos. Passou-se o mesmo com A FRONTEIRA DO AMANHECER, à excepção da Laura Smet. Até o Louis foi um dos meus alunos, o que criou esta coisa… do filho do professor… mas permitiu-nos relacionar um com o outro de uma forma simples e sincera. Para os meus últimos dois filmes pedi à produção para me alugar uma sala de ensaios para o teatro e todos os sábados à tarde, ensaiávamos todos os papéis… então quando filmámos, acabou depressa. Um take basta porque eles estavam a trabalhar há um ano! Aí está o método!Dizem que o meu método é o oposto do de Jacques Doillon, que faz 15 takes enquanto eu faço só um. Mas é porque eu os faço ensaiar. Esta forma de fazer as coisas tem vantagens económicas. Também é uma forma de encorajar os produtores a deixar-me filmar: é mais barato. O custo do A FRONTEIRA DO AMANHECER foi um milhão e oitocentos mil euros.
Esta é a segunda vez que trabalha com o seu filho, Louis Garrel. Também já apareceu nos seus próprios filmes. Ele tornou-se no seu alter-ego?
Não gosto de ser actor. Fi-lo em Les Baisers de secours porque o Doillon era suposto interpretar a parte do realizador e desistiu no último minuto, três semanas antes, e disse:«oh la la, não posso, estou muito ocupado com o meu filme», que eu percebo porque quando as pessoas me pedem para interpretar um papel, eu digo sempre que não. Odeio. Durante um tempo dirigi o meu pai, Maurice. E agora o Louis. Também é uma forma de lidar com o tempo, passar as coisas de uns para os outros entre nós os três e de geração para geração. Louis não é apenas ele próprio. Ele encarna a sua geração como eu fiz como a minha com a mesma idade.
E Laura Smet Smet?
O produtor do filme, Edouard Weil, fez Eager Bodies, de Xavier Gianolli. Uma noite, deram-me um DVD do filme e eu achei que ela tinha presença. É como se eu tivesse tirado um actor à trupe deles e o tivesse trazido para a minha. Pedi-lhe para nos encontrarmos para ver se ela podia trabalhar com o Louis, porque quando dirigimos os actores temos de saber como emparelhar as pessoas. Quando pomos dois actores juntos, ou temos duas pessoas que conseguem trabalhar e questionar-se, ou temos dois actores lado a lado e não há nada que possamos fazer. Podemos trabalhar o que for preciso que se dois actores permanecerem apenas dois actores, está tudo acabado. É uma questão de química e abordagem. Laura tornou-se numa aluna extra, excepto pelo facto de eu rapidamente ter percebido que ela é mesmo uma actriz. Ela é boa.
Carole, a personagem dela, passa por uma sessão de terapia de electrochoques. Isso é uma referência ao que lhe aconteceu em Roma quando estava a filmar The Inner Scar?
Fi-los reconstruir o quarto onde levei electro choques, de memória, com o colete-de-forças e a mesa de ferro. Um especialista confirmou que as coisas se passam exactamente assim mas, é inevitável, as pessoas dizem-me que parece falso, como algo saído de Fritz Lang! Sim, identifico-me com isso. Sinto-me parte do que ela está a passar, quando ela é declarada louca assim que ela se torna politica. Isto permanece muito contemporâneo, quando as pessoas começam a aderir à revolução, estão a delirar! Mas isso são apenas pormenores. É uma história muito ficcional.
Nunca passa os limites da decência nos seus filmes. Nunca filma as suas actrizes nuas…o que acontece na cena em que o François quer fotografar Carole no banho e ela diz «Não, assim não!».
São os dois sinceros, não escondem coisas. O François não tem más intenções. É o acto em si que profana algo.
«Tens uma câmara em vez do coração», diz Anne Wiazemsky em L’ Enfant Secret…
Quando a arte é a totalidade da tua vida, temos de testar um pouco os limites para poder criar, para exercer a arte e podemos ser rudes sem intenção, sem nos apercebermos, mesmo que tenhamos muito cuidado. Como já disse, não gosto de ser actor mas eu sei que é muito complicado colocar o corpo à mercê de uma câmara! Eu sei que é difícil.Psicologicamente, a arte é tão perigosa como o alpinismo. Pegar numa personagem e depois deixá-la para retomar o quotidiano é uma coisa muito complicada. Pode ser uma experiência perigosa. Tal como o ensino racional, temos de ensinar segurança. Em todo ocaso, quer seja a nível psicológico ou físico, eu sinto-me sempre responsável por todo o elenco e equipa quando filmo. Nunca faria uma cena que envolvesse o mais pequeno risco. A arte tem de permanecer inócua desse ponto de vista.
Um homem, uma mulher, duas mulheres, o casal, a criação, o desejo ou medo de ter um filho: comparado aos seus outros filmes, qual é a questão em jogo aqui nesta história?
É a intrusão do sobrenatural, fazer um filme fantástico como Franju. Fiquei de boca aberta com o sonho em Phantom Heart. Tinha escrito os meus sonhos e filmado o quotidiano de alguém, a pensar que se mostrasse esses sonhos seria construtivo. No entanto os quatro sonhos (que eram demasiado curtos) não tiveram peso na duração do filme e não conseguíamos ver como o sonho era um reflexo da realidade. Então desisti dos sonhos afavor do sobrenatural, para continuar a exploração da relação entre o real e o imaginário. A aparição no espelho permite-me entrar no sonho acordado. O fantástico gera uma história. Eu estou a contar uma história real que, de repente, no rolo final, é totalmente colocada em causa. O que eu adoro no Rosemary’s Baby do Polanski é quando a heroína percebe que todas as personagens que conheceu desde o início fazem parte do culto ao demónio: o marido, o médico, os vizinhos, etc. Vemos o filme sob uma nova luz por causa disso. Eleva tudo o que vimos a um nível diferente. É fascinante. O filme do Polanski despertou um ataque de paranóia em mim. Fui para casa a abraçar as paredes (como fiz depois de ver a visão no Alphaville, de Jean-Luc Godard, devido a uma interpretação levemente delirante. Eu percebi que nesta cidade, toda a gente trabalhava para a polícia). Estava à procura de algo como isso. Um acontecimento no final do rolo que revelasse o resto, a razão pela qual a história está a ser contada.
Porque é que Carole se apaixona por François e vice-versa? Há já pistas da sua separação quando se conhecem? Eve, como Carole, é uma jovem muito frágil com um passado doloroso. François é atraído por este tipo de mulheres.
Sim mas ele está prestes a começar uma família com uma e com a outra ele teve apenas uma relação amorosa. Claramente, não é a mesma coisa. Na primeira história, há dois solitários que se agarram um ao outro. A segunda é mais séria.
O que está por trás do medo de ter uma criança?
François perde o controlo. Ele fica louco. Ele apaixonou-se pela aparição e começa a amá-la mais ainda do que quando ela estava viva. Isso tem de se mostrar na forma como o actor o interpreta. Uma vez vendo a aparição, a interpretação dele tem de ter algo de alucinado, passando do impressionismo para o expressionismo. Então para evitar ter um filho, ele salta pela janela… ninguém sabe porque é que as pessoas cometem suicídio. Lembro-me de uma sessão de Night Wind, seguida de um debate no qual as mulheres estavam furiosas comigo por mostrar a Catherine Deneuve a tentar suicidar-se. Foi como se eu tivesse blasfemado. As pessoas não conseguiam aceitar um romance noir que fosse realmente sombrio. É inapropriado. Mas eu penso que a arte é um campo onde vale tudo porque tudo é a fingir. Não acho que um suicídio no cinema incite as pessoas a fazêlo. Pelo contrário. Mas se queremos matar-nos e se nos deparamos com um filme que fala sobre isso, o filme tem de fazê-lo tal e qual como as coisas são, não fugir ao assunto, aí acho que é mais como uma vacina. Não deve encobrir o que não se diz. Não gosto de filmes cínicos, mas a tragédia é bela. A arte faz-nos querer viver. Faz com que os jovens não façam coisas estúpidas… eu nunca cometerei suicídio mas foi a arte trágica que me salvou. Quando eu era novo, tive uma vida muito violenta e fiz filmes que escondiam esta violência, que eram remédios. Agora que tenho uma vida familiar sólida, posso fazer filmes violentos porque não tenho um problema com o equilíbrio.
E em relação aquele comentário acerca do dia em que o ultimo sobrevivente de um campo de concentração morrer?
Só recentemente é que percebi o que Sartre e Beauvoir disseram acerca do porquê do existencialismo: depois do holocausto, do horror do nazismo, já não podíamos acreditar na humanidade e todas as filosofias que tinham sido previamente discutidas já não tinham como se sustentar. Teria de ser inventada uma nova doutrina para o quotidiano.
Como é que chegou à música?
Quando dirigimos um actor, se queremos que ele seja engraçado ou comovente, ele tem de se focar em algo além de ser engraçado ou comovente. Ele tem de ser sincero. Com a música é a mesma coisa. Antes de acrescentar a música, os meus filmes não eram comoventes. Só têm de se adicionar três notas e o que está latente é revelado. É para isso que serve. Desenha as emoções. Faço-o num auditório em frente ao ecrã. Projectamos o filme e pomos a música por cima das imagens, com os músicos, ao vivo: um pianista e um violinista. Sem a música há o risco de o filme se tornar demasiado cerebral, pensado, seco e frio. A música é feita para medir, para reintroduzir emoções e o classicismo. Introduzo-a instintivamente. É como pintar. Quando levamos o pincel à tela, não há retorno. É um gesto instintivo.
É o derradeiro acto criativo, depois da edição?
Eu filmo por ordem cronológica para criar cenas de um dia para o outro, para que a personagem faça o seu papel sem contradições. E monto enquanto o filme está a ser feito, gradualmente, como faziam durante a Nouvelle Vague. Dessa forma, se eu fizer algo errado, posso filmar outra vez logo de seguida. Os últimos quatro filmes foram feitos assim. A melhor coisa disso é quando te apercebes, depois da terceira ou quarta cena do filme, que encontraste de novo a porta para o cenário, que tens de volta o prazer e o direito de ser um artista, como se o tivesses perdido entre dois filmes.
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