terça-feira, 4 de novembro de 2008

Como nasceu o projecto de fazer uma peça de teatro e depois este filme, SICILIA!, a partir de CONVERSAZIONE IN SICILIA! de Elio Vittorini?

Jean-Marie Straub - A découpage era de Abril - Agosto de 92, a Danièle tirou-a do fundo de uma gaveta. Disse-me que a devíamos fazer. Eu disse-lhe "Está bem na condição de termos uma base de trabalho." Foi nessa altura que reconsiderámos o teatro de Buti: há dez anos que eles nos propunham ir trabalhar com eles. Dissemos-lhes que ensaiaríamos durante três meses e que finalizaríamos com algumas representações teatrais. E a seguir, faríamos o filme com os mesmos actores. O teatro seria um trampolim, para preparar os actores e fazer de maneira a que o texto se tornasse parte integrante deles mesmos, como sonâmbulos. É uma questão de amadurecimento. O único luxo de que o homem dispõe é o tempo. É por isso que Jean-Luc (Godard) não tem razão quando se queixa que os seus actores não lhe oferecem nada, quando ele espera que eles lhe dêem algo. Mas isso não é possível se ele não os treinou. Os cineastas são preguiçosos e os actores ainda mais. Um dia, Serge Daney, crendo que nos fazia um cumprimento, escreveu que o que era bom nos nosso filmes era que os actores não compreendem o que dizem. A Danièle descompô-lo a brincar: como é possível que pessoas que dizem um texto durante dois meses não o compreendam?

Danièle Huillet – O problema é que Buti é na Toscânia e nós queríamos sicilianos. Mas há muitos sicilianos na Toscânia. Quando eles se deslocam para norte à procura de trabalho, preferem parar na Toscânia, uma vez que fica menos longe de das suas casas.

Jean-Marie Straub – As pessoas do teatro colocaram anúncios nos jornais e nós fizemos algo um pouco inumano: casting. Geralmente , não é isso que fazemos, escolhemos pessoa que conhecemos, amigos, ou mesmo pessoas que encontramos na rua. Aqui, as pessoas vinham a pensar que iriam fazer figuração na peça, depois num filme. Escolhemos pessoas que são pedreiros, trolhas, sapateiros ou mães de família e confrontámo-los com um texto que ignoravam. Um ou dois sabiam quem era Vittorini, mas nenhum o tinha lido. É uma operação que se assemelha à "cultura popular", de que se falava há trinta anos atrás.

Como cortaram o texto de Vittorini?

Jean-Marie Straub – É preciso desconfiar da literatura. Se pegarmos num romance de Balzac, é preciso sobretudo não tentar ilustrar as descrições que ele faz ao longo de dez páginas: o filme não terá nenhum interesse. Porque o cinema não é feito para ilustrar as coisas. A possibilidade que temos com um romance como o de Vittorini, é de ter uma narrativa, logo uma ficção, que é bastante forte. E não se trata de fazer aquilo que fazem todos os produtores quando compram os direitos de um romance: ilustrar uma intriga, ter um plot. Pelo contrário, é preciso considerar a narração como algo já conhecido. É preciso que as pessoas vejam um filme onde a narrativa é supostamente conhecida, mesmo que eles nunca tenham lido o livro e nunca o cheguem a ler.

Como se traduz isso no vosso filme?

Jean-Marie Straub – Durante o genérico, ouvimos uma pequena canção siciliana um pouco estranha, vampirizada logo a seguir pela música trágica de Beethoven, que se desfaz no plano do senhor de costas, plano que se repetirá quatro vezes na sequência, que terminará com a sua cólera: "Mas porque é tão difícil vender laranjas?" No plano seguinte, de repente, vemos dois polícias num comboio em andamento que falam daquilo que estávamos a ver, sem que soubéssemos que eles espiavam a cena. Daí o interesse de ter uma ficção e uma narrativa fortes! De seguida encontramos o nosso homenzinho no comboio, sem nunca sabermos de onde ele vem. Se voltarmos à primeira sequência, o vendedor de laranjas fez-lhe reparar que ele comia de manhã, enquanto os sicilianos nunca o fazem. Ele diz-lhe então que ele é americano e o outro responde que efectivamente é americano, há de quinze anos. Há bastantes pessoas inteligentes que concluíram que se trata de um siciliano que volta da América, mas não é isso! No comboio ele dirá que viajou pela Itália durante quinze anos, que viveu em Milão, Bolonha, Florença. Aquilo que significa declarar-se "americano há quinze anos" é uma provocação e a afirmação do seu exílio, e que ele, jovem siciliano, considera o norte de Itália como a América. Depois, encontramo-lo frente a uma casa, de costas. Uma senhora sai da casa, é a sua mãe, mas ninguém nos tinha dito que ele ia ver a sua mãe! É supostamente conhecido. (...)

O que tenta evitar é a psicologia?

Jean-Marie Straub – Sim, mas não é só isso. No romance de Vittorini há coisas que me arrepiam. Por exemplo, quando a sua mãe lhe conta as suas aventuras amorosas, está escrito que a personagem a olharia como se pensasse "bem-aventurada puta": é disso que é preciso desconfiar e que não tem nada a ver com filme, é por isso que sempre desconfiei da literatura. É por isso que me interessei por Hölderlin e Corneille. Mas respeitámos os diálogos de Vittorini. Quando escolhemos um diálogo é porque ele nos resiste. É por isso que apesar de toda a admiração que sinto pelos filmes de Resnais, acho os textos dos seus filmes absolutamente insuportáveis. Resnais faria melhor em desconfiar da literatura. Os textos de Cayrol, Duras ou Robbe-Grillet, são coisas que não existem, é tudo.

Desde os primeiros planos, com o homem de costas no porto de Messina, que há um tratamento particular do tempo, porque o que está á frente dele ( um barco, crianças na escada) não é raccord entre os planos.

Jean-Marie Straub – É o que é preciso aceitar se não queremos fazer um cinema hollywoodiano. Não se pode pedir às pessoas que passam, que voltem e refaçam a mesma coisa. E havia um barco a chegar todas as meias horas, sem falar do som... Os barulhos de correntes que ouvimos durante essa sequência, é um presente que nos oferecem a realidade e o acaso, nenhum mixeur teria tal imaginação – a menos que trabalhasse seis meses, como fazia Tati.

Danièle Huillet – Não é o tempo naturalista da televisão.

Jean-Marie Straub – Onde está o tempo naturalista em Fritz Lang, Lubitsch, Chaplin, Hitchcock, Renoir? A televisão tenta fazer crer ás pessoas que lhes vende sentimentos que existem, quando na realidade são sentimentos de supermercado.

Como escolheram os lugares do filme?

Jean-Marie Straub – Em 72, a primeira vez que fomos à Sicília, vimos toneladas de laranjas no fundo do leito de um rio, cujo cheiro se sentia a vinte quilómetros e que foram lá deixadas para não fazer cair os preços. O princípio do filme, com o vendedor de laranjas, lembra KUHLE WAMPE (1932) de Brecht, cujo subtítulo "A QUEM PERTENCE O MUNDO?" SICILIA! tem como subtítulo "GRANDE MAL OFENDER O MUNDO", uma frase de Vittorini tirada do diálogo com o amolador. Para voltar às repérages, era preciso encontrar a casa da mãe e não púnhamos sequer a hipótese de encontrar uma casa habitada e expulsar os seus habitantes, ou de restaurar uma velha casa abandonada, como fazem os americanos. Vimos perto de trezentas casas na Sicília. E a casa do filme não é na Sicília mas a quinze quilómetros de Buti, na Toscânia. – foi lá que vivemos durante os ensaios e as representações: por isso tivemos tempo de dominar o espaço. Ao fim de dois meses, disse a Danièle que não poderíamos filmar senão lá, ela respondeu-me "Estás maluco!" Para a rodagem no comboio, Danièle tinha tudo cronometrado: as paragens nas estações, os túneis. Para saber de quanto tempo dispúnhamos para filmar com os actores, muito pouco tempo de facto, devido às numerosas paragens naquela pequena linha de comboios de passageiros.

Como trabalharam com os actores?

Danièle Huillet – O problema com os actores, é que é preciso que eles não aprendam o texto antes de conhecerem a estrutura, a forma como o irão marcar, dizer. (...)

Como adaptam a vossa découpage ao lugares escolhidos? É a découpage que se adapta à casa da Toscânia ou o inverso?

Jean-Marie Straub – É um movimento que vale para todos os nossos filmes, e tanto Fritz Lang como para nós, entre uma estrutura abstracta e um lugar concreto. E aí, há interacções. Mas se não temos uma estrutura precisa, não podemos sequer procurar o lugar concreto, porque não sabemos o que estamos a procurar, é demasiado vago. É preciso abstracção para chegar à concretização. A seguir, trata-se de incarnar a abstracção, e então é preciso improvisar na rodagem, a partir do momento em que o cenário tenha sido encontrado.

Qual de vocês os dois decidiu fazer o filme?

Jean-Marie Straub – Foi ela. De qualquer forma, sem ela, eu nunca teria feito um filme. É ela que organiza tudo. Eu sonhava regressar a Buti, onde tínhamos rodado DA NUVEM À RESISTÊNCIA.. Afinal, fazer filmes também é regressar aos sítios de que se gosta. Mas se as viagens formam a juventude, destroem a velhice, sobretudo quando viajamos com uma dezena de gatos e um cão, é cansativo para eles e para nós. (...)


Frédéric Bonnaud, LES INROCKUPTIBLES, 15 de Setembro 1999

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