sábado, 14 de março de 2009

1959

Rohmer já me fez destas algumas vezes. Começa assim: um carteiro nas ruas de Paris entrega uma carta a um tipo; o tipo chama-se Philippe e é o artista principal da película. Também é artista, é músico, mas em maré baixa. Pela carta fica a saber que receberá uma herança choruda. Festeja como um louco com os seus amigos e com os que não o são. Aparece por lá Godard, un peu fou. O tipo fala de sorte e do seu signo de leão para justificar tal acontecimento. Já está mesmo a pedi-las. E vai tê-las. Não recebe a herança. Os seus amigos partem cada um pra cada lado e fica sozinho na cidade. O dinheiro acaba-se. É posto no olho da rua.
[Aparte: o Rohmer percebe mesmo disto, na mesma situação acontecia-me o mesmo, não escapava.]
Perde tudo o que possui e em vão procura algum seu conhecido que o ajude. Do céu ao inferno. A coisa cai andando, o tipo vai ficando pelas ruas, observando mendigos e outras formas de vida. A busca continua, infrutífera. Tudo o que ele ia notando e cheirando vai-se apegando a ele. Torna-se mendigo. Torna-se Palhaço. Os amigos voltam das férias e do trabalho. Um seu primo morre. Como numa fantasia de Frank Capra a fortuna volta-lhe a bater à porta. Aparentemente fica rico de novo.

Filme em partes distintas, com cheiros e moods vários. Filme que se vai perdendo e deixando de ser filme. É como sempre a compreensão ontológica de Rohmer a ser posta em prática. Saída do cinema, entrada na vida. Ou seja, a primeira parte, a dos copos e das romarias, é cheia de nouvelle vague, o que equivale a dizer que é cheia de cinema americano. Hawksiana, talvez. O protagonista vai-se perdendo e o filme com ele. Uns bons 45 minutos só a vermos aquele tipo a desgraçar-se e a humilhar-se. De um oposto a outro e vamos para o lado de Rossellini. O cinema poderia ter sido inventado para seguir uma pessoa por Paris, pelo Sena, pelas periferias, assim, sem efeitos nem enfeites. O cheiro do mundo, o toque das coisas, o caos da realidade. A visão e reconhecimento das coisas a mudarem como muda a realidade em alguns filmes de Cronenberg. Mas, volte face, o tipo sorri outra vez e já encontramos um movimento de câmara à americana e uma chegada ao universo. Capra e uma data deles, novamente. Mas, como tudo o que têm a ver com astros, nada é certo, final misterioso cá para mim.

É isto que eu admiro e que me interessa, esta liberdade em convocar legados e fazer entrever fantasmas, esta consciência das coisas e este interesse pelo humano e pela realidade. E, tendo pensando em tantos nomes e tanto cinema, tudo acaba por permanecer tão inocente, tão bruto, tão essencial. Fresco. Coisa para muito poucos.

Já agora, “Le Signe du lion” chama-se o filme.

2 comentários:

Daniel Pereira disse...

Por isso queria que o visses. O filme é isso, mas eu nao saberia dizê-lo.

José Oliveira disse...

ahah. apenas fantasias. grande filme, obrigado pela dica.