sábado, 30 de janeiro de 2010

algumas notas rabiscadas sobre o filme do Biette.

- A arte de Biette começa por ser a arte da simplicidade, da clareza, da lisibilidade. Uma certa evidência mesmo. Cineasta clássico que no entanto trabalha a luz e a narrativa sempre na direcção da escuridão e da ambiguidade, do desconhecido, permeando todas as superfícies e pontas (de narrativa, de som, de enquadramento) de possibilidades de complot e de farsa.

- Dito assim é evidentemente um parceiro de Rivette. Sendo impossível negá-lo, é possível estendermos as vistas e os raccords para outros tempos e outras famílias, que podem também ser as de Rivette. Dou-me por mim a pensar nos grandes aventureiros clássicos da velhinha Hollywood, os filmes épicos feitos com tostões e um pouco pela calada, série-b absolutamente precisa, livre, sem medo, perdida e logo cósmica devido aos caminhos a que se aventura a percorrer e às normas que manda às urtigas. É esta a Hollywood ainda possível de existir.

- “Trois ponts sur la rivière” é então um inolvidável filme de aventuras e de viagens digno de um Tourneur ou de um Walsh, de um Lewis ou de um Dwan. Biette é um cineasta resolutamente materialista, conciso, exacto, mas tudo isto passa muito por ser um método bastante prático e justo de resolver as situações e de se adaptar às imprevisibilidades de um cinema completamente aberto à vida, ao mundo, ao imprevisto. A mise-en-scène surge como um princípio que, no imponderável e nos percalços dos percursos e das derivas, permite observar e captar tudo o que surge pela frente com o mais límpido e sereno dos olhares . Permite olhar o mundo na sua essência e claridade (ou obscuridade), coisa que muitos se esqueceram que o cinema pode fazer, de um modo simples e frontal (e formalmente "desarmado") que já nem se pensa que o cinema o pode assim ver porque o vemos assim diariamente (vemos?). Ou seja, é o contrário da dispersão e da falta de um olhar, o contrário das falsas velocidades e dos maneirismos histéricos dos cineastas medíocres. O mais próximo de uma ideia de filme b, que inventa um método e idioma próprio e não copiável.

- Obra de paradoxos e ambiguidades. Obra que na sua aparente linearidade narrativa logo resvala para uma espécie de esboço libertário e incerto (que se autoriza a perder, como naquelas maravilhosas viagens em que não ligámos aos mapas e vamos ao sabor do vento) que permite lançar dois seres às feras e à abstracção da realidade, à jornada paris-lisboa-porto e a uma constatação do caos e dos segredos. Coisa feérica, muito mais próxima dos abismos e do negrume do Tourneur dos zombies e dos feitiços do que qualquer suposta reflexão filosófica que a maior parte viu. Num certo sentido é também um filme fantástico, esotérico, em que ao lado (e por detrás, por dentro, por cima, por baixo, impregnado) das aparências e das lisuras surgem assombramentos e fantasmas (e há por lá muito zombie e muito fantasma feito pessoa, e não me refiro só à Isabel Ruth vinda de “O Sangue”) que estilhaçam qualquer ideia feita sobre qualquer coisa e qualquer “normalidade”. O escuro que invade muitos dos planos, tanto os intimistas como o que aparentemente poderiam ser “turismo”, são só indícios das possibilidades das trevas que ficarão sempre em suspenso nas demarches dos protagonistas. Também por isso o filme parte da cidade da luz para a luz de Lisboa e logo para a escuridão do Porto.

- O que suponho que deve ser um cinema “divertido” e gratificante de ser feito; como nas viagens, descobrir coisas novas e adoptar um olhar. Deixar-se surpreender e fazer jus a essas dádivas. Ter que estar à altura do acontecimento. Era coisa que gostava de fazer.

1 comentário:

José Oliveira disse...

* não levem é isto muito a sério, hehe...