terça-feira, 29 de outubro de 2013
Quando se está no meio de muita sujidade, todos se acabam por sujar. É o que diz Edward G. Robinson, em “Tight Spot” um calmo temperamental oficial de justiça que tem mesmo de lutar contra a estrangeira máfia. Persistente meio alienado que tendo visto todos os seus trunfos para uma essencial declaração em tribunal irem parar a debaixo da terra, resolve ir à choldra e de lá retirar uma Ginger Rogers em belo loiro que no limite do medo e da pressão ainda dança e espalha outros tipos de magias. Magias, fantasias e todas as redescobertas físicas e mentais a espalharem-se do sufocante quarto de hotel onde a escondem para horizontes vastos de evasão, através do policia moribundo de Brian Keith que se aprumado e unido pela imagem de uma estátua da liberdade americana está mais escangalhado do que os que supostamente persegue. E a trama é mais um tabuleiro ou joguete onde todas as expectativas, toda a moral e lógica se pode subverter no ápice tremendo e impossível. Démarche humanista ou cruel diversão isenta de toda a convenção e lei inerente, de todas as regras para respeitar – precisamente em antros de ilusão e de lícitas amarras. Espaço geométrico para revelações há muito calcinadas e logo consciência do imperdoável tempo. Se tanto se agride ou tenta agredir Ginger, tanto ela igualmente vai agredir com variados modos.
Phil Karlson persegue e agarra tamanha dança de consciências e de afectos mais uma vez intensamente limpo, olhar e cabeça não viciada, sem enfâse nem retórica manipulativa, glorificante, sentimental, seja o que for para lá do essencial. Se como sempre leva a empreitada até ao término e limpa da face da terra muita da porcaria que a definha, tal como a sua câmara se borrifa para mimetizações fáceis e limpa e redescobre o espaço cénico que pisa, o que retira o tapete é como nessa saga se faz durar mais o tempo em que um homem está em frente a uma mulher e o desejo arde, do que à intriga que de tão baixa e usual ali não pode conspurcar a outra ainda mais antiga. Dois seres a limparem-se e a brotarem novos em conjunção e luminância, abafando a morte até ali central para o advento da nascença. Refracções e mutações a centrarem-se num ritmo ou numa música marcada a verdade. Ginger Rogers, numa personagem Capriana até ao vestido das bolinhas que se destaca pela sua aura branca em relação a todas as outras escuridões, faz cair a organização do mais forte e a teimosia do mais inflexível pela inocência e ousadia. Para um last minute rescue silencioso e assim novo que mete muita adulteração nos certos eixos. E a beleza e complexidade deste rudimentar filme de 1952 está aí, na brancura imaculada a pingar sobre a crosta mais feia e ambígua, esse Brian Keith duplamente desfigurado que se opera, Ginger e o realizador a retro escavarem tudo e a chegarem ao fundamental, que nos fala de possibilidades de redenção para cada um não importa como e que nos mostra que em certas ou erradas alturas os ínvios caminhos podem ser tão fiáveis como os oficiosos. O bem a sair do mal modificado que se revolta. O preço pago sem perdão. E acabámos no tribunal, no confronto directo e nas fundações. Sem dissimulação. A marca dos raros.
quinta-feira, 24 de outubro de 2013
Volto a Robert Eroica Dupea e ao meu filme desses tempos. Humildes, desgostosos, lastimosos, faiscantes, sem nada a perderem, sem seguro de vida, sem o tapete da salvação. E conservando puramente uma integridade e qualidades que se destacam no meio do supérfluo e das aparências intemporais que todo o modernismo ampliaria até à saturação. Portanto, volto ao meu filme destes tempos. “Five Easy Pieces” carrega a justeza dos valores primitivos, indestrutíveis, míticos, a par do choro pelo inexplicável degradamento que vai desbravando. Isto, nas formas e no que trata. No cinema e na carne e osso e emoção que o molda. Porque se estamos desde início ao lado de um desistente, alguém que parece ter assumido a derrota pessoal, lá longe de todas as promessas de consagração, todo o contra-campo disso, os motivos e agressões intoleráveis, essas elipses desmedidas a que só alguns chegam, nunca terão resposta, estarão na expressão e na acção de Dupea, na sua movimentação e no movimento fílmico. O direito a não ficar, a ir com o vento, não vencer. Não por niilismo burguês ou inocência radical, mas por amor. Um outro tipo de amor, muito superior ao banalizado. Amor e violência, a sua inseparável. Dupea afastou-se da música, como alguns meus próximos se tentam afastar do cinema. Afastou-se da casa e mantem ainda ou eternamente uma guerra interior. Ambas as coisas parecem não lhe fazer falta, esquecidas ou reduzidas, mortas à força, ou então disfarça muito bem. Mas não cede, não vulgariza, e a cobardia não faz mossa ali. Há por aí alguns, nos passeios e nos cafés que frequento todos os dias, no canto mais escondido da sala de cinema mais recatada ou no antro ainda aberto das quatro da madrugada, em gabinetes atulhados de papeis ou em honrosos cargos administrativos, em todo o lado e em lado nenhum, indivíduos duros que supostamente se apagaram para fruírem o que tantos famosos nunca cheirarão – a vida descarnada. Uma liberdade em que a sombra desses seres é proporcional à intensidade do ardor no estômago e das surpresas a cada instante. Um descontrole ou mesmo uma rotina que franqueia toda uma gama de sentimentos julgados impossíveis. Da mesma maneira, falando em casos ou causalidades cinematográficas próximas, não considero um Manuel Mozos ou um José Nascimento realizadores falhados. Como considero o padeiro da minha rua o mais prendado dos artistas. O que muitos tentaram e não conseguiram em incontáveis filmes, videoclipes ou híbridos, Mozos, Nascimentos, o puto ignorado do curso de cinema que não lambe botas, aquele que bebeu um copo a mais e falhou, conseguem a cada frame, a cada entrevista não dada, a cada cocktail falhado - a candura, uma aurora, a impressão de verdade que jamais se compra ou suborna. Do looser ao vencedor a ambiguidade da importância. Do fundamental. “Five Easy Pieces” é a estrada, o percurso e o foco para o desengano. Tão, tão nítido. Ficam dois dos exemplos mais doridos de que me lembro.
A câmara fixa-se no rosto dele, escuta-se os preparativos dos dedos e das vacilantes pálpebras, a música entra. Um lamento de Chopin dá o mote e o ritmo a uma divagação nostálgica e funerária. Sai dali com um último olhar e desce até à tensão e corografia dos dedos com as teclas. Detém-se um bocadinho, não muito, e avança para uma descrição do espaço que é simultaneamente a história do pianista e da sua tragédia ou salvação. A pauta, um repousado violino, outras mãos de uma mulher que nesse momento ele já possui, obviamente flores para uma coroa, um violino mais e o cortinado acastanhado em fundo para entrarmos nas famílias e genealogias. A sua, os seus, amados, perdidos, desprezados, desconhecidos, a infância, o luto. E a outra ainda, ali tão central como a sua, que o acompanhou igualmente do berço e lhe impôs um peso que ele não quis. Beethoven, Bach, o Chopin do negro, alguns mais. Texturas e rasuras a carvão, existências concluídas, suspensas, mascaradas, outras que ainda pulsam. Mas todos na mesma parede. E da aparente lisura voltámos para os relevos e já lágrimas da mesma mulher que vimos segundos atrás. Nesse hiato insignificante por entre eternidades, ela já é outra. Corte para ele, que parece descarregar as toneladas que ainda o faziam duvidar, agora, já mesmo nada o deterá. Para o bem e para o mal, princípio e fim. Aceitação e coragem, nascentes dessa circulação aglutinadora e espectral que assim materialmente e no espaço vazio da morte o cinema conseguiu urdir. Muito triste, muito contundente.
Mais um bocadinho para a frente, depois das fúrias e orgasmos gelados e antes da ponderação derradeira. Ele largará tudo de novo, fugirá, esconder-se-á, para arriscar tudo definitivamente ou na busca das felicidades iniciáticas antes das tempestades, não restam dúvidas. Ou então foi num instinto com causa. Sem prestar contas. É nessa gasolineira igualmente cálida e fria como o desamparo que ele entrega a sua identidade para ficar só consigo. Ao passar a carteira dos trocos à também lindíssima criatura composta por Karen Black, aposto que também passa o bilhete que o denuncia, a sua redutora construção que é mais a construção de outros. Um morto por um vivo, a ver vamos e jamais saberemos. Dupea não pestaneja, e vai à sorte que é a vida. No banco da frente de um hercúleo camião, ao lado do desconhecido condutor e desafiando o desconhecido destino, não haverá frio que o incomode, gelo que o paralise. Outro tipo de calor imaterial e invisível começa por ali a fervilhar. O resto é só dele e o filme acaba. Em toda a simplicidade, sem gritos nem retórica, todo o cinema que depois do clássico importa. Assim mesmo, perfeitamente clássico e intemporal. Com Jack Nicholson a preparar a rima, universal e não somente europeia, com o Antonioni de “The Passenger”. Rima ou chegada, conclusão, crepúsculo, embate, humana contradição. Nada mais certo no ar da errância.
domingo, 20 de outubro de 2013
“The Phenix City Story” é um dos segredos chave enterrados do cinema americano ou universal dos fifties. Ou uma das feridas demasiado profundas como as mais incómodas verdades, das que se queimam já sem crosta e só com sangue coalhado. Experimentem. Verdade, como guerra, é o credo da obra nuclear de Phil Karlson. Para dizê-lo já, sem medo de agressão, algo no mesmo comprimento de onda, família e intemporalidade, essa fatalidade, do Griffith de “The Birth of a Nation”, do Kazan de “Gentleman's Agreement”, do Lang de “Fury” e tantos mais seus, “The Fearmakers” de Tourneur ou, para não esticar mais a corda ou para a quebrar já, do Wilder com a personagem mais badalhoca e alienada de todo o cinema, Kirk Douglas em “Ace in the Hole”. Ondas rejeitadas pelos patrões de TPCS, por qualquer parlamento de hoje, qualquer imprensa, ouvidos moucos onde a ridícula consciência é posta para lá da almofada.
Não existe nada com tal garra e força de denúncia, reposição, vingança. E uma certa inutilidade. Tragédia. Nos seus quinze minutos de um prólogo que jamais é tentativa documentarista, estando antes do lado operático e conciso de uma luta com o caos, embate cortante e irreprimível, um jornalista mete-nos dentro do terror e da brutalidade da sede de poder dos homens, sua podridão, regressão e animalidade intrínseca. Veementemente, na fixidez, persistência e estupefacção da câmara, e na pose rígida e vincada dos corpos e expressões gerais dos protagonistas. Marcas como as de uma permanente herança. Para logo os apanharmos num flashback que nunca o é, tristeza das tristezas, continua hoje e num sempre.
Mas ali, em Phenix, no Alabama, vamos estar no centro do mundo e da nossa História, percurso, narrativa, uma aurora que é um crepúsculo. Ainda mais do que a aldeia Americana em que se passa “The Brothers Rico”, todos aqueles germes e brotares parecem arrebentar para lá do enquadramento, para todo o lado, cena universal, sem grandes redenções que não pelo impulso. Todos os tempos e pisos naquela condensação e explosão. Panorâmicas mostram-nos o solo e a sua idade, lares e céu. O cheiro e o medo na terra. E se vamos conhecer muito bem o agressor do sítio, o grande-plano vai para cada um que lhe fizer frente. Ficando o palco e todas as incredulidades em plano mais do que geral, não mesurável. E filme imensamente triste, tanto como as mortes inesperadas de meninas inocentes ou de velhos genuínos. Prosseguimos assim? Como?
Poder de fogo, mas também poder do sexo e da comunicação imparável. Poder da lábia e a aptidão para o acomodamento. Espiões, infiltrados e desmontagem do poder. O mau a dizer que o mal da sociedade é querer mudar coisas. O bom a contrapor que se o seu grupo nada fizer, tudo continuará na marcha da felicidade que eles conhecem tão bem como cada um de nós. E aquela esposa tremente a dizer ao marido guerreiro que não o vai esperar de uma segunda guerra, para no tudo ou nada lhe cair nos braços incondicionalmente. Para o filme atingir uma síntese, uma resposta ou moral, clímax banalizado, que está muito próxima dos grandes estertores, Peckinpah ou Solima, essa de que só a lei da bala torna a ordem possível. Ódio com ódio se responde. Como Straub/Huillet também nos disseram via Heinrich Böll. Violência com violência se paga. Por isso não é ridículo ou piegas um negro não permitir que um branco suje as mãos com a trampa do vilão, lhe cite o sagrado, tornando-se por vias disso harmónico o quadro cinematográfico. Como é lógico que tudo feche em suspenso e com promessas de catarses ou apocalipses.
Muito mais do que retrato da modorra ou da lanzeira Sulista do Tio Sam, estamos perante imparáveis torrentes de choros e lamentos por isto onde viemos. Sem grande esperança que a do eterno fado. Contínuas rememorações. Afiar de dentes. Cabeça baixa, cabeça erguida. Ganhámos uma batalha, permanece a guerra. Diálogo bélico. Mesma cantiga. Num filme sem estrutura estudada ou conceito, que nos atira a sequência de abertura citada, depois minutos e minutos de bordel sem sensualidade mas antes nojo, a televisão a tramar o cinema ou a impossibilidade da estilização na gravidade. De alguém que ao contrário do antropólogo bisbilhoteiro e aproveitador, se atira pelo opaco, dá e leva, mas de pé, no seu lado, sem cobardias ou pedantismos. Cem minutos de holocaustos vários, altares sacrificiais, sentimentos anacrónicos. O resto assim foi, vem nos próximos episódios, rudemente ou em fascículos apaziguadores. O cinema moderno dos catedráticos e tanta da questão dos campos em tom simplista posta cheque. Não se pede desculpa.
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
"People often speak of films where the relationship between men, their friendship, have an enormous importance. I believed in the friendship of Abel Davos and Stark, absolutely. It is interior, and does not appear by means of dialogue. The two men's behavior makes explicit their feelings, without either of them having to speak of their friendship. That is partly why I was not able to believe in the friendship of Jules and Jim, even though they speak of it often. Of course, I am not opposing the Sautet technique and the Truffaut technique: absolute classicism and the new cinema are two forms of the same art. It remains to be seen if, in 1965, both will still exist or if one, alone, will still exist."
Jean-Pierre Melville sobre "Classe tous risques" (Claude Sautet)
Jean-Pierre Melville sobre "Classe tous risques" (Claude Sautet)
terça-feira, 15 de outubro de 2013
A sinopse de “Kansas City Confidential” afirma que um ex-condenado é tramado por um milhão de dólares de um roubo a um carro armado e por isso decide encetar o desmascaramento dos verdadeiros culpados que o leva até ao México. Diz ainda que esse tipo tentava andar na linha. Tipo chamado Joe Rolfe, interpretado por essa atraente sombra de John Payne. Em 1952, num dos quatro filmes em que Phil Karlson esteve envolvido, os seus homens sujos mas limpos de outra maneira superior e indefinível, já galgavam até ao fim do mundo para porém as coisas em pratos limpos.
Da sinopse ao aviso prévio que nos fala em lei, confidencialidade e brutalidade, todos os envolvidos no assalto perfeito vão tapar a cara, mudar de identidade, do Deus perverso até à escória acorcovada que acende cigarro com cigarro. Vão manipular e ser manipulados, dissimular no limite. E se o Tim Foster que surge como mestre-de-cerimónias, controlador das suas marionetas e argumentista do teatro universal, espalha a matança e a pérfida desde o Kansas até ao outro lado da fronteira para Oeste, o seu maquiavélico mecanismo e complexo coração acabam por acertar todos os ponteiros do relógio, fazer toda a justiça prática e poética, entregando as intrigas e desenlaces aos protagonistas da peça e não à autoridade vaga. Ressabiamento de polícia despedido ou visionário romântico, tudo em causa.
Personagem que só rima com o carregado e despido Joe Rolfe, esse persistente magoado que com certeza já muito mal passou para não perdoar o que a maioria tomaria como bênção. Falso culpado que se emancipa, largado novamente às feras e sem ter onde cair morto pelo acaso que o desgraçou, vai precisamente atrás dessa entidade sem nome nem corpo, idade ou lugar, um eco divino ou vadio, para lhe infligir as chagas dele e castigar pelo dobro. E, nessa via-crúcis ordenadora ou vingativa como a de Tim, em que arrisca tudo para no máximo sentir na pele uma evidência ou limpeza fundamental, vão, no impossível retrocesso do rolo compressor, caindo as sombras e as negras ambiências com que o mundo e o cinema se travestem na largada. Luzes soterradas que se acendem a cada firme e proibido passo de Joe. A dramaturgia antes da cinefilia, numa respiração ontológica que a urde. E, quando já nada se augura no vórtice sacrificial, alumia um encontro improvável que pode ter o nome de dádiva redentora ou atracção prometida. Recompensa dos Deuses ou Diabos do Mal ou do Bem que sempre nos perseguiram, ou o que tinha de ser a ter muita força mesmo que por ínvios passeios.
Não se pode deixar passar em branco o facto que despoletou tamanha ira, facto que nem sequer se viu por causa de violentas e dúbias supressões, ainda antes de poderem ser sugestivas elipses. Tudo o que não tivemos direito, vai passar a estar marcado na convicção de Joe, coisa de alma e de rugas. Exactamente como o móbil e raiva que faz mexer Tim, que o faz ainda abençoar a filha e a genuína relação nascente em antros de perdição. O saber e ousadia de Karlson, além de ter rebentado novamente o possível colete-de-forças do código e da éticazinha, foi o de concentrar no motor oculto e desconhecido dos interessados a energia essencial. Assim como nós soubemos a identidade do mastermind e os seus subjugados não, ninguém vai entender por que Joe age, por que vestiu a pele de um morto, ou mesmo por que o beijo final não suaviza nada. Pelo contrário, na miséria e no máximo degradamento, a luz. E os seculares pecados em regresso. Bresson, Chandler, Bernanos, Detour? Quem quiser que some e dessome, aqui, muita estrada batida e muita colisão. Uma tragédia, um milagre. Em surdina.
sábado, 12 de outubro de 2013
COOK: The genius of the system is its evasiveness.
GRAY: Totally genius, cause now there’s no draft so you have poor brown and black people fighting the war so college students don’t have to give a shit, they can be completely divorced from politics. How does this affect movies? Well, it makes you realize the movies no longer have to convey to us a reality we recognize. Why? Because college students no longer face an imminent life or death situation. They aren’t forced to confront mortality. So they don’t need Five Easy Pieces. They need Avatar: “Cool ride, man.” That’s really where American pictures have changed, because that audience is gone.
http://mubi.com/notebook/posts/love-sincerity-a-conversation-with-james-gray
GRAY: Totally genius, cause now there’s no draft so you have poor brown and black people fighting the war so college students don’t have to give a shit, they can be completely divorced from politics. How does this affect movies? Well, it makes you realize the movies no longer have to convey to us a reality we recognize. Why? Because college students no longer face an imminent life or death situation. They aren’t forced to confront mortality. So they don’t need Five Easy Pieces. They need Avatar: “Cool ride, man.” That’s really where American pictures have changed, because that audience is gone.
http://mubi.com/notebook/posts/love-sincerity-a-conversation-with-james-gray
terça-feira, 8 de outubro de 2013
A panorâmica é descrição. O travelling, acção. Nos
grandes casos, sinto isso. Como também somos levados à desorientação decisiva
quando tudo se entrelaça. Em “Professione: repórter”, para mim o capital filme
de Antonioni, aquele em que a falta de resolução é mais grave, são estas duas
figuras de estilo ou movimentos perscrutadores, a sua função e manejo, que tudo
colocarão em causa. Colocar em causa e desorientação – toda a arte de MA. Primeiro
plano, dia, deserto. Num filme que começa em clarão cegante até ao cair da
noite sem alívio. O protagonista, Jack Nicholson, encontra-se ou desencontra-se
na profundidade de campo, sai do seu jipe, interpela alguém, mas de repente a
câmara vira-se para a esquerda, enquadrando o que não parece ter causa, dois
miúdos a chegarem, voltando a ele muito aproximado mediante um corte.
Pareceu-me uma panorâmica para a esquerda, um pouco tremelicante, um pouco
tosca e também ela errante. Suspense ou interesse pelo nada que ficaria
inevitavelmente fora de campo numa planificação clássica? Pouco depois, já
corridos os créditos, no primeiro ponto supostamente dramático, o enquadramento
fica no protagonista e no seu ajudante que recuam medrosamente, antes de o nosso
olhar ser conduzido para o contra-campo da ameaça. Seguidamente a esta inversão
das expectativas, um dos primeiros momentos célebres, quando a viatura se
enterra num monte de areia. Nicholson de braços abertos numa revolta inconsequente,
sem receptor, na primeira rendição, e a câmara a largá-lo para escutar, sentir
e dimensionar o temível organismo secante que ali nem sensual é. Pelo meio
disto, onze minutos, algumas antecipações da acção ou da possível linha
narrativa; como muita divagação para o que está ao lado.
Se será da impossibilidade da fuga a si próprio
que tudo isto nos fala e mostra, a cena da troca de identidade e a sua
construção é o momento determinante, aquele que inevitavelmente rima com o
célebre zoom final. O olhar revelador vai indagar mais uma vez o deserto,
descrevendo-o ou escondendo-o, para se envolver em metafisicas e fantasmagorias
que jamais se empolam ou se evidenciam. Apenas decorrem no seu presente e
normalidade. Naquele espaço sufocante, onde microscopicamente a lente se cola a
fios, paredes, bichinhos, transpiração. No acto da falsificação perpetrada por
Nicholson, o som gravado na fita do jornalista e o corpo do duplo encontrado
morto vão invadir a auscultação da posta em cena. O plano sequência conterá lá
dentro duplos dos vivos e duplos dos mortos, imagens e sons impossíveis e a sua
evidência, tudo fundido na circulação em vórtice que tem o nome de perdição.
Designação técnica e existencial. Nicholson prefere pessoas a paisagens, o
outro parece preferir o oposto. Sem flashbacks, saímos do delírio tão
realisticamente como entrámos. Sem sobressaltos. Ficámos a saber de onde vem o
of sonoro, ficámos?, e percebemos que dos dois só um ainda respira, mas,
penso que é legitimo questionar, em que realidade vamos permanecer?
A partir daí, deslocações e mais deslocações,
relações físicas e ilusórias, muito desfoque e mais asas desfraldadas ao vento.
Uma câmara que parece flutuar ao sabor do acaso, na busca da matéria primeira
de que se fez o reconhecido Cinema, alquimia romanesca ou sinais básicas. Dança
onde a aplanação das cores e dos volumes, a retenção dos horizontes e o
afunilamento cósmico anularão qualquer pulsão ou pulsação redentora. Fluxos
vitais ausentes da nudez e do sexo. Os tempos continuam-se a sobrepor e a
atropelar, sem ordem lógica, do terrorismo para o niilismo, das armas para os
documentários, do ecrã para fora dele, para a aniquilação. Com uma cena
enigmática, aquela em que o ponto de vista, antes de se fixar numa conversa
entre o par, tenta seguir de um interior para um exterior as velocidades e cursos
das viaturas que passam. Rendendo-se quase imediatamente mas sem justificações.
Por isso a cena final parece-me menos um
irrealizável prodígio tecnológico, e se o é absolutamente jamais cai na
gratuitidade, e mais uma culminação ou embate lógico. Lentíssima sucessão de
reenquadramentos, cisões, ajustes, fusões, alheamentos e fixações, buscas e libertações,
onde tudo desemboca e vale por si mesmo, num quadro que começa por cortar
Nicholson a meio e termina num velório em composto renascentista. Toda a
gramática, dentros e foras, escuridões e claridades, o tempo mesurável e o
tempo que se esfuma, concreto e sagrado, universo. Depois, a noite e o eclipse.
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
Paul Wendkos é um caso curioso, o seu percurso sui
generis e uma vida como só antigamente dão pano para muitas mangas e demais farda.
Estudou cinema por Nova Iorque, mas também esteve na segunda guerra mundial ao
serviço da marinha. Vagabundeou por Filadélfia com o seu muito amigo David
Goodis, e em 1957 realizou o estratosférico “The Burglar” por poucas patacas. Para
a costa Oeste da grande indústria cinematográfica, e de outras grandes coisas, foi
contratado por foi Harry Cohn, chefe da Columbia, numa daquelas transferências
gloriosas que imagino que hoje em dia só se façam no futebol. A partir daí foi
combinando o cinema com a televisão, até que pelos 70 deixa praticamente o
primeiro para se dedicar à nefasta caixa de fascinante potencial inexplorado. Ao
longo da prolífica e com certeza desequilibrada carreira aos olhos dos carreiristas
sérios, tanto os Franceses dos Cahiers e doutras bandas o pensaram e elogiaram,
como foi considerado “Director who made his name as a pioneer of made-for-television
films“. Muita coisa que demorará a perceber e que eu peço perdão por condensar
tão forçadamente.
O que me traz por aqui é o seu prazeroso, e
talvez não para muitos mais do que para mim, igualmente ambíguo “Cannon for
Cordoba”, realizado em 1970, penúltima obra para cinema. Ambíguo e insubordinado,
vou insistir. À primeira vista é um meio filme de Guerra, meio Western, em que
um esfarrapado grupo de soldados Americanos têm de entrar num México ardente,
sacar os roubados canhões em questão e capturar o líder rebelde que anda a pôr
tudo e todos em polvorosa. Pode ser ainda um prato exótico no seu cruzamento e
sabotagem de géneros cinematográficos. Spaghetti, exercício estiloso, o modernismo
do Scope, o piscar de olho aos êxitos vândalos de um Aldrich ou Peckinpah. Moral
torcida e desalinho geral. Bandeira Tarantinesca. Enfim, poucos limites.
E nessa fossa vai haver muita traição,
espionagem e contraespionagem, fantochada, filhadaputice e todo o género de
baixarias que dos tempos de guerra já passaram para os tempos de suposta paz. Mas
a coisa já começa a piar fino quando vemos um vulto a ser queimado na fogueira
e descobrimos que o outro que o olha mais sofregamente e nada pode fazer, por
obrigação ao superior e à causa maior, é o seu irmão. Quando uma puta que tem
por missão usar o corpo para reter o General Cordoba que interessa, usa a
máxima falsidade para chegar à sua máxima perversidade, a todos dando baile,
inclusive a nós.
Mas muito passará pelo Capitão George Peppard,
esperto e obstinado como um Frank D. Merrill ou como um Sargento York, esse
mesmo Hannibal do “Esquadrão Classe A”, insuperável
de convicção e aceitação de si mesmo, tanto da maneira como se atira para o abismo
sempre a pique que vão abrindo, como no assunto da infame misoginia ou machismo
para lá do aceitável. Conduzindo estropiados, párrias e baladeiros calados rumo
à sua felicidade, aquela que demora e se paga na carne e na mente mas que surge
descascada de toda a aparência - no instante terrível da visão da morte, a
verdade momentânea que tudo extermina. Aqueles eternos milésimos de segundo
antes do tombo final. O essencial. E o privilégio dos tempos bélicos em relação
à calmaria podre.
Entre esse espectáculo da perspectiva ou
deslindar do ilusório, duas tiradas essenciais. “A Revolução tem muitos amigos,
porque o pagamento é bom”, no meio dela. E “O problema de ser um herói começa
no dia seguinte”. Portanto, entre a possível boa alma, a humildade do guerreiro,
um apaziguamento depois do caos ou o uso da sujidade em terreno onde ela já não
se separa do resto, ao menos a tal da lealdade interior. E para não me estar a
esquecer que alguém também diz que as máquinas são mais confiáveis do que as
pessoas. Reflexos de reflexos de reflexos e os fragmentos resultantes. Se a
paródia faz sentido é porque ali tudo o é, como quando?
De resto, entre 57 e 70, Wendkos, neste superior
uso da desmesurada horizontalidade, aplicando notáveis desequilíbrios na
lucidez da sua posta em cena que advém da lucidez do comandante e da loucura
envolvente que a todos vai sugando, conserva do noir iniciático a estranheza do
Homem e suas acções no centro do palco devorador. Indecifrável ou só claro pela
construção singular. Sinta-se as cambaleantes e distorcidas visões de quem lá
está e a tortura da subjectividade. Tudo porco e reduzido ao grão, enrodilhado
a suor e tripas. Onde vai um homem…
sábado, 5 de outubro de 2013
“Canta para mim, que eu sorrio para ti”, assim
pede um cowboy sorridente a uma bela rapariga que parece deslocada e só ali
estar devido a tal ternura. Belas trocas e confissões ainda possíveis. Ela cede
e canta-lhe um “Saddle the Wind” magnânimo e tão irrealista como só o cinema
americano conseguiu. Ele vai-se derretendo e mal acaba o embalo dá-lhe um beijo
que já é fora da norma cinematográfica da época e do resto. Ela reage e algo se
denúncia. Tony Sinclair, um John Cassavetes superlativo que em oitenta e quatro
minutos passa por todos os registos; e Joan Blake, radiante e também magoada Julie
London a quem Robert Parrish, o realizador desta obra que tem o título da
canção soprada, oferece planos como Nicky Ray ofereceu à Vienna de “Johnny
Guitar “. Ou seja, quadros também eles exageradamente pintados em busca da
temperatura ideal. Para ela, para ele e para o irmão dele. Como a coisa tende
para a violência dos sentimentos, temos azuis fulgorosos e verdes desmaiados. O
que aumenta o batimento cardíaco e expõe as penas de cada qual, sem os
sacramentais magentas ou amarelas da psicologia da cor.
O irmão de Tony é Steve e tudo o que se vai
passar pelas áridas e leves montanhas, vales e nuvens do Colorado tem a ver com
o desembocar final de uma história de sangue e logo de cabeça muito mal
resolvida. Porque Steve foi também dele Pai e Mãe, amigo e cúmplice, desde a
aurora. Matou muito e enterrou muito sem pestanejar. Agora, na curva
descendente, não tem metade da destreza do miúdo e pede-lhe para não repetir
exemplos. E o miúdo já casadoiro só lhe quer agradar e não para de puxar do
gatilho, de querer evidência e reconhecimento, de ser o centro de onde quer que
esteja com a sua aura. E tudo vai perdendo, da bela que o seu lado bom resgatou
a um antro qualquer, à simpatia larga que por vezes não trava, simpatia rasgada,
que o torna noutro que alguns privilegiados tiveram direito.
Inscrições em árvores como nos rochedos de
“Colorado Territory”. Ex-combatentes em busca da terra prometida. Campos de
flores lilases com neve em fundo. Insurreições proibidas. Bons corações em géneses
corrompidos. Diabólicos alheamentos. Compreensão incompreensível. Reflexos
distorcidos ou verídicos em poças de água. Natureza manchada. Perda da
liberdade. Entrega ao vento. Complexo
diagrama que envolve e convoca o despojamento do meio, a sua fragância e nitidez,
em relação e dilema com a outra natureza, a do homem, e do seu percurso
civilizacional. Assim o espanto de como tão absoluto espaço que em cada ângulo
parece ressoar a imagem de Deus poder abarcar tamanhos desesperos. Poder
conceber lágrimas e suicídios. Daí essas breves composições de que já falei. Fugazes.
Estampas sacras. Que não podem durar. E a câmara do paciente e subtil Parrish
vai perguntando porquê. Por que não posso fazer o filme todo nesse tom? Se
nascesse noutra era podia? Terrível para nós, decisivo para esta arte do tempo.
Tempo, escuro. Datado do ano seguinte a Saddle,
“The Wonderful Country”, então de 1959, ano de “Rio Bravo, é um projecto
pessoal do seu protagonista, Robert Mitchum igual a ele mesmo. Nada de
egocentrismos ou destaques. Tão silencioso e apagado como sempre. Mas logo
vamos sentir outro tipo de vento e de luz diversa do Western irmão bastardo
deste. Luz glauca, enquadramentos marados, grandes-planos saturados, esfumados,
parecendo arrancados à força. A ironia do título. Num barroquismo ou num
doentio gótico que não vai estar só pelas formas mas também pelos
protagonistas, as suas relações e o modo de se ligar tudo.
Como os irmãos de Saddle, Mitchum não tem casa.
E pior do que isso, não parece ter sequer pátria. Apátrida fronteiriço num
mundo ali todo desmoronante. Entre o México e os Estados Unidos anda ele a
vaguear, a cruzar rio e fronteira constantemente e sem assentar, Americano
Mexicano e vice-versa sem ordem, não querendo pactos definitivos e castradores.
Desdenha a higiene e o progresso dos “gringos” e não hesita em sacudir as
largas abas dos largos chapéus rivais. Não querendo trucidar índios nem
querendo, talvez muito menos, amar. Pedro Armendáriz, um dos chefes de um dos
lados, vai resumir dolorosamente o dilema: “…pertences a lado nenhum”. E depois
disso ele cavalga o que parecem dias e noites ou uma eternidade, para um ermo
que o olha e acolhe como seu poiso natural e prometido.
Estranho ser sem muito passado apregoado a não
ser a história do Pai que pode mesmo assim não ser decisiva; estátua sem procedência
nem horizonte a deambular ao sabor da maré, do calor ou do encantamento
momentâneo. Assassino, matador, pistoleiro – tudo nomes para quem parece nunca
ter parado muito para reflecções profundas. Mitchum, a impassível passividade. E
a felicidade de alguma coisa nisso. E vai mesmo acertando pólvora, afastando o
lar, afastando o coração. Se quando aquela Helen da Julie London conhecida lhe
diz que ele só é Homem de pistola em punho, como o Cassavetes anterior, e ele a
renega, a lança para longe com as balas e a beija; se depois de morrer o marido,
esse marido estoico que Mitchum ousa aclarar que ela admira mas não ama, ele a vai
procurar para dizer que o que conta são os sentimentos e não os actos,
trocando-lhe ela o essencial da afirmação, é porque tanta é a misturada que continua
sem saber o que fazer, mas, essencial “mas” que não passa por redenção, ganha a
veracidade daquele olhar.
Actos e sentimentos, humanismo e estética. “The
Wonderful Country” é assim, uma bomba relógio sem rei nem roque, pois só o
podia ser depois da constatação e da procura encetada em Saddle. Desejada a
depuração e estourando na cara a discordância, estamos no meio do turbilhão, um
filme e uma visão de múltiplos tons, focos, velocidades. Já nem o CinemaScope
se justifica. Western Spaghetti antes de o terem celebrado e banalizado, como
por exemplo um Joseph H. Lewis já tinha conseguido, onde tudo cabe materialmente
e simbolicamente – mestiçagem, “Texas Rangers” e vândalos, explosão berrante e aleatória
das cores, fogo-de-artifício fundido a caveiras da morte mexicana, rabos ao leu
que chocam puritanas, objectos a entrar pela lente dentro, volumes ou linhas sem
lógica que trilham a legibilidade da composição, toque documental ultra
estilizado, luzes e suas ambiências bruxuleantes, músicas destoantes,
antagónicas e contraditórias. Dilatações efémeras. Um caminhar à Fonda ou à
Eastwood. Etc.
O último plano, movimento de câmara sem nome, em
que Mitchum se despe da convenção, faz o luto pelo fidelíssimo Lágrimas que é o
nome do seu cavalo prodígio que abertamente adorou, e vai em direcção ao Tudo
ou a Nada, é uma boa imagem da almejada totalidade. “The Wonderful Country”
pode ser sobre Tudo ou um delírio sem causa. Nostalgia sulista à Twain, um belo
Mississippi, berro das entranhas ao limbo como Peckinpah mais tarde. Depois do
sagrado, da força telúrica e do incêndio das paixões, ficam os estilhaços
poéticos. Lirismo cadavérico. Desordenados instintos.
quinta-feira, 3 de outubro de 2013
Palavra de honra. Palavra de honra. Honra.
Impossível a frase e o seu peso não ficar a martelar muito depois de “The
Burglar” ter acabado. Que é não só um filme traçado e esculpido em moldes
únicos por Paul Wendkos, mas também por outro dos muitos discretos e comovidos
que respiraram e calcaram Filadélfia, os seus passeios imundos, as suas docas
pesadas e o seu ar e certa luz estranhamente agregadora, David Goodis. Assim
sendo, microcosmo de falhados, desistentes, fatuamente feridos, calados,
avisados, e sempre a descer. Mas também, como podemos constatar com o Dan
Duryea daqui ou o Balboa de “Rocky”, alguns excessivos fiéis que por isso mesmo
e não pelo oposto se vão queimar.
Num filme de assalto que só o é pela sinopse ou
pelo olhar simplista, vamo-nos deparar com um grupo e o seu grande estratagema.
Milimetricamente planeado e executado mais ou menos sofregamente, mas
executado. A partir daí, dilemas morais e dilemas psicológicos vão rebentar as
costuras e conduzir cada um deles ao abismo. E, por causa do sofregamente,
dilemas práticos e caçadas bárbaras. Se o patrão feito por Duryea se vai auto
trucidando e asfixiando, mais por causa do elemento feminino que faz parte do
grupo do que pela pressão pós golpe, menina que ele um dia tomou em mãos por
palavra de honra e depois por amor, é porque descobre de uma vez por todas que
tal conceito não joga com o seu modo de vida. Esse que também ele diz que é a
única coisa que sabe fazer, que o domina e ajoelha completamente.
Roça-se com mulheres corrompidas que convencem como freiras;
atira essa Jayne Mansfield criança para a boca do lobo; vira-se contra cada um
dos companheiros. Primeira parte do filme na Philly também conhecida por The
City of Brotherly Love: sinfonia suicidária com instrumentos e harmonias do
inferno – a casa perto da linha de comboio que pontua, ordena e comenta a
desgraça. Como ponto máximo surge a cena de estrupamento derivada da urgência
sexual que tais formas provocam naquele irrespirável seio. Balanço da carne e
do gemido montado em confronto com as paralelas violadas pela pujança da locomotiva
e subsequentes orgasmos – culminância lógica. Segunda parte: saída do terreno
matricial em direcção a outro tipo de resvalamento. Queda em lugares
geométricos da prova da sorte, desbaratamentos e punhaladas capitulares. E
outro tipo de assombração: feiras de maquinismos demoníacos e assoladores, paradas
de monstros de cera e mortos pálidos amarrados há muito. E a não distinção dessas
prespectivas calcinadas, tortas e corrompidas em relação aos humanos em
recreio. A joia da revelação, essa, não tem qualquer valor, é oferecida de mão beijada a quem por ela tudo trai, como prova irrefutável de um grito de humanidade e ternura ainda possível.
Vão-se descobrir as coisas importantes nos
sítios e nas horas más e nada a fazer. Um lamento que como todas a escrita de
Goodis é na mesma medida severo, sem contemplações e comovido até ao osso. Amor
e ódio com a mesma hipótese ciclópica de irrupção. Sem falsos reconfortos. Notável
a maneira como Wendkos apanha e encena de forma limpa a mais crispada das
danças. Como me disse um amigo meu fã do filme: tudo o que está dentro, se
movimenta e vibra é intrincadíssimo; as soluções cinematográficas são simples,
claras, elementares. Toda a modernidade que importa. Num filme também “on location”,
pelas asperezas originais e vivas que tanto magoam a luz. Num palco ou numa estufa
onde laivos de claridade mínima arrancadas a trevas proporcionam o testemunho,
a possibilidade de impressão num mundo onde a chama está prestes a ser
desligada. Sujidade e limpidez. Uma comunhão perfeita de dois grandes viciados
na existência e na sobrevivência, discorrendo e escondendo segredos e dádivas, no
mais imperfeito e no mais improvável. E também com a raça e o lado por eles
escolhido que tanto medo mete a quem se tenta aproximar.
A diferença e a perseverança, é este o credo.
Quando os praticantes originais disto pensam diversamente, mesmo que só por um
momento de dúvida, até as paredes e chão tremem e contra eles se revoltam. Recuo:
a cortina sobe e temos vindo de um ecrã de cinema, só momentos depois o vamos
saber, actualidades orientais, reportagem social, matulonas saltitantes e mais
fancaria, tudo no embrulho universal. Pouco depois passaremos para o interior
televisivo e para toda a falsificação e espectros vindouros. No meio de tanto
barulho e eco, tanta fome argentária, vamos ficando com o centro e interesse da
demanda: o fascinante, perigoso e lacrimoso Dan Duryea + a ex-coelhinha da
Playboy que é Jayne Mansfield, tão pura e despida no essencial como esse santo ladrão
que jurou ao mestre que era o pai dela o acolhimento eterno. E o produto da
união e da sua circunstância: a solidão. Num filme de tantos quadros picados
tristíssimos, esmagantes e protectores, vazios, mas, em derradeira instância,
belíssimos. Porque amparados por uma força verídica extra-ordinária. O último
de todos, oposto às rancorosas visões subjectivas, é isso: guia para a morada
final e o olhar de cima. Algo superior que responde à miséria.
“The trouble with people is they don't understand people.”
David Goodis
David Goodis
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