terça-feira, 15 de outubro de 2013



A sinopse de “Kansas City Confidential” afirma que um ex-condenado é tramado por um milhão de dólares de um roubo a um carro armado e por isso decide encetar o desmascaramento dos verdadeiros culpados que o leva até ao México. Diz ainda que esse tipo tentava andar na linha. Tipo chamado Joe Rolfe, interpretado por essa atraente sombra de John Payne. Em 1952, num dos quatro filmes em que Phil Karlson esteve envolvido, os seus homens sujos mas limpos de outra maneira superior e indefinível, já galgavam até ao fim do mundo para porém as coisas em pratos limpos.

Da sinopse ao aviso prévio que nos fala em lei, confidencialidade e brutalidade, todos os envolvidos no assalto perfeito vão tapar a cara, mudar de identidade, do Deus perverso até à escória acorcovada que acende cigarro com cigarro. Vão manipular e ser manipulados, dissimular no limite. E se o Tim Foster que surge como mestre-de-cerimónias, controlador das suas marionetas e argumentista do teatro universal, espalha a matança e a pérfida desde o Kansas até ao outro lado da fronteira para Oeste, o seu maquiavélico mecanismo e complexo coração acabam por acertar todos os ponteiros do relógio, fazer toda a justiça prática e poética, entregando as intrigas e desenlaces aos protagonistas da peça e não à autoridade vaga. Ressabiamento de polícia despedido ou visionário romântico, tudo em causa.

Personagem que só rima com o carregado e despido Joe Rolfe, esse persistente magoado que com certeza já muito mal passou para não perdoar o que a maioria tomaria como bênção. Falso culpado que se emancipa, largado novamente às feras e sem ter onde cair morto pelo acaso que o desgraçou, vai precisamente atrás dessa entidade sem nome nem corpo, idade ou lugar, um eco divino ou vadio, para lhe infligir as chagas dele e castigar pelo dobro. E, nessa via-crúcis ordenadora ou vingativa como a de Tim, em que arrisca tudo para no máximo sentir na pele uma evidência ou limpeza fundamental, vão, no impossível retrocesso do rolo compressor, caindo as sombras e as negras ambiências com que o mundo e o cinema se travestem na largada. Luzes soterradas que se acendem a cada firme e proibido passo de Joe. A dramaturgia antes da cinefilia, numa respiração ontológica que a urde. E, quando já nada se augura no vórtice sacrificial, alumia um encontro improvável que pode ter o nome de dádiva redentora ou atracção prometida. Recompensa dos Deuses ou Diabos do Mal ou do Bem que sempre nos perseguiram, ou o que tinha de ser a ter muita força mesmo que por ínvios passeios.

Não se pode deixar passar em branco o facto que despoletou tamanha ira, facto que nem sequer se viu por causa de violentas e dúbias supressões, ainda antes de poderem ser sugestivas elipses. Tudo o que não tivemos direito, vai passar a estar marcado na convicção de Joe, coisa de alma e de rugas. Exactamente como o móbil e raiva que faz mexer Tim, que o faz ainda abençoar a filha e a genuína relação nascente em antros de perdição. O saber e ousadia de Karlson, além de ter rebentado novamente o possível colete-de-forças do código e da éticazinha, foi o de concentrar no motor oculto e desconhecido dos interessados a energia essencial. Assim como nós soubemos a identidade do mastermind e os seus subjugados não, ninguém vai entender por que Joe age, por que vestiu a pele de um morto, ou mesmo por que o beijo final não suaviza nada. Pelo contrário, na miséria e no máximo degradamento, a luz. E os seculares pecados em regresso. Bresson, Chandler, Bernanos, Detour? Quem quiser que some e dessome, aqui, muita estrada batida e muita colisão. Uma tragédia, um milagre. Em surdina.

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