“Canta para mim, que eu sorrio para ti”, assim
pede um cowboy sorridente a uma bela rapariga que parece deslocada e só ali
estar devido a tal ternura. Belas trocas e confissões ainda possíveis. Ela cede
e canta-lhe um “Saddle the Wind” magnânimo e tão irrealista como só o cinema
americano conseguiu. Ele vai-se derretendo e mal acaba o embalo dá-lhe um beijo
que já é fora da norma cinematográfica da época e do resto. Ela reage e algo se
denúncia. Tony Sinclair, um John Cassavetes superlativo que em oitenta e quatro
minutos passa por todos os registos; e Joan Blake, radiante e também magoada Julie
London a quem Robert Parrish, o realizador desta obra que tem o título da
canção soprada, oferece planos como Nicky Ray ofereceu à Vienna de “Johnny
Guitar “. Ou seja, quadros também eles exageradamente pintados em busca da
temperatura ideal. Para ela, para ele e para o irmão dele. Como a coisa tende
para a violência dos sentimentos, temos azuis fulgorosos e verdes desmaiados. O
que aumenta o batimento cardíaco e expõe as penas de cada qual, sem os
sacramentais magentas ou amarelas da psicologia da cor.
O irmão de Tony é Steve e tudo o que se vai
passar pelas áridas e leves montanhas, vales e nuvens do Colorado tem a ver com
o desembocar final de uma história de sangue e logo de cabeça muito mal
resolvida. Porque Steve foi também dele Pai e Mãe, amigo e cúmplice, desde a
aurora. Matou muito e enterrou muito sem pestanejar. Agora, na curva
descendente, não tem metade da destreza do miúdo e pede-lhe para não repetir
exemplos. E o miúdo já casadoiro só lhe quer agradar e não para de puxar do
gatilho, de querer evidência e reconhecimento, de ser o centro de onde quer que
esteja com a sua aura. E tudo vai perdendo, da bela que o seu lado bom resgatou
a um antro qualquer, à simpatia larga que por vezes não trava, simpatia rasgada,
que o torna noutro que alguns privilegiados tiveram direito.
Inscrições em árvores como nos rochedos de
“Colorado Territory”. Ex-combatentes em busca da terra prometida. Campos de
flores lilases com neve em fundo. Insurreições proibidas. Bons corações em géneses
corrompidos. Diabólicos alheamentos. Compreensão incompreensível. Reflexos
distorcidos ou verídicos em poças de água. Natureza manchada. Perda da
liberdade. Entrega ao vento. Complexo
diagrama que envolve e convoca o despojamento do meio, a sua fragância e nitidez,
em relação e dilema com a outra natureza, a do homem, e do seu percurso
civilizacional. Assim o espanto de como tão absoluto espaço que em cada ângulo
parece ressoar a imagem de Deus poder abarcar tamanhos desesperos. Poder
conceber lágrimas e suicídios. Daí essas breves composições de que já falei. Fugazes.
Estampas sacras. Que não podem durar. E a câmara do paciente e subtil Parrish
vai perguntando porquê. Por que não posso fazer o filme todo nesse tom? Se
nascesse noutra era podia? Terrível para nós, decisivo para esta arte do tempo.
Tempo, escuro. Datado do ano seguinte a Saddle,
“The Wonderful Country”, então de 1959, ano de “Rio Bravo, é um projecto
pessoal do seu protagonista, Robert Mitchum igual a ele mesmo. Nada de
egocentrismos ou destaques. Tão silencioso e apagado como sempre. Mas logo
vamos sentir outro tipo de vento e de luz diversa do Western irmão bastardo
deste. Luz glauca, enquadramentos marados, grandes-planos saturados, esfumados,
parecendo arrancados à força. A ironia do título. Num barroquismo ou num
doentio gótico que não vai estar só pelas formas mas também pelos
protagonistas, as suas relações e o modo de se ligar tudo.
Como os irmãos de Saddle, Mitchum não tem casa.
E pior do que isso, não parece ter sequer pátria. Apátrida fronteiriço num
mundo ali todo desmoronante. Entre o México e os Estados Unidos anda ele a
vaguear, a cruzar rio e fronteira constantemente e sem assentar, Americano
Mexicano e vice-versa sem ordem, não querendo pactos definitivos e castradores.
Desdenha a higiene e o progresso dos “gringos” e não hesita em sacudir as
largas abas dos largos chapéus rivais. Não querendo trucidar índios nem
querendo, talvez muito menos, amar. Pedro Armendáriz, um dos chefes de um dos
lados, vai resumir dolorosamente o dilema: “…pertences a lado nenhum”. E depois
disso ele cavalga o que parecem dias e noites ou uma eternidade, para um ermo
que o olha e acolhe como seu poiso natural e prometido.
Estranho ser sem muito passado apregoado a não
ser a história do Pai que pode mesmo assim não ser decisiva; estátua sem procedência
nem horizonte a deambular ao sabor da maré, do calor ou do encantamento
momentâneo. Assassino, matador, pistoleiro – tudo nomes para quem parece nunca
ter parado muito para reflecções profundas. Mitchum, a impassível passividade. E
a felicidade de alguma coisa nisso. E vai mesmo acertando pólvora, afastando o
lar, afastando o coração. Se quando aquela Helen da Julie London conhecida lhe
diz que ele só é Homem de pistola em punho, como o Cassavetes anterior, e ele a
renega, a lança para longe com as balas e a beija; se depois de morrer o marido,
esse marido estoico que Mitchum ousa aclarar que ela admira mas não ama, ele a vai
procurar para dizer que o que conta são os sentimentos e não os actos,
trocando-lhe ela o essencial da afirmação, é porque tanta é a misturada que continua
sem saber o que fazer, mas, essencial “mas” que não passa por redenção, ganha a
veracidade daquele olhar.
Actos e sentimentos, humanismo e estética. “The
Wonderful Country” é assim, uma bomba relógio sem rei nem roque, pois só o
podia ser depois da constatação e da procura encetada em Saddle. Desejada a
depuração e estourando na cara a discordância, estamos no meio do turbilhão, um
filme e uma visão de múltiplos tons, focos, velocidades. Já nem o CinemaScope
se justifica. Western Spaghetti antes de o terem celebrado e banalizado, como
por exemplo um Joseph H. Lewis já tinha conseguido, onde tudo cabe materialmente
e simbolicamente – mestiçagem, “Texas Rangers” e vândalos, explosão berrante e aleatória
das cores, fogo-de-artifício fundido a caveiras da morte mexicana, rabos ao leu
que chocam puritanas, objectos a entrar pela lente dentro, volumes ou linhas sem
lógica que trilham a legibilidade da composição, toque documental ultra
estilizado, luzes e suas ambiências bruxuleantes, músicas destoantes,
antagónicas e contraditórias. Dilatações efémeras. Um caminhar à Fonda ou à
Eastwood. Etc.
O último plano, movimento de câmara sem nome, em
que Mitchum se despe da convenção, faz o luto pelo fidelíssimo Lágrimas que é o
nome do seu cavalo prodígio que abertamente adorou, e vai em direcção ao Tudo
ou a Nada, é uma boa imagem da almejada totalidade. “The Wonderful Country”
pode ser sobre Tudo ou um delírio sem causa. Nostalgia sulista à Twain, um belo
Mississippi, berro das entranhas ao limbo como Peckinpah mais tarde. Depois do
sagrado, da força telúrica e do incêndio das paixões, ficam os estilhaços
poéticos. Lirismo cadavérico. Desordenados instintos.
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