A panorâmica é descrição. O travelling, acção. Nos
grandes casos, sinto isso. Como também somos levados à desorientação decisiva
quando tudo se entrelaça. Em “Professione: repórter”, para mim o capital filme
de Antonioni, aquele em que a falta de resolução é mais grave, são estas duas
figuras de estilo ou movimentos perscrutadores, a sua função e manejo, que tudo
colocarão em causa. Colocar em causa e desorientação – toda a arte de MA. Primeiro
plano, dia, deserto. Num filme que começa em clarão cegante até ao cair da
noite sem alívio. O protagonista, Jack Nicholson, encontra-se ou desencontra-se
na profundidade de campo, sai do seu jipe, interpela alguém, mas de repente a
câmara vira-se para a esquerda, enquadrando o que não parece ter causa, dois
miúdos a chegarem, voltando a ele muito aproximado mediante um corte.
Pareceu-me uma panorâmica para a esquerda, um pouco tremelicante, um pouco
tosca e também ela errante. Suspense ou interesse pelo nada que ficaria
inevitavelmente fora de campo numa planificação clássica? Pouco depois, já
corridos os créditos, no primeiro ponto supostamente dramático, o enquadramento
fica no protagonista e no seu ajudante que recuam medrosamente, antes de o nosso
olhar ser conduzido para o contra-campo da ameaça. Seguidamente a esta inversão
das expectativas, um dos primeiros momentos célebres, quando a viatura se
enterra num monte de areia. Nicholson de braços abertos numa revolta inconsequente,
sem receptor, na primeira rendição, e a câmara a largá-lo para escutar, sentir
e dimensionar o temível organismo secante que ali nem sensual é. Pelo meio
disto, onze minutos, algumas antecipações da acção ou da possível linha
narrativa; como muita divagação para o que está ao lado.
Se será da impossibilidade da fuga a si próprio
que tudo isto nos fala e mostra, a cena da troca de identidade e a sua
construção é o momento determinante, aquele que inevitavelmente rima com o
célebre zoom final. O olhar revelador vai indagar mais uma vez o deserto,
descrevendo-o ou escondendo-o, para se envolver em metafisicas e fantasmagorias
que jamais se empolam ou se evidenciam. Apenas decorrem no seu presente e
normalidade. Naquele espaço sufocante, onde microscopicamente a lente se cola a
fios, paredes, bichinhos, transpiração. No acto da falsificação perpetrada por
Nicholson, o som gravado na fita do jornalista e o corpo do duplo encontrado
morto vão invadir a auscultação da posta em cena. O plano sequência conterá lá
dentro duplos dos vivos e duplos dos mortos, imagens e sons impossíveis e a sua
evidência, tudo fundido na circulação em vórtice que tem o nome de perdição.
Designação técnica e existencial. Nicholson prefere pessoas a paisagens, o
outro parece preferir o oposto. Sem flashbacks, saímos do delírio tão
realisticamente como entrámos. Sem sobressaltos. Ficámos a saber de onde vem o
of sonoro, ficámos?, e percebemos que dos dois só um ainda respira, mas,
penso que é legitimo questionar, em que realidade vamos permanecer?
A partir daí, deslocações e mais deslocações,
relações físicas e ilusórias, muito desfoque e mais asas desfraldadas ao vento.
Uma câmara que parece flutuar ao sabor do acaso, na busca da matéria primeira
de que se fez o reconhecido Cinema, alquimia romanesca ou sinais básicas. Dança
onde a aplanação das cores e dos volumes, a retenção dos horizontes e o
afunilamento cósmico anularão qualquer pulsão ou pulsação redentora. Fluxos
vitais ausentes da nudez e do sexo. Os tempos continuam-se a sobrepor e a
atropelar, sem ordem lógica, do terrorismo para o niilismo, das armas para os
documentários, do ecrã para fora dele, para a aniquilação. Com uma cena
enigmática, aquela em que o ponto de vista, antes de se fixar numa conversa
entre o par, tenta seguir de um interior para um exterior as velocidades e cursos
das viaturas que passam. Rendendo-se quase imediatamente mas sem justificações.
Por isso a cena final parece-me menos um
irrealizável prodígio tecnológico, e se o é absolutamente jamais cai na
gratuitidade, e mais uma culminação ou embate lógico. Lentíssima sucessão de
reenquadramentos, cisões, ajustes, fusões, alheamentos e fixações, buscas e libertações,
onde tudo desemboca e vale por si mesmo, num quadro que começa por cortar
Nicholson a meio e termina num velório em composto renascentista. Toda a
gramática, dentros e foras, escuridões e claridades, o tempo mesurável e o
tempo que se esfuma, concreto e sagrado, universo. Depois, a noite e o eclipse.
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