quinta-feira, 24 de outubro de 2013



Volto a Robert Eroica Dupea e ao meu filme desses tempos. Humildes, desgostosos, lastimosos, faiscantes, sem nada a perderem, sem seguro de vida, sem o tapete da salvação. E conservando puramente uma integridade e qualidades que se destacam no meio do supérfluo e das aparências intemporais que todo o modernismo ampliaria até à saturação. Portanto, volto ao meu filme destes tempos. “Five Easy Pieces” carrega a justeza dos valores primitivos, indestrutíveis, míticos, a par do choro pelo inexplicável degradamento que vai desbravando. Isto, nas formas e no que trata. No cinema e na carne e osso e emoção que o molda. Porque se estamos desde início ao lado de um desistente, alguém que parece ter assumido a derrota pessoal, lá longe de todas as promessas de consagração, todo o contra-campo disso, os motivos e agressões intoleráveis, essas elipses desmedidas a que só alguns chegam, nunca terão resposta, estarão na expressão e na acção de Dupea, na sua movimentação e no movimento fílmico. O direito a não ficar, a ir com o vento, não vencer. Não por niilismo burguês ou inocência radical, mas por amor. Um outro tipo de amor, muito superior ao banalizado. Amor e violência, a sua inseparável. Dupea afastou-se da música, como alguns meus próximos se tentam afastar do cinema. Afastou-se da casa e mantem ainda ou eternamente uma guerra interior. Ambas as coisas parecem não lhe fazer falta, esquecidas ou reduzidas, mortas à força, ou então disfarça muito bem. Mas não cede, não vulgariza, e a cobardia não faz mossa ali. Há por aí alguns, nos passeios e nos cafés que frequento todos os dias, no canto mais escondido da sala de cinema mais recatada ou no antro ainda aberto das quatro da madrugada, em gabinetes atulhados de papeis ou em honrosos cargos administrativos, em todo o lado e em lado nenhum, indivíduos duros que supostamente se apagaram para fruírem o que tantos famosos nunca cheirarão – a vida descarnada. Uma liberdade em que a sombra desses seres é proporcional à intensidade do ardor no estômago e das surpresas a cada instante. Um descontrole ou mesmo uma rotina que franqueia toda uma gama de sentimentos julgados impossíveis. Da mesma maneira, falando em casos ou causalidades cinematográficas próximas, não considero um Manuel Mozos ou um José Nascimento realizadores falhados. Como considero o padeiro da minha rua o mais prendado dos artistas. O que muitos tentaram e não conseguiram em incontáveis filmes, videoclipes ou híbridos, Mozos, Nascimentos, o puto ignorado do curso de cinema que não lambe botas, aquele que bebeu um copo a mais e falhou, conseguem a cada frame, a cada entrevista não dada, a cada cocktail falhado - a candura, uma aurora, a impressão de verdade que jamais se compra ou suborna. Do looser ao vencedor a ambiguidade da importância. Do fundamental. “Five Easy Pieces” é a estrada, o percurso e o foco para o desengano. Tão, tão nítido. Ficam dois dos exemplos mais doridos de que me lembro.

A câmara fixa-se no rosto dele, escuta-se os preparativos dos dedos e das vacilantes pálpebras, a música entra. Um lamento de Chopin dá o mote e o ritmo a uma divagação nostálgica e funerária. Sai dali com um último olhar e desce até à tensão e corografia dos dedos com as teclas. Detém-se um bocadinho, não muito, e avança para uma descrição do espaço que é simultaneamente a história do pianista e da sua tragédia ou salvação. A pauta, um repousado violino, outras mãos de uma mulher que nesse momento ele já possui, obviamente flores para uma coroa, um violino mais e o cortinado acastanhado em fundo para entrarmos nas famílias e genealogias. A sua, os seus, amados, perdidos, desprezados, desconhecidos, a infância, o luto. E a outra ainda, ali tão central como a sua, que o acompanhou igualmente do berço e lhe impôs um peso que ele não quis. Beethoven, Bach, o Chopin do negro, alguns mais. Texturas e rasuras a carvão, existências concluídas, suspensas, mascaradas, outras que ainda pulsam. Mas todos na mesma parede. E da aparente lisura voltámos para os relevos e já lágrimas da mesma mulher que vimos segundos atrás. Nesse hiato insignificante por entre eternidades, ela já é outra. Corte para ele, que parece descarregar as toneladas que ainda o faziam duvidar, agora, já mesmo nada o deterá. Para o bem e para o mal, princípio e fim. Aceitação e coragem, nascentes dessa circulação aglutinadora e espectral que assim materialmente e no espaço vazio da morte o cinema conseguiu urdir. Muito triste, muito contundente.

Mais um bocadinho para a frente, depois das fúrias e orgasmos gelados e antes da ponderação derradeira. Ele largará tudo de novo, fugirá, esconder-se-á, para arriscar tudo definitivamente ou na busca das felicidades iniciáticas antes das tempestades, não restam dúvidas. Ou então foi num instinto com causa. Sem prestar contas. É nessa gasolineira igualmente cálida e fria como o desamparo que ele entrega a sua identidade para ficar só consigo. Ao passar a carteira dos trocos à também lindíssima criatura composta por Karen Black, aposto que também passa o bilhete que o denuncia, a sua redutora construção que é mais a construção de outros. Um morto por um vivo, a ver vamos e jamais saberemos. Dupea não pestaneja, e vai à sorte que é a vida. No banco da frente de um hercúleo camião, ao lado do desconhecido condutor e desafiando o desconhecido destino, não haverá frio que o incomode, gelo que o paralise. Outro tipo de calor imaterial e invisível começa por ali a fervilhar. O resto é só dele e o filme acaba. Em toda a simplicidade, sem gritos nem retórica, todo o cinema que depois do clássico importa. Assim mesmo, perfeitamente clássico e intemporal. Com Jack Nicholson a preparar a rima, universal e não somente europeia, com o Antonioni de “The Passenger”. Rima ou chegada, conclusão, crepúsculo, embate, humana contradição. Nada mais certo no ar da errância.

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