Palavra de honra. Palavra de honra. Honra.
Impossível a frase e o seu peso não ficar a martelar muito depois de “The
Burglar” ter acabado. Que é não só um filme traçado e esculpido em moldes
únicos por Paul Wendkos, mas também por outro dos muitos discretos e comovidos
que respiraram e calcaram Filadélfia, os seus passeios imundos, as suas docas
pesadas e o seu ar e certa luz estranhamente agregadora, David Goodis. Assim
sendo, microcosmo de falhados, desistentes, fatuamente feridos, calados,
avisados, e sempre a descer. Mas também, como podemos constatar com o Dan
Duryea daqui ou o Balboa de “Rocky”, alguns excessivos fiéis que por isso mesmo
e não pelo oposto se vão queimar.
Num filme de assalto que só o é pela sinopse ou
pelo olhar simplista, vamo-nos deparar com um grupo e o seu grande estratagema.
Milimetricamente planeado e executado mais ou menos sofregamente, mas
executado. A partir daí, dilemas morais e dilemas psicológicos vão rebentar as
costuras e conduzir cada um deles ao abismo. E, por causa do sofregamente,
dilemas práticos e caçadas bárbaras. Se o patrão feito por Duryea se vai auto
trucidando e asfixiando, mais por causa do elemento feminino que faz parte do
grupo do que pela pressão pós golpe, menina que ele um dia tomou em mãos por
palavra de honra e depois por amor, é porque descobre de uma vez por todas que
tal conceito não joga com o seu modo de vida. Esse que também ele diz que é a
única coisa que sabe fazer, que o domina e ajoelha completamente.
Roça-se com mulheres corrompidas que convencem como freiras;
atira essa Jayne Mansfield criança para a boca do lobo; vira-se contra cada um
dos companheiros. Primeira parte do filme na Philly também conhecida por The
City of Brotherly Love: sinfonia suicidária com instrumentos e harmonias do
inferno – a casa perto da linha de comboio que pontua, ordena e comenta a
desgraça. Como ponto máximo surge a cena de estrupamento derivada da urgência
sexual que tais formas provocam naquele irrespirável seio. Balanço da carne e
do gemido montado em confronto com as paralelas violadas pela pujança da locomotiva
e subsequentes orgasmos – culminância lógica. Segunda parte: saída do terreno
matricial em direcção a outro tipo de resvalamento. Queda em lugares
geométricos da prova da sorte, desbaratamentos e punhaladas capitulares. E
outro tipo de assombração: feiras de maquinismos demoníacos e assoladores, paradas
de monstros de cera e mortos pálidos amarrados há muito. E a não distinção dessas
prespectivas calcinadas, tortas e corrompidas em relação aos humanos em
recreio. A joia da revelação, essa, não tem qualquer valor, é oferecida de mão beijada a quem por ela tudo trai, como prova irrefutável de um grito de humanidade e ternura ainda possível.
Vão-se descobrir as coisas importantes nos
sítios e nas horas más e nada a fazer. Um lamento que como todas a escrita de
Goodis é na mesma medida severo, sem contemplações e comovido até ao osso. Amor
e ódio com a mesma hipótese ciclópica de irrupção. Sem falsos reconfortos. Notável
a maneira como Wendkos apanha e encena de forma limpa a mais crispada das
danças. Como me disse um amigo meu fã do filme: tudo o que está dentro, se
movimenta e vibra é intrincadíssimo; as soluções cinematográficas são simples,
claras, elementares. Toda a modernidade que importa. Num filme também “on location”,
pelas asperezas originais e vivas que tanto magoam a luz. Num palco ou numa estufa
onde laivos de claridade mínima arrancadas a trevas proporcionam o testemunho,
a possibilidade de impressão num mundo onde a chama está prestes a ser
desligada. Sujidade e limpidez. Uma comunhão perfeita de dois grandes viciados
na existência e na sobrevivência, discorrendo e escondendo segredos e dádivas, no
mais imperfeito e no mais improvável. E também com a raça e o lado por eles
escolhido que tanto medo mete a quem se tenta aproximar.
A diferença e a perseverança, é este o credo.
Quando os praticantes originais disto pensam diversamente, mesmo que só por um
momento de dúvida, até as paredes e chão tremem e contra eles se revoltam. Recuo:
a cortina sobe e temos vindo de um ecrã de cinema, só momentos depois o vamos
saber, actualidades orientais, reportagem social, matulonas saltitantes e mais
fancaria, tudo no embrulho universal. Pouco depois passaremos para o interior
televisivo e para toda a falsificação e espectros vindouros. No meio de tanto
barulho e eco, tanta fome argentária, vamos ficando com o centro e interesse da
demanda: o fascinante, perigoso e lacrimoso Dan Duryea + a ex-coelhinha da
Playboy que é Jayne Mansfield, tão pura e despida no essencial como esse santo ladrão
que jurou ao mestre que era o pai dela o acolhimento eterno. E o produto da
união e da sua circunstância: a solidão. Num filme de tantos quadros picados
tristíssimos, esmagantes e protectores, vazios, mas, em derradeira instância,
belíssimos. Porque amparados por uma força verídica extra-ordinária. O último
de todos, oposto às rancorosas visões subjectivas, é isso: guia para a morada
final e o olhar de cima. Algo superior que responde à miséria.
“The trouble with people is they don't understand people.”
David Goodis
David Goodis
Sem comentários:
Enviar um comentário