quinta-feira, 27 de dezembro de 2018



Lawman, Michael Winner, 1971


Michael Winner paira nos dicionários de cinema e nas bocas de muitos cinéfilos sérios como um sinónimo acabado de fancaria, foleiragem, violência gratuita. Mas bastava ter captado o rosto sereno de quem tudo viu unido aos modos profissionais de Charles Bronson nesse “The Mechanic” que a televisão portuguesa passava na sessão da meia-noite ainda em meados dos anos noventa para poder ser toda outra coisa. Toda outra consciência e outro tempo que estão sublimados e putrificados em “Lawman” de 1971, onde a justiça parecia um eco e uma quimera longínqua pronta a despedaçar cada um dos seus apóstolos. Aí vamos encontrar uma cidade, um sistema, um universo que tal como o Donald Trump de hoje entrega armas a crianças, a professores, a cobardes, a dementes, para cada um por si. Numa velha história que começa com mortes gratuitas, inconscientes, impunes, e que acaba com a massa comunitárias de bacocos e de surdos a voltar à rotina para tudo esquecer e recomeçar num breve próximo episódio.
 
Tempo onde os cowboys se mistificam a si mesmos justificando a brincadeira com as armas que deveriam somente servir para matarem cobras e ajudar no seu trabalho. Coboiadas sem rei, nem lei, nem roque, prontas a tirar o pão da mesa a uma família ou a terminar um brilho nos olhos e todas as promessas just for fun. “Lawman” tem o seu tempo presente no apocalipse, que desde a bíblia representa o nosso alcance. Onde as flores nascem apenas passados os limites da terra queimada da polis suprema e mesmo assim brotando de cactos. Paisagem paramentada por abutres, bicharia negra e coiotes que comem as tripas dos belos cavalos que certo dia foram os confidentes e parceiros dos homens bons. «Coração que tens e sofre / longas ausências mortais. / Viúvas de vivos mortos / que ninguém consolará», como na estrofe final da Canção da Emigração de Rosalia de Castro para a voz lacrimante de Adriano Correia de Oliveira – emigração suprema.

Em “Lawman” vamos encontrar três homens diferentes, que se conhecem e reconhecem, vergados pela cruz do inescrutável e das mortes a esmo, pela cruz do novo, da falta de sentido e de ordem, que se respeitam mutuamente. Burt Lancaster, ou Madd, Lincolneano até morrer de pé, é a estrela da lei, de brilho decadente, rápido como Jesse James, tudo menos herói, que aguentou o suplício que o mito dos mitos rejeitou suicidário, velho, no boca a boca do Correio da Manhã da época, sem piedade, widowmaker, todo esfarrapado, mas mesmo assim o único que não se vende e quer impor a justiça, tendo trocado por essa guitarra o amor, o pedaço de terra, os filhos. Lee J. Cobb, o fabuloso Lee J. Cobb, Bronson, o big boss, também supremamente cansado, sempre a olhar para o chão, para as lápides e para um horizonte que para sempre conservará o rasto do que foi, cheio de filhos reais e ficcionados, cheio de ver mortos, remoído de remorsos pelas mortes da lotaria e pelo massacre dos índios, que considera boa gente, não quer mais duelos mas mesmo assim não trava o sangue na guelra dos novos. Robert Ryan, Ryan, o mais solitário de entre os mil solitários do cinema, olhos plangentes, xerife boneco, marioneta, empty uniform, que um dia foi como Burt mas que não teve as forças dele para lutar contra a maré, aproveitando sem pedir a coragem de Burt ainda intacta mil anos depois para se ressuscitar. E, no centro do vértice e do vórtice, Sheree North, a mulher, única entidade capaz de meter por breves momentos em elipse e fora de eixos a responsabilidade e vigilância dos grandes sobre os néscios.

O duelo final mata mais filhos, pais, testemunhas, credos, e das costas viradas e caídas com toneladas de peso do homem das leis a câmara vai andar às aranhas até focar às marionetas urdidas pelo acaso, pelo medo e pela fascinação da violência, depois de mais um zoom à cara da Mulher desfeita, pondo em evidência a terra seca e a infertilidade vindouras. Michael Winner usou e abusou da distância focal comida e carcomida velozmente, do espaço e do tempo comprimidos, esmagados e distorcidos, da fixidez demasiado próxima para objectividades lúcidas, de um lirismo gangrenado fora do catálogo do Belo, das metáforas demasiado materiais e descarnadas para instrumentalização política. Dizendo-nos das fronteiras de hoje, das fronteiras vitais, precedentes, da má consciência, dos holocaustos em loop. E mostrando-nos no tal zoom derradeiro a última saída antes do apagão. “Lawman” é um dos elos perdidos, ou um pistão quebrado, entre John Ford, Sam Peckinpah e Michael Cimino.
 
 
Chato's Land, Michael Winner, 1972
 
As razões sobre as quais Winner resolveu voltar ao western tão pouco depois de “Lawman” podem ser várias, estranhas e indecifráveis, para lá das oficiais, visto que puxa o tempo e o terreno para trás, dir-se-ia à cata da génese de tal selvajaria e impunidade em que os anos sessenta e setenta do século passados estavam a ser prósperos, pegando em temas tão antigos como a ancestralidade das práticas e a justiça comum e tão novos como a guerra que os Estados Unidos estavam a travar no Vietname por alturas de “Chato's Land”. Chato, o mestiço silencioso de Bronson é apenas uma máquina de reacção que defende o seu e que conhece o terreno que pisa como as palmas das suas mãos, porque são as suas posses e o seu amor, solo e espírito sagrados que o adversário só começará a compreender quando começar a enlouquecer. Chato é um Vietnamita e um simples patriarca bíblico. Como no “Anatahan” de Josef von Sternberg os homens aprenderão através daquele que pensam ser o seu inimigo que o máximo inimigo e o máximo horror estão dentro de cada um deles.
 
Pois o que despoletou a guerra foi a cena da vergonha em que um da nossa raça tenta expulsar um ser humano de um local público por ele ser nativo daquela terra, e numa cena feia como há poucas no cinema, o agitador olha para a câmara e para cada um que vê o filme e pergunta: estão do lado deste filho da mãe ou do meu? A partir desse momento cabem todos os tempos e mundos, das tensões entre brancos e negros na Brooklyn de Spike Lee até ao imemorial USA x México, antecipando-se mais uma vez Trump na personagem que trata abaixo de cão o Mexicano que ajuda o grupo liderado por Jack Palance a dar caça a Chato. E esse Capt. Quincey Whitmore de Palance é uma das personagens mais complexas e básicas dessa época, filosofando sobre a derrota sulista de uma forma simplista e tecendo sobre os índios as mais elaboradas filosofias, desde as suas tácticas de guerra até à verdade da sua palavra - desprezando o que viveu e estudando o que não entende, para mesmo depois de tanto ter visto preferir a loucura.
 
O ritual Faulknariano que Quincey mete em marcha ao saber da sua missão, mecânico e coloquial, citando “Absalom, Absalom!” na cena da arca de todo o legado e de todo o sangue, essa alegria a um tempo e no mesmo tempo a consciência da tragédia, é a fundação dessa nação, a justiça férrea, a violência férrea, e um sonho algures, todos em em combate, num pé de guerra. O resto do filme é uma milimétrica resolução dessa equação, já com os abutres a devorar a carne dos mortos para que não sobre rasto mas apenas lenda, já com as violações à mulher do outro. Michael Winner decidiu rebobinar mais um pouco o pergaminho, não encontrou solução, e o raio de esperança jaz fundo, algures no términos (?) da caminhada abraâmica que Chato e a sua família irá encetar.
 
(No caso de “Chato's Land” escrevo sobre a versão uncut, a chamada montagem europeia, muito menos soft do que a lançada na América; filmado na Andaluzia, sul de Espanha, que passa pelo estado do Novo México; tal como, incrivelmente, “Lawman” foi filmado no México.)
 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018


Urban Cowboy, James Bridges, 1980

O John Travolta de “Urban Cowboy” não sonha ser cowboy como o miúdo de “The Culpepper Cattle Co.”, ele é cowboy. A cidade a que ele chega vindo da sua vilória é a gigantesca Houston, mas só a vamos ver de longe e no alto. Ficaremos nós e eles trancados em rulotes e no bar da noite de todas as possibilidades.  Quem sonha aqui com a velha anomalia ambulante a passear trajado de ganga e com o típico chapéu de abas nas encruzilhadas do betão dos arranha-céus são as mulheres. É esta fascinação que lança o drama do casal Bud / Sissy que obviamente se ama mas que troca de par devido às mesmas razões que qualquer outro casal possa ter no lado mais afastado e estranho do mundo, e isto é tudo o que há a dizer das voltas e reviravoltas da narrativa.

Fora o mito, que despoleta e laça o desejo, o ciúme, a eterna costela infantil, o crime. E ainda o irracional e animalesco inexplicável que nos acordará algures, ainda o mito. Na cena mais bela do filme, porque a mais trágica, e a mais sincera, o old fellow seu tio diz ao vaquero sem sombra para dúvidas nem necessidade de mascarilha, que a única saída para os da sua laia, cepa dura mas cravados pelos sonhos como o gado com o fogo, os sonhos de domar e dominar os animais selvagens como os avôs Texanos, animais agora máquinas aberrantes sem pradarias à vista, sonhos de bebés e de velhos, é elidir o raio do orgulho, um dos pecados mortais.

E lá mais ainda dos altos, muito acima do concreto e do brilho do vidro de aço, o céu ameaçador e revolto que estava a meter tudo em polvorosa nas cenas anteriores, perfura sem dó nem piedade quem ousou abrir a boca de verdade no momento grave. Foram talvez anjos a escrever algumas coisas direitas e a apontar caminhos por linhas e vias tortas, e a sua música não será a sublime das harpas mas obviamente a country que embala aquelas dinastias cruzadas e aquele incomensurável palanque, dos Eagles a The Charlie Daniels Band, o embalo desse mitológico berço que confunde e difere o realismo. É toda a genuína Hollywood naquelas danças, nessa sinfonia de vozes do deserto, de whisky e de violinos de cordas estraçalhadas, sociologias e etnografias em rotação, de rude, prosaico e destemido movimento que fundou uma arte infalível e de renovada emoção a cada salto para o comum, para a vida e poética de cada dia – muita musiquinha, muita luz e muita acção, mas o poder e a lógica são irmãos do silêncio de Robert Bresson ou da tensão de Yasugiro Ozu. Fieis a D. W. Griffith e a Howard Hawks, pode-se reinventar tudo:

- o primeiro plano de despedida na casa: a mesa familiar, a panorâmica para baixo nas escadas,  o filho a deixar o cosmos quente do quarto e a largada para o caos lá fora.


- no acidente de Bud, montado em paralelo com a traição sem sexo de Sissy, ele é um Cristo invertido na cruz – regresso ao eterno James Dean sacrificial, passado Jesse James – e ela a utopia da igualdade, escondida com o selvagem e a máquina, profecia milenar.

-  na primeira das traições sexuais sem mácula, travessura de recreio, o cross dissolve entre o verme da garrafa e o sexo por si de Bud.

O derradeiro Plot Point antes do Clímax típico e da Resolução feliz ou é uma facilidade tonta de argumentista ou as tripas de fora de uma menina rica iludida com as histórias de quadradinhos que usou todo o seu arsenal bélico na causa: cabe a cada espectador escolher o que viu e no que quer acreditar, se espectáculo barato, se Shakespeare entre bostas de cavalos e poços de petróleo. É isto a sinceridade de um cinema sempre a consolidar o laconismo, a prática, o andar para a frente pois para trás mija a burra, a teia puramente humana, seja em mil nove e oitenta ou com Bem Affleck à câmara.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018



The Culpepper Cattle Co., Dick Richards, 1972


Jerry Bruckheimer, glorificado e massacrado ao longo das décadas pelos grandes blockbusters de Michael Bay ou da longa saga “Pirates of the Caribbean” que ajudou a gestar, estreou-se na produção em 1972, numa associação ao grande realizador de segunda unidade do cinema clássico, Paul Helmick, homem da confiança absoluta de Howard Hawks e que filmou planos e sequências de “Rio Bravo” ou de “Hatari!”, num pequeno e complexo western que para muitos funcionaria somente como isco para aproveitar a fama do jovem Gary Grimes, fresco do triunfo conseguido no “Summer of '42” do ano anterior.

Só que Dick Richards, realizador de punho firme que três anos depois seria tão duro como Raymond Chandler e Robert Mitchum nessa adaptação carnosa de “Farewell, My Lovely”, logo de início decidiu tratar de mais um bloco da odisseia da expansão americana como deve ser, vendo com dignidade e sem desviar o olhar as gentes que estiveram nesse fluxo, num genérico onde a frontalidade e ternura do grande fotógrafo e testemunha Walker Evans é posta em prática sem devaneios, estabelecendo imediatamente um ponto de vista moral e prático – logo de seguida vão desfilar pelos planos-sequência os modos de trabalho e de artesania dos vaqueiros, desde o desbaste de uma cana verde, passando pelo marcar a fogo a carne viva dos animais, até ao modo como se prepara a comida para a trupe esfomeada, entre a mais variada alvenaria; assim como serão picados grandes-planos de uma subida para o cavalo, o laçar das cordas, a disposição correcta da sela, o controle do corno do cepilho, etc., para mais uma contribuição preciosa no incomensurável atlas da nação Hollywoodiana.

“The Culpepper Cattle Co.” segue Grimes a par e passo como um  Huckleberry Finn fascinado pela vida de cowboy e logo pelas armas, fascinado pelo mito primordial; mito diferido, pois já num tempo posterior ao de “Blood Meridian” de Cormac McCarthy, no qual se declarava sobre um menino que não sabia ler nem escrever que nele medrava já o gosto pela violência tresloucada. Neste menino a psique já foi invadida por motores, pré-fabricado, matérias gasosas, químicas e orgânicas incompreendidas, para um sangue e uma combustão adulteradas, injectando no ritmo fílmico um langor anestesiante que faz com que os corpos caiam à maneira de Sam Peckimpah, numa câmara lenta sem estilo e com o sangue e o rasgar da pele perto da objectiva. Nova idade aparentemente escondida do centro dos planos que vai assombrando tudo pela calada da noite. Passado o tempo das grandes crenças e dos grandes embustes, aguenta-se somente e em bolandas a lenda em segundo grau e a anedota inflamante, nesses mitómanos de trazer por casa junto à lareira sob as estrelas do deserto que elaboram sobre bordéis e sobre o ordinário onde outrora se elaborava sobre grandes conquistas e heróis.

Tempo estranho e indefinido, a meio caminho, nem músculos nem reza, tempo de passagem, o suor a debater-se com o cerebral, em paisagens desorientadas nessa quebra dos raccords de realização clássicos que iludem os pontos cardeais, a simples nascença de um novo mundo no oriente e o cair da treva no poente, paisagem na qual a vinheta que narra o tiro e a morte que transformou a criança em adulto, o ajudante de cozinheiro em pistoleiro oficial, não procede. Nesta odisseia oblíqua, ao deus-dará, sem o Oeste no rumo da ida ou da volta certa, os ladrões e assassinos notórios preferem conduzir vacas temporariamente (como os trabalhos temporários e os precários de hoje) a terem grandes aventuras e transgressões permanentes, mas num dos momentos mais insólitos da história do western um triste vaqueiro profissional volta as costas ao grupo e desiste da missão devido a uma injustiça de tratamento no seio deles – forças motoras e espirituais condenadas à pura entropia. No tomo final da trilogia fronteiriça que é “Cities of the Plain”, comungando já da evolução sem freio depois do árido “Blood Meridian”, Mccarthy como que fala sobre este filme: «Sim. O tipo morreu ali de pé. O que eu mais recordo foi a rapidez com que ele caiu. Que nem um peso morto. Os filmes também nunca mostram essa parte como deve ser.» Em “The Culpepper Cattle Co.” a própria força da gravidade é um conceito vacilante, e os corpos, como as almas, dos actores dessa tragédia vão-se esvaziando, mesmo quando são puros como Grimes ou como o desertor.

Ritmo lânguido, olhar exangue, solo ressequido, gestação suspensa, o encontro entre o mais americano dos géneros e a sci-fi terrena. Todas as sequências finais são um tratado e o produto do choque dessas matérias desarranjadas, e são a profecia e o galopar até às fake news contemporâneas, fascismos de várias latitudes, modas castradoras, reaccionárias, reversão do certo e do justo que um dia foi a palavra dos homens e a palavra de deus: o miúdo que julgou encontrar o Paraíso Perdido nos colonos religiosos que se plantaram nas terras dos soberbos e dos ditadores, convencendo os seus parceiros a lutarem por uma verdade aparentemente cristalina, não consegue puxar das armas em tamanha amostra da delirante satisfação pela violência tresloucada, ficando mudo e estupefacto, percebendo que a soma de tudo aquilo foi o nada, o nada. Os seus companheiros morreram numa satisfação que se resumiu a isso, gratuita, sem redenção, e os religiosos da salvação que cantaram a canção que ele guardou da infância não querem saber desses mortos. Nem tempo do apocalipse, nem tempo transcendental. E o miúdo vai-se embora, parte, vira as costas – a solidão moderna. Sem resquício de um acreditar.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Pina Pellicer

ou a lídima aura dos anjos na terra.

30 anos de vida permitida pelos Deuses e pelos homens.

8 filmes entre o México natal, Marlon Brando, a sério O Fugitivo e The Alfred Hitchcock Hour.

Esteve apenas de visita. Flamejante. Su legado es una leyenda triste y memorable...

Deixou escrito de forma inacabada no seu diário:«Seres como yo deberían tener la libertad de morir en el momento en que la tristeza empezara a invadirlos porque, los seres como yo, somos seres débiles, incapaces de decirle no a la tristeza, no a la vida, nos dejamos llevar, nos dejamos morir por la tristeza.»

«Depois de expulsar o homem, colocou a leste do jardim do Éden querubins e uma espada flamejante que se movia, guardando o caminho para a árvore da vida.»

Gênesis 3:24




sexta-feira, 7 de dezembro de 2018



Hondo, John Farrow, 1953


Produzido pela Wayne-Fellows Productions de John Wayne e Robert Fellows, “Hondo” é um filme de família e, como está implícito no nome da produtora, de amigos. John Farrow não é um indiferente tarefeiro e a sua fusão a Salvador Dalí no surrealista “The Big Clock” é mais um daqueles casos que tiram todo o tapete a quem vem com ideias escorregadias sobre a velha Hollywood. Na abertura, típica de qualquer western, vemos o forasteiro sozinho, a caminhar de movimentos e semblante ameaçadores, com a arma em punho, mas ao invés do cavalo apenas um solitário e auto-suficiente cão o acompanha. Na casa que lhe calhou em sorte encontrar vive uma mulher que esperará eternamente pelo marido que a abandonou, e o seu filho que faz tudo para proteger quem ama mas não se importa com a vida própria. O paraíso perdido que parece ter encontrado sem pedir, depois da odisseia Homérica, com as águas límpidas que o rodeiam, as montanhas destacadas do fundo e sob os céus que de quando em vez cegam depois da tempestade, a primeira luz da manhã pronta para abraçar os amantes, tudo isso vai ter de ser adiado, a um primeiro nível pela questão fundadora da guerra entre os nativos e os conquistadores, mais fundamente e antigamente pelo pecado original e pelos espinhos que a mentira espeta à verdade.
 
Hondo, ou seja, John Wayne mestiço, híbrido, sem pátria, dividido e estilhaçado pela morte da mulher amada que era índia como ele foi, jurou não se preocupar mais com as decisões do seu semelhante, depois da tragédia mais indesejada lhe ter batido à porta. Só que, a mulher branca que encontra e que em tudo é diferente da que perdeu torna-se a seus olhos e por causa do coração a mesma, o filho desta vai ter com ele de noite e abraça-o como se dele dependesse, o índio rival da sua actual condição salva-o da pena capital depois de um engano tremendo mas passa a admirá-lo quando ele vai contra ele e contra a sua tribo por causa somente da verdade básica; e de verdade tremenda em verdade tremenda a mulher descobre que Hondo matou o seu marido e a partir daí pede a última das mentiras, a mentira do para sempre que Hondo repetirá para si próprio rumo ao trilho irracional dos destinos. Algures no campo de batalha puramente humano, a mais acabada das mentiras volve-se a mais revolucionária e única das verdades.

 
Neste filme de uma beleza pacificada como o Éden sem os seus habitantes da praxe, e aonde a mentira faz o mais abalado dos ricochetes, ficamos a saber que o puma grita insultos e é valente, mas o coiote uiva insultos e é covarde - destrinça e dádiva sublime do nativo ao mestiço que viu de todos os lados e se queimou até à purificação nesse ferro e nesse fogo; e aqui entra John Ford, a parte ou a herança Fodiana – recentemente descobriu-se que ele teve alguma mão no filme, a fellow: entre a matança e o baile, a ilusão e o facto, o mito e a impressão, importa a assunção original que levou toda a narrativa até ao ponto crucial, salvando a contradição. Puma ou coiote, na guerra como no amor, a verdade é uma construção de amplexos e estruturas complexas, erigida em planos indestrutíveis e totais, carregada de pontos de vista desmultiplicadores, cheia de tempo e de espaço e de fúria, na qual só percebe o fundamental quem vislumbrar e sentir o pulso ao todo. Louis L'Amour, o homem das mil deambulações entre os ventos e cadáveres do deserto, baseando-se “Hondo” numa das suas mil histórias, proferiu um dia: «A mind, like a home, is furnished by its owner, so if one's life is cold and bare he can blame none but himself.» A acha da mentira que Hondo e a mulher ofereceram ao filho e à fogueira de uma possível família nova foi a acha que nutre o fogo essencial, que fará medrar as crias e um futuro que reconhece o passado – é o olhar e o dizer de Wayne para com a raça prestes a ser abatida mas não esquecida. A família cruzada que se fará uma, liberta e fiel, no mais lendário dos avatares.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018



Under Pressure, Raoul Walsh, 1935


“Under Pressure” é um filme chocante, mesmo saído da câmara exposta às balas do camionista e rancheiro Raoul Walsh ou do corpo e da mente marcadas do grande argumentista Borden Chase que antes de dar à pena foi motorista de gangsters e cavador de tuneis. Chocante porque a carne e os músculos de super-homem que trabalham dentro das entranhas da terra valendo-se do ar comprimido e do veneno que vai pacientemente corroendo os órgãos, os membros e toda a restante matéria, quer mesmo assim bater o adversário do lado oposto, tal como nas grandes guerras ou nas corridas de cavalos, como se tivessem inspirado o elixir da longa-vida ou cheirado um amor para lá de todas as considerações. Existências breves, intensas, cadentes, sempre surpreendidas pelo choque de existir. Ratos que também são heróis e que iluminam os lares de milhões de seus próximos, matam a sede e fantasiaram com o surfar na internet, encarnando nos compadres e rivais da electricidade de "Manpower". Apaixonados pelo vislumbre do centro do mundo ou pela simples faísca da picareta e do consequente som inaudito no mineral assombroso. E que não querem medalhas para além da cerveja no final das etapas, da função cumprida conforme o posto, da estrela-guia feminina que disputam com as vísceras do subsolo.
 
Num dos episódios mais hilariantes da comédia humanista “Suttree”, Cormac MacCarthy descreve assim a busca da personagem principal ao idiota que fala sempre a verdade chamado Harrogate, dentro da escuridão fétida dos esgotos e das cavernas que nos sustêm em delicados liames e esperanças, em busca de um tesouro ou de um brilho que a raça desprezou algures na caminhada: «Calcorreou estreitas passagens laterais e perscrutou os mantos de lama no leito de pedra da gruta em busca de pegadas, mas há anos que ninguém passava por ali, ao que tudo indicava. Os nomes e datas na pedra tornaram-se mais antigos. Cimérios mortos sem descendência. Falta de espírito aventureiro na alma das novas gentes ou ausência de amor pelas trevas».
 
De “Under Pressure” ressuma suor e a morte a escavar em cada poro por cada segundo, mas logo no início vemos um dos mais inauditos planos cinematográficos alguma vez construídos e iluminados, ratos-homens rivais ao encontro uns dos outros no fétido carreiro até à altercação capital na meta, até à glória final apagada e sem eco nem homenagem da claridade exterior. E assim percebemos que certos homens, na equação vacilante e ilógica rasurada na sua morfologia e na sua condição, desprezando a ciência e a física básica em favor da poesia e do desconhecido trucidantes, cavam-se completos no instante assombrado. O frémito: fogos invisíveis em combustões suicidárias de fórmulas desconhecidas que nem toda a água de todos os rios e mares conseguem apagar – à imagem daqueles esguichos sobre o Hudson que abalam as mulheres em pressentimento e matemática macabra a par da erótica pasmosa. O mais duro dos cineastas é também o mais frágil e delicado dos filósofos. O amor à treva é o amor à vida e ao cosmos. Modernos. Futuristas. Utópicos. Uma das grandes obras-primas estilhaçadas dos anos 1930.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

sam the man!





Recordação de uma tarde bem passada com o genial e porreiro Samuel Mira, para sempre the Kid, por entre o labiríntico betão e os jardins de Chelas tratados por tu, em deambulações que eu desejava intermináveis até se encontrar um local sossegado para ele falar de Quentin Tarantino e de escolher Jackie Brown para passar no Lucky Star - Cineclube de Braga. Do metro aonde ele me foi buscar até ao palco do vídeo, perfeitamente sintonizados com as polpas Tarantinescas ou com a pulp original de Elmore Leonard, um raide ao café do bairro, fintamos o ringue da bola e do free style, safamo-nos em last minute rescue dos cortadores de relva que renasciam e se multiplicavam infinitamente como zombies tal como no Thriller de Michael Jackson ou como no Moonwalker da Sega Mega Drive, ele a dizer-me que Scorsese também era importante para a malta do bairro, que se reconheciam naquelas ruas, a mostrar o respect para com o Adolfo L. Canibal de Bracara, mandando para o ar fresco e rarefeito de Janeiro um impressionante beat box só para ver se o som era bom para a câmara, e etc. Senhoras casadas ou o esfarrapado da esquina, todos o cumprimentavam, olá Samuel, um Deus terreno.
O vídeo que aqui ´tá é uma montagem feita por mim de um depoimento sem cortes no qual tudo fluiu limpidamente, samplado e carregado de scratch como só nos génios do rap primitivo. E que dádiva ele ter escolhido o meu filme favorito de QT. Mechelas!

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Help Me Make It Through the Night





para todos os amigos ali presentes e os outros, para a Marta Ramos, o Zé Lopes, John Huston, Stacy Keach, Jeff Bridges, Susan Tyrrell, Kris Kristofferson, Monte Hellman...

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Paulo Faria / Cormac McCarthy / Cinema

Fazendo minhas as palavras que certo dia José Tolentino Mendonça dedicou a Paulo Faria, também eu tenho uma dívida enorme para com esse gigantesco tradutor e escritor. Foi ele que me possibilitou ler em português Blood Meridian / Meridiano de sangue e tantos Cormac McCarthy, um dos heróis cá de casa. Mito, lenda, pó, mas também a certeza de que p'rá frente é que se caminha, olhando nos olhos a treva. É dele ainda o livro contemporâneo mais belo, ferido e violento que percorri nos últimos largos anos - Estranha Guerra de Uso Comum. Violência e ternura. Nele, um homem que há muito 'teve na guerra e nunca a largou, confessa: «Um homem, sozinho neste mundo, anda às cegas, anda em círculos até se perder». Paulo Faria passou por Braga em Julho passado e foi um momento alto para o Lucky Star. Mais uma vez, muito obrigado.



terça-feira, 30 de outubro de 2018



...All the Marbles, Robert Aldrich, 1981


“...All the Marbles” calhou ser o último filme de Robert Aldrich, nele nada existe de testamentário ou de balanço, antes uma sede de avançar e conjugar os supostos opostos mais diversos. Produzido pelo seu filho William Aldrich, tendo como realizadora de segunda unidade a filha Adell Aldrich e contando ainda no papel de Transportation Department com mais uma sua cria, Kelly Aldrich, o homem que se queimou nos gélidos noirs atómicos e se estilhaçou com o chamado western moderno, revertendo toda a moralidade e os farrapos das convenções em “The Dirty Dozen”, não se contentou em abandonar o seu oficio de forma consensual ou exemplar, antes quis continuar a jogar nos seus próprios termos. Termos que são o risco permanente, o ângulo inesperado, a orquestração selvática, o que não dá para contar e que pertence ao campo dos espelhos do cinema.

A história e os personagens são comoventes e complexos: o manager de luta livre feminina interpretado por Peter Falk é lindíssimo e brutamontes, pois percebeu que só assim é capaz de levar as suas duas beldades da terra do bronze a concretizarem o seu sonho e a safarem-se na lixeira da corrupção e das aparências do amaldiçoado ouro. E é neste ménage a trois insólito que eles se amam, odeiam, são pais, filhas, irmãos, putas, filho, chulos, puros, humanos; ménage a trois em alta rotação américa afora que é o fito fundamental da humanidade sempre em marcha de Aldrich: das fábricas, dos fumos e do cinzentismo do Ohio até ao lago radioso de Chicago, da Califórnia inicial que não brilha até às luzes circenses dos casinos do Nevada, a câmara de filmar vai-se derretendo e zarpando pelo ferro fundido ou admirando-se em frente às águas cintilantes que acariciam e redimem o betão; vai ainda olhar estupefacta para os trabalhadores da the other half para logo depois não perceber os engravatados que nos escritórios cimeiros e lustrosos orquestram os nossos serões; câmara que se consome para tornar fulgurante o que a maior parte dos filmes despacham como rotina, um carro e pessoas nas suas conversas normais e passionais, e é aí que Aldrich confia no rosto e na tensão de Falk para fazer escutar às meninas daquele filme e às meninas e meninos do mundo todo um tenor Italiano ou outras constelações anacrónicas a embalar o que seriam os planos de passagem da narrativa principal, o resíduo a falar com a alta arte nos meios das confissões graves.
 
Por sobre lutas na lama e demais monstruosidades da américa funda e das tradições de feiras e de profetas do apocalipse à espreita, ainda se eleva Clifford Odets e Will Rogers à categoria e ao patamar de sábios e dançarinos, voando “...All the Marbles” para o tempo do Deuteronómio bíblico que afirma que «ninguém tem o direito de se desinteressar» e aterrando nas ruas que Nasty Nas já habitava para logo vociferar a profecia «I never sleep, 'cause sleep is the cousin of death» contra todas as pragas da inércia e da indústria do medo. A américa de John Steinbeck e das suas viagens com Charley, as folhas de Whitman, os poetas puros do infortúnio de fim de século, escravos e príncipes. Aldrich a patinar na formação da crenças mais antigas do que o antigo e na sujidade nova das rimas e do basket num equilíbrio que se vai produzindo no mais vale quebrar do que torcer até ao plano final, uma cruz ou um simples abraço – a beleza de quem se sujou todo no caminho espinhoso mas permaneceu limpo no essencial. “...All the Marbles”, na sua fúria desengonçada pelos pontos mortos da dramaturgia, é esse encontro de almas das virtudes para sempre intactas em qualquer tipo de terreno, para lá do instante e da altercação. As regras dos bravos.

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

amanhã no LUCKY STAR - Cineclube de Braga


 
 
Amanhã, quinta-feira, chega ao fim o ciclo de cinema que o Lucky Star levou a cabo em parceria com os Encontros da Imagem de Braga, sob o belíssimo tema, passe a redundância, “O belo e a consolação”.

E nada melhor para o fechar do que um filme que abre para todos os tempos e para todos os espaços do belo e da consolação, uma beleza abundante e cava, uma consolação pedregosa e límpida, transpondo com a sua poesia silenciosa e selvagem as fronteiras do conhecido e do esperado de tais conceitos bem como as margens do próprio cinema.

Helénico e apátrida, iluminado pela jorrante seiva da fonte primordial ou pela catadura da noite das noites, galopando as agruras do meio do caminho em precisos rituais perdidos e brilhando no Cântico dos Cânticos, trata-se do melhor filme que vi este ano, desses que se vão decifrando lentamente a cada nova visão até se ficar cego, desenterrando incontáveis chaves e tocando nos fogachos do discreto sublime.

Prodígio da manufactura e passo lapidar da assunção do cineasta-sapateiro-remendeiro, reinvenção do filme na primeira pessoa sonhado por românticos visionários como François Truffaut e Jean Eustache, independente das leis artísticas em voga e dependente dos afectos e da amizade, o realizador Mário Fernandes estará em Braga para conversar connosco sobre tudo isto e mais além, o que é por si só um acontecimento.

Aproveito ainda para agradecer ao director dos Encontros da Imagem, o empenhado e sensível Carlos Fontes, que espero continue por muitos anos nestas lides.

O Cinema e Braga vivem.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

you got game!


 
 
He Got Game” é o grande filme de Spike Lee nos anos noventa, e o filme americano que melhor representa esse tempo. Em Portugal foi largado como uma foleirada para nerds directamente para as prateleiras dos videoclubes no saudoso porque vivo, orgânico, palpável, de autoimolação, formato VHS. Ainda hoje permanece um segredo a desvendar na sua plenitude universal que condensa feliz Michael Jordan e William Shakespeare, os Public Enemy, a Bíblia Sagrada e um movimento operático de rua que possibilita a aceitação de todas as formas cinematográficas revestidas pelo movimento da emoção – infinitas velocidades e ritmos e somente a velocidade e o ritmo únicos da emoção. Congrega, devorante, o esventramento de Jackson Pollock e um ressuscitar agora da arte contemplativa, contrastada e clínica de Andrew Wyeth; a alucinante realidade em primeiro grau de Auguste e Louis Lumière e o speed MTV redimido.

A narrativa começa básica e antiga como a sede de poder. Um pai que é libertado provisoriamente da prisão para tentar convencer o seu filho a assinar um contracto de atleta com a universidade que pertence ao governador que lhe pode reduzir a pena caso siga os seus intentos. Para deste modo a história se tornar trágica e complexa na aproximação do pai, do filho, e das várias santíssimas trindades que chegam do passado e escancaram o futuro. A nostalgia, os cacos do presente, a edificação e a luz – tudo em alta rotação. Num dos grandes momentos do filme o Pai revela ao Filho que o seu nome é Jesus não por causa de Jesus da Galileia mas antes porque muito depois desse existiu um Jesus das quadras de basquetebol que era a verdade, um Jesus da Filadélfia do Norte, um Jesus dos parques de diversão, dos recantos mais inóspitos do planeta. Um Jesus preto, mas um Jesus sem sombras para dúvidas. Um Jesus que também tiveram de abafar, mas isso já são outros quinhentos... o que Spike nos diz, bruto e carinhoso como o ser que educa, e já nos tinha feito ver isso no genérico fresco e bonito como uma primavera inaugural, é que o brilho precioso, o tesouro de qualquer progenitor, de qualquer pai de qualquer raça ou credo ou classe, a redenção de uma humanidade, pode acontecer nos berços de ouro de Nova Iorque ou de Lisboa ou num meio fétido plantado no cú do mundo que mesmo assim possa permitir a uma criança desenvolver o talento e a paixão. Trabalhando todas as horas como Jordan... sofrendo as chagas seculares... as humilhações... justificado.

He Got Game” está ao lado de “The Pride of the Yankees”, de “Bull Durham” ou de “Forget Paris” numa lista dos melhores filmes alguma vez feitos sobre desporto, mas acima de tudo dos que transcendem essa categoria para serem primeiramente sobre o respeito próprio (o self respect acatado e transmitido por Stallone na saga “Rocky”, outro dos melhores filmes de sempre). O Jesus Shuttlesworth de HGG, o recordista das divisões secundárias que não o conta a ninguém encarnado por Kevin Costner em BD ou o árbitro a morrer de amores de Billy Cristal vão com certeza cair nas mais diversas tentações para se manterem firmes na noção também mitológica de que se seguires o teu coração não trabalharás um único dia na vida. Obviamente a única via para o sagrado que não permitirá que se queira tomar banho mais cedo para ir dar uma queca ou snifar uma linha, largar o escritório antes das cinco da tarde, conseguir um atestado de baixa médica pelo amigo da amiga, contar os dias para as férias, querer ter férias... Em “He Got Game”, o filme que escolho para homenagear Francisco Rocha e o seu projecto de mãos vazias agora chamado My Two Thousand Movies, ninguém que aparece ali por inteiro tem um trabalho mas antes uma vida plena à Jack Kerouac ou à Huckleberry Finn, e quem levou a premissa original para lá dos limites acabou por matar a sua paixão e passar a penar nos infernos dos que demais amaram nesta terra das regras.
 
Parabéns, Francisco do Sobral de Monte Agraço, you got game!

quarta-feira, 8 de agosto de 2018



First Reformed, Paul Schrader, 2017

Dois grandes filmes recentes, não necessariamente inseridos na vinheta do contemporâneo, projectam pelos meios essenciais do cinema várias matérias da ordem do invisível: o encontro de almas, o som do silencio, as vozes do silêncio.

“Frantz” e “First Reformed” comportam atrás de si duas guerras diferentes: na do primeiro ainda se fazia ponto de honra em não matar pelas costas o oponente que calhou em sorte ser inimigo; na do segundo a cobardia, a carnificina e o passo seguinte do horror total impõe-se. Num e noutro o Pai insistiu com o filho para se alistar, os rostos dos sobreviventes adquirem a carne viva e defunta que sobrou dos estilhaços bélicos, adquire ainda o espírito do que tombou pelas suas mãos ou pela sua ordem, sendo a coragem a única via de uma possível salvação arrancada às trevas mudas de razão.

Em Ozon o ser que matou o próximo aproxima-se de quem chora a sua vítima e da impossibilidade lógica desse encontro brota uma luz improvável e preciosa composta da honestidade dessas emoções partilhadas que a todos cede um caminho.

Schrader faz o avanço possível do caos abstracto que se alastrou de “Taxi Driver” para uma espécie de novo mundo em êxodo, furado por novas pragas, pejado de existências cercadas nos poços da evolução terráquea, vislumbrando-se um Apocalipse capaz de deixar todos e cada um em estupefacção. O tema continua a ser o do Génesis, o embate com o Paraíso e os jardins do Éden sujos, imperdoavelmente vilipendiados, a expulsão eminente; para lá da rasura formal de Robert Bresson, a violenta austeridade original de John Ford faz os ajustes dos gonzos mestres da criação.

Mas para além da altercação oficial que legaliza e saca o sentido à morte, o Padre, o ambientalista e a sua mulher prenha são metralhados por duas guerras que ocupam todo o seu centro e interior: o silêncio divino, a noite na alma conhecida por todos os homens em todos os tempos, o desespero; e o mal que a raça concedeu ao mundo e à criação, desprezando a natureza, o sagrado. O imemorial e o novo feitos um só bloco de culpa. Irreconciliável.

Pode Deus perdoar-nos? É a pergunta capital para todas essas guerras. Sendo Deus a natureza, a viúva, os pais, ou o desespero. “Frantz” começa por ser negro dos interiores obscuros das casas até às águas brilhantes que não redimem, para o arco-íris complexo mantido na origem dos seres ressuscitar e devolver a ventura. “First Reformed” talvez termine com uma morte de uma atrocidade insuportável que antecipa a esperada desde a primeira tosse que lhe ouvimos, talvez termine com um sonho e uma ilusão, certamente abre para um nascimento.

O rosto dos quarenta anos de Ethan Hawke é um rosto velho e sofrido de falhas inadmissíveis que lá dentro sustenta um olhar de criança preso por finos liames indestrutíveis. Olhar puro que encontra a certeza da mulher prenha que quer seguir em frente rumo a uma união que só pode despegar desta terra e do nosso colete de forças cósmico. Da mais horrível imagem do cinema contemporâneo – o tecido preto da batina sacerdotal violado pela abjecção do colete de explosivos – vamos ficar a planar na dimensão do sonho, parente da coragem e da pureza que assim enfrenta o terror do aleatório que mata pelas costas.

“Frantz” e “First Reformed” abrem triturados, aninhados e sem atalho para a luz e acham qualquer resquício fundamental dela no acreditar mais básico, num acreditar de criança, uma irresponsabilidade que responde a um mundo virado do avesso e sem moral da história. Olhar puro, o verdadeiro Tema das duas obras.

«Bem-aventurados aqueles cujos caminhos são íntegros e que vivem de acordo com a Lei do Eterno!» - palavras que saem da boca do Padre, dos Salmos, do Fiódor Dostoiévski de Schrader ou veladas na libertinagem dos poetas dos amados de "Frantz".

segunda-feira, 6 de agosto de 2018



Frantz, François Ozon, 2016

A beleza imprevisível e intacta de "Frantz" para nada serve sem a transcendência da partilha; a incomensurável paisagem, a regeneração possível cedida pelo vento nas árvores, um brilho lancinante da água num lago, experimentados sozinhos, não têm a capacidade de florescer o espírito atormentado pela Guerra permitida pelos homens. Não apelam à revelação. Os dois seres mirrados, em deambulações ao deus-dará, que desde o início são puxados um para o outro em terreno hostil e por uma presença física que não existe, só alcançam o sentido da existência numa impossível comunhão com o passado ou nessa potente luz que vai emanando da verdade da assunção dos sentimentos; uma verdade que não está nem nas palavras nem nas intenções mas sim na presença e no presente inteiros, trabalhando no coração do próximo rumo a futuras primaveras; os olhares sem freio, o rosto descarnado, a entrega despida são as sementes e o sol garantido para todas as próximas temporadas.

Assim, as cores podem brotar nos resgates do que já não pode advir, mas também oferecer o milagre de quem ousou a coragem e o passo para o abismo ao invés da segura razão. Compaixão, compreensão, perdão. E finalmente o amor. Talvez aquele amor para lá de tudo que alguns chamaram Omnia. E que permite que de um quadro suicidário de Manet surja o espectro fulgurante das chamas de todos os futuros amanhãs. Para lá das teorias ou das dialéticas, com a bênção do Ernst Lubitsch de “Broken Lullaby” e o trucidante paraíso virgem de cada entrega no absoluto.

François Ozon e os resgates de uma graça indescritível e silenciosa que já parece fazer parte de um mundo irremediavelmente perdido e só entrevisto nos velhos sonhos.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Rui Chafes sobre Cavalo Dinheiro




Para lá das nuvens, auscultando o etéreo, e com todo o peso e fatalidade terrestre. Uma gravidade insólita.

domingo, 22 de julho de 2018

Cavalo Dinheiro em Bracara Augusta




A arte brutal de Rui Chafes ressuma do choque entre matérias brutas. A mão e as sinapses do artesão em luta contra a substância resistente. Prumo e esquadria defronte do fogo-fátuo e do gelo. A paciência. O tempo como único aliado. O olhar indesviável. Moléculas. Bicharocos. Deformações cósmicas. Ferragem orgânica. O diálogo com a morte. Chafes busca a redução como a única via para a transcendência. Clangor final do universo pacificado. Pedro Costa, o realizador, trabalha com a bruteza da memória e da sensibilidade de gente real comungando da mesma brutalidade. Gente real que para a raça dominante é somente pó.
 
Ambos carregam um mundo consigo – a catedral do metal e a parte lendária do povo. Sobre isto António Reis, o poeta, escreveu:

Aquele homem que ali vai e que tu vês,

é um atlante.

Um atlante, sim! Suporta um mundo enorme!

(tão grande, como não podes imaginar...).
 
Cavalo Dinheiro é pura electricidade, confronto com o fluxo original das sombras; escorre de cada partícula da carne ou da palavra alta tensão; electricidade sanguínea, alta voltagem geral, decibéis, nervos, relâmpagos. Olhos a escorrerem água e faíscas. Membros programados para embater no império do medo. Nobuhiro Suwa, trabalhador próximo, comparou-o ao afinar delicado de uma guitarra. O melindre do toque, do ajuste ínfimo e essencial entre a matéria do humano e a matéria da luz, tudo o que sabemos.
 
Dos espelhos de Juventude em Marcha e da luta longínqua da figura contra o seu fundo vamos ser queimados por superfícies aterradoras de compostos visuais puramente físicos e puramente maquínicos, combinações de carne e de sangue com pixels vergados, o acabado peso do silêncio e a revolução expressionista reinventada num passado de mortos inaceitáveis. Os olhos, a pedra, as curas, os anjos, o sussurrar, a magia, as lápides, energia e epiderme no comprimento de onda do "Star Spangled Banner" de Jimi Hendrix ou dos rios cegantes de Conrad. Não paradoxalmente, Costa busca nessas ondas contíguas a redução como a única via para a transcendência. Cavalo Dinheiro é uma hecatombe comprimida.

Ainda absolutamente Fordiano. Mantém o homem no centro e toda a descarga voltaica é questão de justiça. Vamos ver melhor, vamos ver o fogo desta gente mítica e real. Do interior para fora. Os seres, o Ventura, a parte que vai continuar a ser espezinhada é a parte original. Os olhos choram e fuzilam. Os membros e a verve prometem guerra. E unidos vencidos vencerão. Ventura continua tão enorme despido contra um tanque de guerra ou na máquina do tempo terrorífica do elevador tal como todo este inaudito big-bang apenas purifica a essência. Que continua a ser o que podem os homens. Depois de todas as mentiras terem sido contadas, passadas as chacinas e as revoluções falhadas, ainda um grito de resistência.

Cavalo Dinheiro passa na próxima terça-feira em Braga pela segunda vez; urgem os choques eléctricos das reposições e do amor escondido na noite.

Com apresentação de Chafes, o magistério do tempo e a visita do divino.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Marlowe... Burke Devlin... Joe Gillis... Ben Bradlee...




Nunca “choraremos” demais (uns happy fews...) as fabulosas personagens de detectives ou de jornalistas incorruptíveis e fumadores como se não houvesse amanhã que o professor Carlos Melo Ferreira foi recusando aos seus alunos em filmes de género que nunca saíram do papel ou que ficarão para sempre envergonhados nas poeirentas gavetas ao abrigo de qualquer investigador...

Mas dos filmes de Pedro Costa ele sempre aceitou falar em conferências ou nos cafés e escrever muito, mesmo que nas aulas fosse ultra misterioso e fascinante a respeito deles, como se para conservar todos os segredos, elipses, não-ditos dos monumentos – não usurpando o significado daquela preciosa palavra americana milestones que só brilha se não cair na rotina.

«Vejam, e formem a vossa opinião. Depois conversamos.» Dizia classicamente, para que ninguém andasse a falar do que não sabia ou a papaguear opiniões alheias. Mas ele escutava sempre mais do que falava, pelo menos sobre Juventude em Marcha.

Porém desta vez permitiu-me filmá-lo e para mim foi como se tivesse concretizado um pouquinho de todos os noirs ou policiais conjuntos com que sempre fui sonhando.

Thanks, sir!

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Juventude em Marcha em Bracara Augusta



O meu encontro com Juventude em Marcha aconteceu no Outono de 2006 na semana da estreia em Portugal. Em plena cinefilia destrutiva e farto de escutar dos professores que o cinema é uma coisa cara e para os “escolhidos” alguém me mostrava que com uma câmara digital perfeitamente banal aliada a uma pesquisa sobre essa nova tecnologia (codecs, color correction, masks, CCD vs CMOS, etc., a confusão aproximava-se mais de uma patologia recentemente descoberta e sem cura à vista) num vórtice sempre a confundir-se com o amor mais acabado se conseguia alcançar a desmesura e a dignidade de John Ford.

Entrar no filme foi um soco seco no estômago oco. Primeiro apareceu o som no negro, um rumorejar humano algures e um vazio atordoante, logo coisas a caírem, depois veio a imagem, umas ruínas e um céu tão negro que devorava tudo, imediatamente objectos monstruosos a serem largados por uma janelinha, o seu cair a ensurdecer o mais surdo, a pequena luz bruxuleante que pelo filme todo tentaria alumiar a escuridão de um bairro condenado, uma luzinha a tentar salvar o que podia, a tentar deixar ver, fazer justiça – este era o primeiro plano e o cinema na minha cabeça a redefinir-se, pareceu-me o primeiro plano que alguma vez vi.

Pasmo que não se quebrou até ao último plano, em que Ventura, o heróico Ventura filmado por Costa com a mesma dimensão e aura com que o maior dos cineastas filmou Woody Strode, o Sargento Negro, em Sergeant Rutledge, se encontra no centro de uma cama que parece uma Via Láctea numa postura ao mesmo tempo livre e tão hierática como uma estátua de Michelangelo, e uma criança absolutamente estupefacta por tal visão, no cantinho inferior direito do derradeiro dos enquadramentos sem margem para dúvidas, tentando aceder ou escalar uma montanha; depois outra vez o negro e um vento que só pode ser o inaudito das revoluções e das fidelidades.

Pelos meios dos 155 minutos fui percebendo que um rosto comum ou a maçaneta de uma porta de contraplacado sem qualidade, um quadro Bíblico de Rubens ou a Vanda Duarte mais inchada a falar de fraldas têm de ser respeitados e trabalhados da mesma forma, com o mesmo empenho e fé – qualquer dos quadros me apresentava o peso de séculos, a espessura do eterno, o tempo sem tempo, o fatal presente. E uma inocência que despertava no espantoso e imprevisto movimento de câmara nesse anfiteatro novo e mesozoico da Gulbenkian que ia das árvores para os bancos a misturar todos os elementos e prosseguia até ao sumptuoso rasgar de uma barca entre nevoeiros e aparições, a aurora de Murnau oferecida aos deserdados.

E as cartas a uma mulher escritas e reescritas mais uma e outra vez até às estrelas que nunca vamos ver mas que brilham até ao fim... o sofá vermelho à porta de casa com o fato negro e a postura certa traçadas pela força expressionista do Fritz Lang de aço... o compasso lento e supersónico de uma tensão vital entre as trevas brancas e os esconderijos luminosos... o choque entre o asseptismo abjecto das habitações modernas e a escuridão das velhas barracas a cederem a possibilidade da comunhão e da partilha... a desmultiplicação dos filhos, do pão e das dádivas.

E assim a maior das dádivas foi conhecer toda uma outra parte do mundo e de uma humanidade e ficar a saber que com o nada se pode fazer tudo. Depois fui descobrindo em sucessivas revisões que Juventude em Marcha contém a épica de Hollywood e a intimidade dos grandes amadores. Quem me indicou o filme foi o professor e “Hawksiano” Carlos Melo Ferreira, que secretamente quase implorou a trinta jovens com sede de acção e muitos deles “Godardianos” a irem ao cinema ver uma obra com tal título e figura enigmáticos.

Por muito disto e pelo muito que não percebo nada, é um dos filmes da minha vida.

Juventude em Marcha passa amanhã (terça-feira) no LUCKY STAR - Cineclube de Braga com apresentação em vídeo de CMF.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

No Quarto da Vanda em Bracara Augusta



Parafraseando Truffaut acerca de Abel Gance, hoje em dia Pedro Costa liga a câmara na sua terra e em frente aos seus e já só sai poesia; poesia sem género arrancada aos dias e noites de rodagens consecutivos em meses e anos inaceitáveis para o “cinema normal”, arrancada à noite, ao sono, cavada na noite, no suor, no sangue, na luz, na pedra, estripada à tecnologia e aos filtros profissionais em transplante milagroso, aos reflectores de supermercado; tempestades de uma intensidade precisa e inegociável.

Mas houve um tempo em que tudo era desconhecido, terra queimada, susto, um homem e uma mulher na solidão do derradeiro jardim, a guerra, e nisso a possibilidade de recomeçar de novo, tudo, o cinema, uma moral, uma humanidade.

Na terra queimada escutou-se um passo para o abismo, com os ditos drogados, indigentes, a escumalha para queimar que não interessa a ninguém, agarrou-se na tocha pioneira de Griffith, na talocha de um pedreiro do Gênesis e na fúria silenciosa de Faulkner (cada vez mais e visto à distância é o fogo primordial desta obra gigantesca) para obter formas, cores, as escalas de um Rembrandt.

Nos lámbios desta nova e banalizada raça digital, há alguém que dedica todo o tempo do mundo ao outro e não grita isso; antes ou depois das festas promocionais, fora de moda.

No Quarto da Vanda, a obra do século XXI, passa hoje em Braga.

terça-feira, 3 de julho de 2018

terça-feira, 12 de junho de 2018

segunda-feira, 11 de junho de 2018




Breathless, Jim McBride, 1983
 
No vídeo de apresentação ao Breathless americano o seu realizador conta-nos demoradamente a sua quota-parte numa das narrativas mais fascinantes e trágicas da história de Hollywood – a luta entre os realizadores e os estúdios, os autores e a indústria, a visão pessoal contra a necessidade de vender bilhetes e pipocas. Jim McBride esteve na Cinemateca Portuguesa a 2 de Maio do presente ano para introduzir a sua primeira obra e conversar com o público. Não no âmbito de qualquer retrospectiva sobre a sua multifacetada carreira, não como homenageado num festival qualquer – apesar do director da Cinemateca, José Manuel Costa, ter referido que a McBride cairia como uma luva o rótulo de herói independente no Indielisboa que acontecia por aqueles dias – muito menos por estar a tentar realizar um filme no nosso país, mas sim porque veio visitar Portugal e tinham-lhe falado muito bem dessa instituição. Foi ele mesmo a mandar um email, a pedir encarecidamente que lhe dessem a honra de mostrar um dos seus filmes em tão mágico lugar.

David Holzman's Diary foi então a escolha, que José Manuel Costa considerou uma das primeiras obras que mais marcaram o cinema desde aí, filme independente não por moda mas por vontade irrefreável. A introdução do realizador foi breve, simples, right to the point: como em 1967 ele não imaginava o mundo da blogosfera, do youtube, dos facebooks ou do instagram, e inspirado pela revolução da nouvelle vague francesa – a sua obsessão definitiva, como estamos a perceber – e aproveitando a nova leveza dos meios técnicos, decidiu ficcionalizar um diário, com uma certa distância mas metendo lá dentro muito da sua vida e experiência. Convidou amigos, captou o seu quarto e o seu tempo, fixou as rotinas e os rituais de uma geração e de uma época, saiu para a rua e foi ao encontro do outro, deu a entender e lançou para futura análise o ar daquele presente, do existencialismo ao Vietname. Isto disse ele e disseram alguns dos poucos espectadores de uma sessão que não foi badalada, sessão a que ele assistiu sem “problemas de consciência”, tendo sido consensual que o Big Brother não trouxe revolução nenhuma e que um gesto destes já continha em filigrana e terrível o embrião desse monstro anestesiante da preciosidade de cada ser, antecipando-o sem a sua abjecção. Visto hoje, o filme pode até já não ter o impacto da época, a frescura da descoberta sem aviso, essa intimidade e despudor chapados no ecrã que em 67 não estavam profanados, mas além de uma delicadeza e de uma verdade intrínsecas no instante sagrado, quando a câmara sai largada porta fora e se torna puramente observacional, ontológica mesmo, entregando-se às gentes e aos seus espaços num registo puramente etnográfico de quem quer conservar a memória envolvente, o esquema e a estrutura despegam para a emoção do descerramento de um artefacto humanista e por isso mesmo inigualável. Na dura Needle Park à beira dos anos 70 e nos seus passeios próximos redescobrimos espantados toda uma parcela do mundo que tanta ficção tentou emular, tal como quatro anos depois em The Panic in the Needle Park, um tocante filme de Jerry Schatzberg que como este prova que a ternura não tem palco, nem raça, nem condição estabelecidas.

Voltando a Breathless, que foi aparecendo durante toda a conversa como o ponto de maior estupefacção na sua caminhada, e regressando às descabeladas e maquiavélicas aventuras oferecidas pela meca do cinema a quem tem uma ideia contrária ao sucesso vigente, McBride apareceu diante dos poucos mas bons que decidiram perder a última novidade ou o primeiro premiado em grande forma, absolutamente jovial e leve, risonho, simpático e a falar com qualquer um, inclusive num português bem aceitável para quem teve um ano de aulas nos anos oitenta. Ficando-se a saber da trucidante aventura que foi concretizar o remake da primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard, esperar-se-ia uma figura taciturna, talvez mesmo uma personagem na defensiva, o artista maldito ainda e sempre vergado por uma cruz que carregou e levou a um porto tramado, mas nada esteve tão longe de qualquer desses clichés. Forever young, acompanhado da esposa, de um filho e de uma filha ainda jovens, estivemos na presença de um puro saído de um filme de Frank Capra, um Mr. Smith ou um John Doe no que ao coração diz respeito, lembrando o James Gray que há uns anos apareceu no festival Lisboa / Estoril com uma ninhada de filhos a agarrar-lhe a gabardina enquanto este contava a rir-se as suas lutas com os executivos televisivos que rapidamente o despediram. O tipo de sensibilidade, de desprendimento e de humor de quem foi percebendo as regras do jogo, o significado das pequenas mas únicas vitórias que importam, as mãos limpas e a grandeza de quem não sugou o sangue oferecido em bandejas douradas mas antes resgatou o brilho e a redenção essenciais de arenas tão retorcidas. Homens que saíram da elevação do cinema clássico americano para as terríveis aventuras do cinema moderno, não vendendo a alma ao diabo. McBride filmou com dinheiro, sem dinheiro, com a película de 16mm e a câmara na mão emprestada e a ferver de ideias mas também com stars e muitos camiões de produção, deu o seu toque a um episódio de Six Feet Under quinze anos depois de ter caído na The Twilight Zone. O esfomeado que se perdeu de amores pelos falsos raccords, pela energia renovadora e pela juventude de Godard ou de Truffaut é ainda um dos últimos representantes da dura cepa dos valores de John Ford ou Howard Hawks. Sem resquício de bazófia ou de ressabiamento, apreciando nos dias de hoje em que não vai filmando tanto Wong Kar-Wai como Nuri Bilge Ceylan. Nascido em 1941, é um iniciante.

«About the future, which I don't know, you don't know! Nobody knows it! So fuck it, roll the dice!»

Quando se sugeriu a McBride a realização de um double bill em Braga com os dois Breathless a sua humildade voltou a dar cartas, disparando imediatamente que talvez fosse uma seca para os espectadores, ver a mesma história duas vezes... E apesar do fascínio, da admiração de fã número um ou da aproximação sempre imprevisível ao monstro sagrado – Mc contou ainda que uma vez falou ao vivo com Godard mas ele, já taciturno, quase só deu os bons dias – não existe nada de reverência contraproducente ou de citação fácil – mesmo que se prove que a iconografia e a carga explosiva está do lado de Pierrot le Fou, não vai ser Rimbaud a esbracejar mas algo bem mais instintivo e primário. Godard, nos seus filmes e nos seus escritos, ensinou muitas vezes como amar os «bons americanos» - de John Wayne a Manny Farber – e o filme de 1983 tem orgulho disso. Richard Gere emula Jerry Lee Lewis e baila com Sam Cooke, imita Jesse James ou os vertiginosos de Gun Crazy do filme de Joseph H. Lewis para encontrar a polaroid, o super-herói ou a verdade crua e espampanante de si mesmo. O movimento geral e a electricidade não vão sobre os trilhos e estrilhos do jazz modernista ou da pirotecnia estilística mas antes desliza na Americana clássica da velha Hollywood de fundos falsos, céus encarnados a fogo como os sentimentos em causa ou espalhando magia pela escala de planos infalível dos tarefeiros – e neste ponto a participação, as viagens e a poética fascinante do texano L.M. Kit Carson no argumento serão decisivos; Americana que não significa nostalgia vácua, muito menos mediação simbólica, antes fusão e luta com os quadradinhos da banda-desenhada cósmica que se debate entre o amor mais puro e a liberdade do absoluto, embate com o precioso cinema ele mesmo nessa cena orgástica em que o fugitivo possui a miúda na parte de trás da tela, numa assunção dessas imagens e sobretudo dos diálogos míticos mas também numa violação desses códigos e da subtileza de uma arte que sugeria mais do que mostrava, respiração frenética do beatnik de Kerouak torcendo e digerindo as ondas jazzísticas. De Las vegas, passando pelo deserto até Los Angeles e suspirando pelo México com o mesmo fôlego ou falta dele com que Jesse deseja a miúda francesa – a devolução principal de Mc a Godard – o Breathless de 83 é uma obra puramente americana e que mete em causa toda essa mitologia. Um filme com tomates, como tudo o que é singular.

Sob o signo de um nova Americana que aglutina e mete em guerra o classicismo e a Nova Hollywood dos anos setenta, mas capitalmente sob o domínio ou a tragédia da figura primitiva do hustler. Que pode ser o citado Jesse James, Theodore Roosevelt, o Paul Newman do filme de Robert Rossen, Michael Jordan, Sean Combs ou qualquer um dos biliões de anónimos nessas pradarias ou bilhares que perderam e dobraram a parada. Para mesmo aqui a questão e a moral ser fugidia, ambigua, sem centro, em dialécticas essenciais, precisamente actuando à maneira dos hustlers originais – cowboys ou matadores, colonizadores ou índios – ao exemplo da inacreditavelmente bela e perigosa cena da piscina, em que ele assume a ela o “tudo ou nada” do seu credo, para lá do “tudo” ou do “alguma coisa”; ou, talvez ainda mais sintomático, quando William Faulkner é contradicto para se preferir o “nada” à “dor”, chegando-se mesmo a utilizar o maior escritor americano como quem ousa cortar a rede do abismo sexual. Pelos fundos barrocos ou pós-modernistas de neons tipicamente anos oitenta, composições fotográficas ludibriantes ou ruínas plásticas, estamos mais uma vez no Romeo and Juliet de Shakespeare e soterrados na profusão de símbolos, estampas, iconografias e lixo dos novíssimos tempos. Talvez por aí o mais bonito, a dádiva deste remake parido viciado e virgem a um mesmo tempo, seja o movimento da bela, da Monica Poiccard feita por uma Valérie Kaprisky bazada da idealização da BD para a carne bruta desta paisagem suja, aura total utilizada assim por uma única vez: inicia-se cheia de medo, a tremer e a pedir ao delinquente que se vá embora, “não fode nem sai de cima”, preservando as cunhas e as saídas profissionais a todo o custo, para... lentamente, percebendo e vendo o incêndio no corpo e no espírito do Jesse ressuscitado do mito e da lenda e do pó americano, se entregar toda e nada como no mundo do cinema, esticando a ilusão até ao tiro final que como nas fitas irá ficar suspenso. Suspensão e fôlego, são estas as velocidades e o tempo que importam. Obrigado pela coragem, Mr. McBride. E volte sempre que quiser.
 
(texto escrito para o LUCKY STAR - Cineclube de Braga)