Frank Sinatra faz 100 anos, uma rádio
passa durante 24 horas os seus êxitos cantados por ele e pelos seus
herdeiros, o jornal da noite diz qualquer coisita da praxe antes da
meteorologia, numa tasca ou noutra consideram-no o maior, e fico
feliz pois ele resiste a tudo isso e continua grande. Só que, ao
exemplo dos últimos anos, penso ou vejo ou escuto Sinatra e só me
lembro de “Some Came Running”. Da complexidade da sua vida e da
sua obra, das luzes da ribalta aos buracos e brilhos negros, o que
sei dele, muito mais do que as ligações à máfia, aos bordeis ou
às garrafas de whisky sem dó nem piedade, tem a ver com o movimento
torrencial a que ele se entrega, movimento que por consequência
apanha os que o rodeiam. Mas antes de ir a Vincente Minnelli, a
Shirley MacLaine ou a Dean Martin, vou a James Jones, sem o qual nada
disto seria assim. É lá perto do final das 1000 páginas originais
deste contundente e contraditório altar humanista que se lê: «a
essência, o sumo do que queria dizer, era que o homem constituía
por si mesmo um universo sagrado e ao mesmo tempo um balde de
porcaria, que infectava o ar do jardim e do qual era preciso
desembaraçar-se o mais rapidamente possível. Estas duas coisas não
só se misturavam indistrinçavelmente, sim formavam uma entidade só
e única, não existindo portanto mais do que uma evolução». É
assim que Dave Hirsh – livro ou filme, o mesmo corpo – volta à
pequena terra da sua nascença, muitos e muitos anos depois, para
tudo isso repelir e insultar, não admitindo que, de facto, os
sentimentos não enganam, são sempre fieis quando recordam. E a sua
violência, perdição, esse vórtice devorador que o consome nas
deambulações, é de uma vez a recordação daquilo que certo dia em
certo tempo árido julgou para sempre e assim não foi; e o que se
lhe apresenta e se lhe agiganta como um presente prometido e estável
que assusta por assim se voltar a apresentar de chofre, sem pedido.
Esse embate entre o que foi a infinitude e o que se apresenta a prazo
corrói-o inexoravelmente. Era uma vez... e não se sabia da morte,
já foi uma vez... e tanto dela se tacteia. O filme, o livro, a vida,
acontece: Sinatra a insultar MacLaine indesculpavelmente num segundo
para no seguinte lhe pedir ajoelhado que esta se case com ele. Dean
Martin a explanar que nasceu para beber tal como o seu amigo nasceu
para escrever e por isso vive e morre conservado na bebida como Dave
na fogueira literária. Alguns, como estrelas cadentes, tudo em
milésimos, de passagem, amando o efémero, à maneira de Eugénio de
Andrade.
Demorei muito a perceber
tantas coisas do filme de Minnelli. Tantas coisas que não se dizem
em palavras mas sussurradamente em olhares e expressões, vazios e
silêncios. Mas certa vez, já não imagino a data, descobri que na
infância, nessa casa vasta demais e sem contador, quando se é
pequeno, vi tantos e tantos tipos como Dave Hirsh. Magalas,
fugitivos, imigrantes, desistentes, seres sem rei nem roque que
apareciam no lar já não doce ao fim de anos impronunciáveis e
causavam sem querer uma hecatombe não muito pequena. Quando se
estava no café e se via que algum estranho com uma aura devastadora
se encontrava no bilhar e o ruído era mais do que o costume, já
estava a ver o “Some Came Running”. Quando na missa as velhinhas
e os adultos viravam a cabeça para os lados e para trás e tossiam
mais do que o habitual, o “Some Came Running” já estava a ser
visto e revisto sem o saber. Se na paragem do autocarro ou no jogo da
bola domingueiro uma garota de saia curta e cabelo perfumado e
arranjado não olhava para o estranho mas corava, o “Some Came
Running” projectava-se sem freios em desmesurada janela e com toda
a vibração e todas as cores e melodrama. “Some Came Running” é
o mais antigo dos contos e dos dramas, e o grande realizador como o
grande escritor que foi aos campos de batalha (sabe bem dizê-lo, sem
falar em segundas linhas mesquinhas ou doutas) deram a ver pela
primeira e derradeira vez essa ferida e esses desabrochares pois
meteram-se no meio, por dentro das dúvidas e nos círculos
contínuos, suicidiários e irracionais, talvez salvos pela paixão
demasiada, sem distâncias gélidas.
Dou os Parabéns a Frank
Sinatra e tenho de os dar igualmente a Dave Hirsh, bruto, caloroso,
contraditório, seguríssimo. Não se trata do anti-herói pusilânime
ou do escritor bloqueado que redescobre a inspiração, mas de um
indefinível genuíno, um puro, uma fonte de confiança e um berço
(ventre) seguro; resumindo, tarefa impossível: muito longe do
virtual e das máquinas e da convenção, cheio de carne, sangue,
suor, amor e raiva, sublime e esterco. E assim, de confiança. Sem
lições ou conselhos: cada um como cada qual: um universo sagrado...
Sinatra, como Hirsh ou Martin, são velhos como o primeiro cepo do
primeiro jardim e novos como a eternidade. Todos os anos de vida.
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