terça-feira, 8 de dezembro de 2015


"Tarrafal" (2007) inaugura mais uma fase bastante especial da obra de Pedro Costa, composta por várias curtas-metragens em remontagem de sentidos, depois das durações, amplitudes e respirações largas de "No Quarta da Vanda" (2002) e "Juventude em Marcha" (2006). Nesses filmes tratou-se de regressar às Fontainhas e à comunidade Cabo-verdiana sobrevivente em Lisboa depois de aí ter estado em "Ossos", só que, factor decisivo para tudo o que se seguiu, Costa dispensou as grandes equipas e meios do cinema dito industrial, para com os recentes e leves equipamentos digitais chegar realmente junto das pessoas, estando com elas todo o tempo necessário. Desse tempo, dessa disponibilidade incondicional para escutar as histórias de vida únicas e o quotidiano de um bairro, aboliu-se qualquer tipo de género ou fronteira cinematográfica, registando-se pessoas em vez de personagens, o seu movimento e por consequência o movimento do seu mundo, nunca deixando de lado um romanesco fortíssimo que irrompe da memória e do coração de cada um desses seres que vivem e habitam intensamente. "Tarrafal" abre com um plano de conjunto que ocupa praticamente metade dos seus dezassete minutos, imóvel, duro e no escuro como o que é dito, onde uma Mãe e um filho, aglutinando as promessas da infância e a desilusão adulta, vislumbram um passado na sua terra natal, fazem uma cartografia familiar e afectiva, um estado das coisas político e uma denúncia feroz que na sua extrema crueza e realidade ostenta laivos feéricos. Composição e fundo que reenvia directamente para "Casa de Lava" (1994), onde os vivos da ilha esperavam os mortos, os pesadelos, as notícias e os fantasmas dos que tinham saído para Portugal. Se "Tarrafal" apresenta uma inversão geográfica e sentimental em relação a esse filme decisivo, o facto de se passar numa zona abstracta e árida - uma barraca sem nome nem lei, no meio do mato e longe das rendas, fora dos prédios brancos de "Juventude em Marcha" e dos quartos de Vanda - acentua e aprofunda todas as perseguições, misérias e genocídios a uma raça e a um povo que como tantos outros corre o risco de ficar sem pátria, futuro ou dignidade. A conversa que escutámos acaba por versar sobre uma entidade sem rosto nem identificação que persegue, expulsa e finalmente mata quem decide não poder fixar-se no País acolhedor, e da boca de quem o conta ficamos a saber que também eles ou já foram apanhados e morreram ou estão em risco de o serem. Entidade que vai ostentando dimensões do mal em forma absoluta e fantástica, imemorial e contemporânea, e que será figurada em elipse na segunda parte do filme. Lá fora, em agrestes extensões que deixam apenas vislumbrar resquícios recentes da civilização, um velho procura e bate violentamente com um pau em algo que nunca veremos; Ventura, o Pai de "Juventude em Marcha", entrega os pesares fúnebres ao jovem da barraca; e do dia viajamos repentinamente para o âmago de uma noite cerrada que tudo absorve, cara do inimigo fugidio surgido inteiro na rememoração; lamento pelos mortos que nem enterrados podem ser, como os vivos que não podem escolher. Voltamos à barraca e já só com aqueles que já morreram mil vezes, habitantes da sombra que ainda contemplam horizontes perdidos, mantendo-se em pé por uma força superior de quem viu o inaceitável e não se rende por isso mesmo. Para o punhal e a expulsão final fazerem ainda mais sentido agora, depois de "Cavalo Dinheiro" terminar com facas, cantos e promessas de justiça, pacificado e grave, avisando agora Ventura e todos os seus da mesma maneira como antes foram avisados e agredidos. Pedro Costa, Ventura, José Alberto Silva, como em outras horas Vanda ou Pango, e à semelhança da desmultiplicação de filhos e logo de primaveras florescentes asseguradas, o rebaixamento ou a demagogia não entram, para na treva e no finca-pé se apelar a toda a luz e a todo o cósmico humanismo. O poder das formas cinematográficas e a força irredutível do amor.


O trabalho do Escocês Bill Douglas, nomeadamente a trilogia inaugurada com "My Childhood" (1972), comunga de uma mesma intensidade, rigor e, por consequência, generosidade formal, que engrandece e transcende o que à primeira vista já tantas vezes se viu. Num universo igualmente árido e compacto onde a descoberta e assombro da infância se vai desvelando num austero preto e branco que acentua a dimensão assombrada e o peso do real a um nível idêntico, o fora-de-campo pressentido ou sonhado tem um poder comparável às desilusões e anseios presentes nos filmes referidos de Pedro Costa. A orfandade é lugar de abandono, deambulações, magia e terror do inaudito que surge e se agiganta sem aviso, e Bill Douglas, secamente e liricamente, utiliza-se do manancial vasto e sempre por desbravar do cinema e da sua técnica para nos devolver o estado de candura inerente a essa idade. Nunca desprezando o genuíno classicismo, utiliza a escala de planos e a profundidade de campo necessária a cada evento, assim como a subjectividade e a temperamental fusão entre a fixidez e o varrimento; já os ímpetos sonoros, carregados de rugosidade e personificação assustadoramente orgânica, em correspondência com o acolhimento do génio da natureza, essa imprevisibilidade vulcânica do indominável, colocam estes filmes no campo liberto e fulgurante do que se acostumou chamar modernidade - constituição de um primitivo inclassificável. "My Childhood" atinge o máximo de lirismo nas cenas onde o comboio promete paraísos outros ou nos campos ventosos onde se ganha um Pai, apelo do desconhecido e da libertação calorosa que pertence à família de Jean Vigo (o plano da almofada esventrada no segundo filme é prova da consanguinidade); e chega ao máximo de drenagem e de silêncio nesses afectos subtis ou negados, nos abafamentos que potenciam a fuga do seio progenitor estilhaçado, quadros absolutos e ruído em surdina que reenviam para Robert Bresson. Entre embates corriqueiros e passeatas transgressoras, desemboca-se no longe, que é o destino da criança no plano final, recomeço ou destino a todos prometido. "My Ain Folk" (1973), filme do meio ainda antes de sequela, está ainda mais cravado de mistérios e de circularidade, levando-nos até vias-lácteas insondáveis - a cena da aula é apenas uma parte do universo dependente - em rostos de espanto que alumiam dentro da sala de cinema iniciática, únicas cores que fatalmente se desvanecem. E do cinema não é certo que se saia, tal a ordem de acontecimentos e de visões que decorrerão no suposto real. Ainda mais sozinho e emancipando-se cada vez mais do irmão mais velho, o miúdo que acompanhamos vai, para além de continuar boquiaberto com as confusões e misérias dos crescidos, descobrir que as pessoas morrem, que a morte existe e que talvez seja a meta última e assegurada. E é dessa luz que rasga uma fenda e ferida para um sempre que brotará a luz descarnada sobre os olhos desprotegidos desse ser ainda novo demais. Mineiros e camponeses, sinais de uma Escócia rural - dados pela música exígua e por outros dados reconhecíveis - claridade estelar e negrume inescapável, deriva entre os avós e mais Pais inventados e fieis, o movimento do filme permanece o movimento e fluxo grave e maciço da queda da inocência. Fatalmente, caixões entram e saem por janelas, acentuando o irreversível e a passagem, para tudo se deter na mais perene das conclusões, o aceitamento. Nos mais secretos recantos de "My Ain Folk encontra-se um miúdo e um Avô, escondidos para não se magoarem e tentarem a felicidade, debaixo da coroa de estrelas protectoras, fora de mapa e de cronologia, longe da doença do tempo. Rimando com o aceitamento e a lógica, essa marcha final em que tudo faz parte e comunga de tudo, os templos longínquos e a tradição em acção, o presente e os ecos, como em Yasugiro Ozu. Cinco anos depois Bill Douglas fecha com "My Way Home" o périplo de Jamie (Stephen Archibald), aqui mais do que nunca parecido com as atribulações e errâncias do Antoine Doinel que François Truffaut viveu com Jean-Pierre Léaud, legado natural de Vigo. Se no filme anterior entramos pela ilusão do cinema, neste será pela encenação e frontalidade teatral, no mais cerrado dos três. O teatro, o retrato familiar retido, a imobilidade e o regresso a casa como tentativa de todas as redenções. Mas a volta é breve, talvez porque as casas continuam umas iguais às outras, as disfunções caseiras irresolúveis, a respiração cortada. O paroxismo latente que a trilogia sempre meteu em centro arrebenta, para uma primeira explosão que será apocalíptica no término - a guerra entre o dentro e o fora, a casa impossível contra o desejo irreprimível, a ignorância e a morte. Jamie volta do orfanato decidido a ser artista, é recebido pela avó louca como um príncipe que merece o David Copperfield de Dickens, o irmão continua a projectar-lhe a sombra atordoante. Plana por castelos desfasados do meio, minas hereditárias e pianos quiméricos. Impõe-se o barulho dos adultos, esse ruído determinista, que o faz recusar a narrativa matricial em direcção à alma, numa ascese que quebra toda a estética e ambiência passada rumo ao interior. Das estrelas do segundo tomo passa-se para as pirâmides, desertos e enigmas ancestrais na terra, e Jamie entrega-se ao exército sem guerra e com tédio para auscultar as profundezas da vastidão humana e do natural em conjugação. Aí, as repetições e a repercussão, o pequeno e o incomensurável, os horizontes rasgados e o nada próximo, o quente e frio indestrinçável, convergem num ponto e num lugar limite para a grande explosão advir. O dentro, a casa, as paredes, as fundações. Abalo último, vilipendiação da matéria, criação de um novo mundo, renascer, Acto de Primavera e eternos retornos assegurados. Jamie ficou, como qualquer um, entregue a si. Bill Douglas partiu do berço de "My Childhood", passou pela condição onírica do Cinema para acabar no mais mítico dos palcos ou jardins da nossa existência. Foi da infância ao fim dos fins e atingiu o reinício. A juventude do mundo e o peso dos séculos e séculos. Para nos deixar a imagem mais acabada da solidão e da memória. Por entre os círculos e os elos e o sumo da Maçã partilhada.


Texto escrito para o catálogo: "Nos Caminhos da Infância", ciclo realizado no CAM (Fundação C.Gulbenkian) e programado pela associação Os Filhos de Lumière.

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