“Gus died alone, as he had mostly
lived, in Greece on January 29 at the measly age of 45 from the
complications of untreated diabetes. His death coincided eerily with
the 25th anniversary of the Tet offensive, the campaign so
graphically described in The Short-Timers.” - “The Killing of Gus
Hasford”, Grover Lewis, LA Weekly, June 4–10, 1993
Neste babilónico reencontro e
agradecimento (mais do que obituário), em tamanho e em generosidade,
Grover Lewis fez tudo para evocar o mais inteiro possível o grande
escritor que possibilitou a Stanley Kubrick o seu “Full Metal
Jacket”, contando pequenas histórias das milhentas que o rodearam
efectivamente e em mito, tentando fazer entender aos outros e
perceber ele ainda a complexidade e a riqueza de uma sensibilidade
aflorada, um temperamental esquecido em vida para além das fitas de
cinema e dos interesses publicitários - “It's like fairy gold, the
leprechauns' gold. I don't think I ought to make too much money.
I'd just sit around all the time reading my Civil War books. “,
diria novamente Hasford como nos fuzileiros ou como numa das suas
bibliotecas que eram a sua casa. Morreu sozinho, preferindo o
desmesurado e o longínquo, a sua cerveja e os seus milhares e
milhares de livros, a qualquer remédio ou sujeição imposta. Mas
basta voltar à sua demanda e sentir do ódio e da paixão em estado
puro que faz qualquer grandeza com ou sem ordem - “Pode ser-se um herói durante algum
tempo, por vezes, se deixarmos de pensar em nós durante o tempo
suficiente, se nos estivermos nas tintas.”
“In the tradition of Stephen Crane,
Hemingway and James Jones...”, cito ainda Grover, “The
Short-Timers” é de uma dureza e de uma tensão que não permite
julgamentos aos leitores de sofá que não tenham que ver com a prova
física e psíquica que se experimenta na cadência do presente
humano e infernal em propagação. Crane, Hemingway ou Jones, homens
do limiar, mas Gustav Hasford conserva uma voz e uma presença
únicas, e não foi à folha para provar que domina melhor os
substantivos cortantes do que os adjectivos gloriosos, mas amarrou
nelas e disparou constantemente com o que tinha à mão ou com o
necessário, sendo piedade e emoção as resultantes do instinto
acossado. Ou se entra no turbilhão de uma escrita incisiva como as
balas e os fogos tracejantes que devoram da terra até aos nervos
oculares e cerebrais parando ou não parando na madeira ou nas folhas
das árvores que nos cedem o papel, ou legitimamente se atira a
toalha ao chão e não se está para isso da mesma maneira que não
se está para qualquer guerra desse formato. É uma tarefa hercúlea
e será o mais perto que se estará dos treinos e das provas de
recrutamento antes do palco demencial já sem margem para erros, num
epicentro da competição vil, e há que reformular, redimensionar,
ajustar e desajustar os conceitos de realidade e de lógica; para se
sobreviver, quer dizer, para se continuar no livro. Primeiras
páginas, depois de Walt Whitman, de Michael Herr e de John Wayne, ou
sempre com eles, e o leitor incessantemente à procura da causa e do
efeito, do nexo que lhe possibilite estar seguro, qualquer fórmula
que permita encaixar e avançar e perceber os horrores, o busílis,
as equações trucidantes; até ter de jogar fora capas e toalhas e
protecções corriqueiras, num entendimento férreo e de nervos em
franja - não há lógica nenhuma, eis a questão. “Depois da minha
primeira morte confirmada, comecei a compreender que não era preciso
compreender. Aquilo que fazemos é aquilo em que nos tornamos. As
implicações de um momento são confundidas pelos acontecimentos do
momento seguinte.” E etc., há que aceitar alguma coisa da
lengalenga dos soldados que afirmam como quem cospe da rotina e do
ofício da morte; “A guerra é feia porque a verdade pode ser feia
e a guerra é muito sincera”.
Não há lógica e uma das soluções é
deixar-nos ir no arrasto dessa sonoridade metálica que expõe todas
as possibilidades da nossa natureza, música maldita em que “cada
tiro é uma palavra pronunciada pela morte”, sinfonia do indizível
“rolando sempre em frente, para sempre, ao som da negra poesia
mecânica do ferro e dos canhões”. Hasford, rigoroso e lúcido não
perdoa uma e essas ambiências que de catastróficas adquirem a sua
beleza, horrorosa ou simplesmente inata, nada tem que ver com
estéticas sugadoras do incomum, tratando-se de uma observação
directa embora implicada, límpida dentro da sujidade, contemplativa
sem contemplações. E não poderia ter ido ao Nobel ou ao Pulitzer e
derivados pois as palavras não seguem o curso dos ensinamentos e das
normas esperadas e confortantes, da escola ou do crítico literário
em sentido; as palavras só seguem a morte em acção, no mais antigo
dos processos, agora exacerbado. O inescapável momento medonho, a
alegoria e a recordação e o sempre, o riso com noite cerrada, Mary
Jane mamalhuda inseparável do sargento de ferro, a estupefacção a
volver-se costume, pão nosso de cada dia inerente ao Homem. “The
Short-Timers” acaba caminhando e acaba perpetuando-se. E é assim
mesmo.
♪ I don't want no
teenage queen.
I don't want no teenage queen.
I just want my M-14. ♪
Perda da inocência. Renascimento.
Cowboys. Violentação original. Nascença. Piadas. Índios. “Full
Metal Jacket” prova a possibilidade de vergar a natureza dos seres
e mesmo das coisas, torcer ainda a predestinação, gozar do
determinismo; a energia cinética a engravidar potência bastarda.
Pelo voz off do raso e matador Joker – certíssimo Miguel Marías a
enaltecer o bom uso deste recurso como privilégio do cinema – o
processo de desumanização e naturalização da morte vai do embalo
pop e da ironia até ao aterro e ao grito sepulcral, numa compreensão
do fundamental em Hasford que passa não por um processo linear mas
sim por uma circularidade que nos enleia no degredo e no abraço, na
merda e na coragem. Gomer Pyle, ou Leonard, é a representação ou a
espécime acabada disto, pois começa como soldado inapto, passa a
topo de gama e acaba a matar e a matar-se ainda na América – o
Vietname na América, portal do realismo e da intelligentsia
metafísica. Só que a segunda parte do filme, já no Vietname puro,
torna-se a América no Vietname, o que também quer dizer o Homem a
ocupar o que deveria deixar estar em sossego, ali ou no planeta mais
distante, utopia sem nome, choro infinito. O olhar derradeiro
adquirido até à velhice pelo já profissional Joker, a profundidade
e a violação ganha pela morte do próximo perpetrada de frente,
ata-se ao diabolismo de Gomer Pyle, sabendo-se que basta perder o
medo para o Tudo estar em aberto. Na carnificina com que a primeira
parte fecha e na outra que não fecha o filme mas que regressa à
anterior, que rima com ela em impossível desacordo, Kubrick atinge
um Apocalipse que nada tem a ver com simbolismos canónicos mas sim
com algo muito preciso, na guerra licenciada ou na da calada
política, nos compartimentos culturais como nos mexericos
civilizados – o coração e os sentimentos em elipse, duros e
mortos como a resposta bruta da técnica e dos recursos utilizados
para o enforme. E eles continuam a andar em frente. Ainda. Sempre em
frente. É assim mesmo.
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