O silêncio e a fúria -
notas sobre alguns irmãos diferentes.
Visto agora “All the
President's Men” dispensa candidamente a América de Nixon e o
escândalo em causa para ser absolutamente um filme sobre a obsessão
de dois homens por uma verdade. Quando a personagem de Robert Redford
começa a escrevinhar e a personagem de Dustin Hoffman o começa a
corrigir, a primeira não fica zangada pela segunda estar a querer os
louros, mas somente por não lhe ter dito a coisa de frente. A partir
daí não interessa o génio autorístico mas somente, e é tudo,
juntar as peças que preencham o puzzle lógico. Uma correria entre
fantasmas, medos, muita escuridão e ruído que é o caminho árduo
do mal para o bem, da cegueira para a claridade, da injustiça para a
justiça; seja como for, ideologicamente ou moralmente, a luta
imemorial dos opostos. Alan J. Pakula e Gordon Willis não traem nada
nem por um frame, acatam os silêncios e afastam o embalo musical,
acolhem a atmosfera ao invés da ilustração, implicam-se no
pormenor e no instinto para alcançarem um geral no trabalho e na
constatação, o mais límpido possível e sem margens para
desconfiança. O zoom final antes do veredicto e da História, o suor
a entranhar-se nas aparências, o empenho a estilhaçar o embuste, as
insignificantes personagens de Redford e de Hoffman a calarem o
espectáculo global, é a prova de que a persistência e a dúvida
são um par tão bonito como os dois em acção, fasquia sagrada dos
muito antigos em espaços remotos. Que se pode pagar tão caro como
toda a solidão que os envolve na cruzada, sem mulheres, sem “vida”
digna das aspas, até sem carreira recomendável. Somente a pulsação
da verdade algures entrevista sem pedido.
A lógica ou a congruência
da obra ou desobra final de Robert Aldrich mede-se e une-se pela vida
das coisas, isto é, de que raio são feitas e como trabalham. “The
Legend of Lylah Clare”, não tão derradeiro e o mais funerário de
todos, mete em discórdia a carne passada de uma estrela do cinema e
os quadros em cima dos quadros antes da técnica do split screen ser
ensinada nos cursos de artes e de ensaio, e o efeito nunca se torna
vedeta mas antes descarna sem possibilidades de remissão o declive
central – não se aceitando as rugas, como não se aceitando o
tempo, aceita-se à força os cacos das máscaras quebradas. “The
Longest Yard” poderia ou não poderia ser apenas um cavalo de
corrida nas bilheteiras, ou um manual ultra avançado do filme de
1968, só que veja-se: 1) a sequência de abertura, onde se capta
pela primeira vez um cigarro, a bebida incendiária ou salvadora, os
vícios que não estes e a colisão do sexo com o permanente, sendo
que toda a questão da película e do analógico surge sem retórica
e tão em tudo ou nada como num diálogo entre Quentin Tarantino e
Paul Thomas Anderson; 2) a troca de olhares e de fundos e de vísceras
entre Burt Reynolds e Harry Caesar, onde de uma só vez os
compromissos e a honra são tão consanguíneos como quando o segundo
disse aos negros da sua raça que a irmandade existe muito para além
disso; finalmente: o contraluz e a saída para o sol já em cima dos
créditos, caminho para uma glória escrita nos altos, isto é, muito
no dentro, sem actas; Conclusão: não se trata de um fresco glorioso
e épico pela comunidade com fraternidade revestida como o atingido
por Ted Kotcheff em “North Dallas Forty”, onde Nick Nolte entra
simultaneamente nos terrenos da selvajaria e da hagiografia além
pecado, mas é evidentemente um coração a salvar no caos. Em
“Hustle” há um polícia bruto e uma prostituta delicada, ou um
delicado polícia e uma prostituta ainda mais brutal, mas a maneira
como os corpos de Reynolds e de Catherine Deneuve encaixam tão
perfeitamente como se magoam sem definição no quotidiano, são o
reflexo dessa luz sumptuosa fornecida pelas cores e pincéis dos
anjos dessa terra mítica, ou de entidades similares por eles, em que
os dourados dela e o moreno dele perfazem o tom singular e único
permitido a qualquer par que realmente exista, e então eles respiram
por inteiro nos espaços abertos ou na casa das bonecas, fazendo a
tragédia parte do acordo com a beleza - “Hustle” não é um
action movie e essa luz indefinível é mesmo tão potente como o “Cu
Cu Ru Cu Paloma” que vem do longe para o perto no Sirkiano “The
Last Sunset”, palco de punks negros e de crepúsculos ruminantes em
convívio antes dos movimentos radicais.
O composto final de “The
Candidate” é tão triste como aterrador e ridículo, sendo que
todo o excesso posto em cena e em baile por Michael Ritchie e Redford
se esvazia e se cala numa incerteza Bressoniana que poderia limpar o
esterco de “All the President's Men” se esse possível reinício
não estivesse minado pelas maquinações do acaso. Sendo que o acaso
não pode aí ser irmão do encontro e do par, ou seja, do belo, pois
é o cérebro abstracto que faz parte do grande circo e do
aplainamento que apela à degradação. Ou então, esse vazio tão
oco, ecoante, imprevisto e imprevisível é tão válido como o seu
inverso, e seja o que Deus quiser. Seja como for, está lá uma porta
e a fuga, a tranca e o descaramento.
Homens de pé pela sombra da
dúvida, de onde o tema e o presente são veios, como pregas ou
órgãos, desse espectro. Sendo a verdade, pedra de toque que alguns
reconhecem sem dicionário ou bíblia, a gravidade que os segura.
Tudo.
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