sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

aula de cinema



A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Souza-Cardozo. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.
Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor. E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça, pela própria natureza da sua poesia. Como Antígona, o poeta do nosso tempo diz: Eu sou aquele que não aprendeu a ceder aos desastres. Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas, a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: que não somos apenas animais aguçados na luta pela sobrevivência, mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.

Ó Sofia, se eu fizer um balanço sobre o que tem sido a minha vida, no fundo, o balanço que eu faço é exactamente o balanço que fiz há muitos anos quando escrevi O Coral, que é isto: Creio na nudez da minha vida. Eu não acredito na biografia, que é a vida contada pelos outros. No fundo, a única biografia que eu tenho é a que está na minha poesia.
E essencialmente, aquilo que eu procurei, foi esse espírito de nudez, foi pôr-se em frente de cada coisa, como se ela nunca tivesse sido vista e começar a olhar desde o principio, como se fosse o primeiro dia do mundo, e no fundo quando eu digo, "creio na nudez da minha vida" é a mesma coisa...
em "Sophia de Mello Breyner Andresen", de João César Monteiro.


(O filme é tão belo e tão forte como o mais belo Peleshian ou o mais belo Barnet. Em 1969 e com 17 minutos, Monteiro já era o maior.)

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom, o João era/é grande. vou procurar esta curta!