domingo, 31 de agosto de 2008

Em Les Dames du Bois de Boulogne, aquela cena, logo no inicio, em que Agnès (Élina Labourdette) dança sensualmente para os seus admiradores. Lembrei-me que poderia funcionar como essência da arte de Robert Bresson. Algo que se pudesse mostrar a quem nada dele conhece.
Temos o distanciamento, a depuração e a frontalidade, o minimalismo em surdina, etc. E lá atrás, nos fundos da imagem, está como que a limpeza exercida. Quase vislumbramos o musical americano e a excitação Minnelliana (por exemplo), mas Bresson dá-nos sempre o contra campo, e o que temos é, como sempre, a arte de nada mostrar e de tudo ver mais claramente.

sábado, 30 de agosto de 2008

Heaven's Gate, Heaven's Gate...II

…esqueci-me de te perguntar uma coisa…

Chuta…

Aquele filme com o Brad Pitt, The Assassination of…

Não, esquece isso pá, não tem nada a ver. Não, não faz lembrar Cimino, nem espectralmente. Há uma grande, uma incomensurável distância entre exceder organicamente os limites da tela, essa arte de captar tanto as landscapes como o homem (Ford e o seu panteísmo), através de uma luz tão vibrante e logo tão lírica e rugosa, ou seja, algo em conformidade e em consciência com a matéria, o meio e o humano. Bem diferente da arte desse tal Dominik, sim, um tarefeiro tão tarefeiro como um Nolan, que nada é mais do que decorativismo fútil e bonito (sem dúvida), como um quadro que fica bem na parede de casa, não ofende ninguém e é agradável. Sabes a diferença entre o orgânico e o inorgânico? ai está.

Mas…

Mas nada. Já em The Deer Hunter era assim. O filme arrebentava e estilhaçava-se todo com a violentação sobre a exposição estandardizada e académica. Digo-te uma coisa, Vilmos Zsigmond é o mestre da subexposição. É preciso ter tomates. Queimavas os rolos 35mm assim abaixo, ainda por cima sem teres garantias do laboratório? Não me lixes… No The Deer Hunter há cenas em que quase não vês nada, cenas incrivelmente granulosas, e isso é uma benção. Em Heaven's Gate não sendo tão violento, acontece o mesmo, mais atmosfericamente suavizado, mas o radicalismo é o mesmo, ninguém conseguiria aquela luz divina como está conseguida no princípio do filme, aquilo é angelical, aquilo é Rembrandt…a atmosfera é tal que consegues cheirar.
Sabias que existe uma versão em que fizeram o blow-up para 70mm. Ahah, não me lixes, é como o Dial M for Murder em 3D.

Agradeço-te…

Só uma coisa – o som. Como é que ninguém notou que o som é do outro mundo. É o som que todos os alunos de cinema deveriam estudar, este radicalíssimo trabalho sonoro, ao invés de estudarem o do La Haine, esse excremento do Kassovitz.
Estás a ver o praticado pelo Michael Mann em termos visuais no Miami Vice? A maneira como ele transportou para as ruas, logo para o inferno, uma máquina digital de estúdio de dezenas de kilos, estás a ver?
Cimino fez a mesma coisa com o velhinho do nagra. Gravou o som de um épico com aquilo e trabalhou-o virtuosamente para o colocar vivo, descarnado e rugoso na banda oposta à da imagem. É um emaranhado, um crispamento sonoro.
Lembras-te da cena de patinagem onde Huppert comemora os anos? É o cúmulo de um experimentalismo sonoro que se estivesse num filme de warhol, e não num fresco gigantesco, já seria arriscado.

E que versão preferes, a cortada e mais equilibrada e pacifica ou a total?

Total, é essa a palavra. Quanto maior melhor, isto pois não acho que aja desequilíbrio. Não há, de facto. Portanto é como um Griffith, quanto mais tiveres mais o cinema será uma arte. Por mim acabou.

Heaven's Gate , Heaven's Gate ....

Revi outra vez Heaven's Gate do Cimino, aquele que é facilmente o melhor filme dos anos 80, pois claro. Pronto, o melhor junto com o They Live do Carpenter e o Year of the Dragon, curiosamente, ou não, também do maior cineasta americano surgido nos anos 70.

E então que achaste?

O que achei? Bem, o mesmo que achei das outras vezes, mas desta vez ampliou-se em mim um sentimento de gravidade que nem sei muito bem como explicar.

Diz lá, diz lá…

Bem, aqui há uns meses lembro-me de ter escrito que era a maior coisa que o cinema tinha produzido depois de John Ford. Pelo sopro épico e trágico, pela coragem e ética na maneira como se explora e dá a ver a História de uma América que foi realmente uma história de sangue. Pela forma como Cimino utiliza as escalas, deixa perpassar luz pelos céus e pelas brechas e pelo modo inaudito como enclausura, brutalmente, as personagens na sua mais feroz escuridão. As cenas na cabana, por exemplo. Bem como os movimentos de câmara e os ângulos mais desmesurados e mais hieráticos desde o bom velho Ford.

Muito bem, mas não achas que a sua mega….

Esquece, isso é treta tão marxista como fascista. Deixa-me só partilhar isto. Há uns tempos, numa Fnac bem famosa, não foi em Portugal mas isso nem interessa, peguei no livro do Jean-Baptiste Thoret sobre o cinema americano dos anos 70.
Nem o comprei pois a vida está difícil meu amigo. Mas bom, as últimas largas páginas são dedicadas ao melhor filme dos anos 70, The Deer Hunter. E não é que o homem põe-se a tecer uma inacreditável e fabulosa comparação desse filme com o 7 Women do Ford, o mais Mizoguchiano dos filmes do mestre e, já que estou nesta, o melhor filme dos anos 60…
Fiquei banzado, como diz a personagem do Catcher in the Rye. Resumidamente ele diz que o filme do Ford é a maior das metáforas a uma América fechada em si mesma, hermética e vitima das suas politicas, das suas atitudes. E logo faz a ponte para o filme de Cimino. Uma e a mesma coisa – e mais coisas que já se varreram da memória – e estava traçada a heritage.
Percebes meu amigo, percebes…no Heaven's Gate vamos ainda mais longe, mais fundo, mais literalmente sobre o temperamento destes homens, da sua fasquia moral e do seu negrume.

E o que foi que se ampliou em ti desta vez…

É um pouco difícil explicar, mas, merda, foi tão forte que quase não suportei, e aqui lembrei-me, mais do que Ford, do Leos Carax e do Pedro Costa. È aquilo a que o Carlos Melo Ferreira chama de arrebatamento lírico em Carax. Mas a pose e o heroísmo está mais nos ângulos de aço do Costa e da pose do Ventura, mas também na do John Wayne.
É um lirismo que dói, algo que se solta da humidade e da quentura opostas naquele mundo. Humidade de veludo naquelas casas, uma ardência estranha nos comboios e nas caminhadas da carroça. Lembraste-te quando a carroça caminha contra o fundo que é o rio? É como ferro quente na água gelada, ou se quiseres ir para o cinema, é como um qualquer actor do Ford num contra-picado apontado ao céu ou à neve.
Como te disse é coisa difícil de transpor por palavras, são ambiências, temperaturas e climas, dramaturgias se quiseres, representativas de uma certa ideia da América mitológica e onde o sonho de me transportar é imediato, mas…a impossibilidade e a razão é imediatamente imposta, portanto…percebes-te?

Não muito, mas…

E podia-te falar de mil e uma coisas inadjectiváveis, mas reforço a ideia de que a cena do baile inicial é um dos maiores milagres de ritmo e découpage da história dos filmes. É Ford e Visconti reinventados, e mais não te digo, aluga e diz qualquer coisa. Mais palavras são francamente desnecessárias, a não ser para dizer que Isabelle Huppert é verdadeiramente o milagre feito mulher, quem disse mal dela deve ser…

Ok, Ok…tu lá sabes, e o Coppola e o Spielberg, ahh…e o Ridley Scott do Gladiator e do Kingdom of Heaven?

Quanto ao último nome nem te vou responder, e tens sorte que não te parte a cara. De resto, eu gosto muito da grandiosidade e do tom operático do Coppola, mas repito, as escalas, ambições e saber são de outra galáxia, bem como existe aqui um acrescento de vitalidade, não só no sentido de fresco, mas de deixar entrar vida e respiração (Pedro Costa lembras-te…) que não noto tanto no Francis.
Quanto ao Spielberg, as suas tangentes ao género são tão cinéfilizadas, tão estetizadinhas e pastosas que também não há conversa. Estamos conversados.
Degas
As Portas do Céu

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

A máscara da morte branca

A meio caminho do Grande Guinol e do documento clínico, situa-se esta obra de um dos grandes poetas do ecrã.

Se existe no cinema francês uma tradição bem marcada pelo fantástico, de Méliès a Cocteau, não podemos deixar de citar Georges Franju no rol dos grandes autores desse género. «É o único realizador insólito desse tempo», dizia a seu respeito Henri Langlois (a quem se juntou para fundar a Cinemateca Francesa). Os filmes de Franju (1942-1987), são bastante insólitos, estranhos e angustiantes mas distinguem-se também por um rigor de escrita, uma fluidez narrativa, um apego ao cenário e aos objectos, que encontraram primeiramente o seu campo de expressão natural no documentário.

Estreando-se na longa-metragem em 1958, Franju nada perderá desta acuidade de olhar, ligada a um forte temperamento de visionário. Todos os seus filmes têm, como ele próprio afirma, «o mistério, o fascínio, a profundidade de um buraco negro».
O seu melhor filme continua sem dúvida a ser este Les Yeux sans Visage, em que o realizador parece imitar à partida um filme expressionista alemão qualquer para nos fazer cair de repente no realismo mais glacial.

O que na verdade mais choca neste filme não são os médicos sádicos, os subterrâneos obscuros ou os cemitérios profanados; mas uma enfermeira negra a entrar na sala da morgue, os bisturis rasgando uma ferida, a necrose de um enxerto de carne humana. Complacência alguma no terror, mas uma condensação da forma, próxima da catalepsia.


* Eugen Schufftan

A magia de Les Yeux sans Visage deve muito ao trabalho do chefe de câmara Eugen Schuffman (1893-1977), um dos grandes mestres do «preto e branco». Colaborou com cineastas diversos como Fritz Lang (Metropólis), Marcel Carne (Cais das Brumas), Mas Ophuls (Werther, Piedosa Mentira), Douglas Sirk (Tempestade de Verão) Robert Rossen (A Vida é um Jogo, Lilith e o seu Destino), etc.


Claude Beylie

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

o poeta sem "pais" nem "filhos" (muito menos "filhos")

mágicos, anarquistas e foras da lei.

...e não deixa de ser monstruosa a sua concisão, o seu timing e esse virtuosismo demencialmente clássico de J.C.

James / Abel

«Se a palavra tem um sentido e sejam quais forem as divergências que possam surgir na sua interpelação, a partir de um certo acordo parece-me que o neo-realismo se opõe em primeiro lugar essencialmente não apenas aos sistemas dramáticos tradicionais, mas ainda aos diversos aspectos conhecidos do realismo – tanto em literatura como no cinema – pela afirmação de uma certa globalidade do real. Retirei esta afirmação que me parece justa e cómoda o abade A.Ayfre (Cfr. Cahiers du Cinéma, n.º17). O neo-realismo é uma descrição global da realidade por uma consciência global. Quero dizer com isto que o neo-realismo se opõe às estéticas realistas que o precederam e especialmente ao naturalismo e ao verismo, dado o seu realismo não incidir tanto na escolha de assuntos como na tomada de consciência. O que é realista em Libertação é a resistência italiana, mas o que é neo-realista é a realização de Rosselini, a sua apresentação ao mesmo tempo elíptica e sintética dos acontecimentos. Ainda noutros termos, o neo-realismo recusa-se por definição à análise (politica, moral, psicológica, lógica, social ou tudo o que quiser) das personagens e da sua acção. Considera a realidade como um bloco, não decerto incompreensível, mas indissociável. É em especial por isso que o neo-realismo é senão necessariamente antiespectacular (ainda que a espectacularidade lhe seja efectivamente estranha), pelo menos radicalmente antiteatral, na medida em que a actuação do actor teatral supõe uma análise psicológica dos sentimentos e um expressionismo físico, símbolo de toda uma série de categorias morais.»

A.Bazin

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Porque The Straight Story, pode não querer dizer história simples. Pode referir-se apenas à história de dois irmãos de apelido Straight. Mas, devido à suposta ou real simplicidade, gerou uma reacção que talvez perversamente Lynch tenha esperado (quiçá desejado) mas muito se parece com histórias semelhantes dos envagelhos apócrifos, das Vies Imaginaires de Marcel Schwob, de Dunne (An Experiment With Time), ou da eventual leitura cifrada dos textos básicos de Kiekergaard.

Ou seja, seria um filme a ver com a consciência de que havia outra história, por detrás da história contada. Os críticos, tão habituados desde Eraserhead (1977) ou sobretudo desde Blue Velvet (1986) a buscar recônditos sentidos em Lynch, que cada vez mais se distanciava do que se chama uma história com pés e cabeça (Mulholland Drive, 2001 bateu as mais vastas expectativas) perante um filme que aparentemente não lhes pedia muito, nem da imaginação nem dos miolos, começaram a retorcer os referidos sentidos, como nas histórias que Schowob gostava de contar e Borges também.

Se tinham tentado “clarificar” os outros filmes, aqui ficava bem “obscurecer” este, não fosse o rei, agora tão visivelmente nu, estar a enganá-los com vestes do mais requintado fabrico e desenho, mas tão requintado que eles eram incapazes de as ver.

E aqui para nós, e que não nos ouçam lá fora: conhecem história mais verosímil do que a dum velho cardíaco de 73 anos, que atravessa sozinho 500 quilómetros ao volante de um cortador de relva fabricado em 1966 e a uma velocidade de 5Km à hora, para ir fazer as pazes com um irmão, com quem se zangara há dez anos e que nos últimos 50 não vira mais de cinco vezes?

Se alguém me viesse contar essa, eu olharia para a criatura com olhos mais estranhos do que aqueles que lanço aos carrascos e vítimas de Blue Velvet ou às personagens da história de Laura Palmer e de Twin Peaks. Em todos esses filmes há coisas mirabolantes, goste-se ou não de Lynch? Inegavelmente há. Mas a mais mirabolante é a história de Alvin Straight, em que se despediu das telas, com pasmosa criação, o velho Richard Farnswort que toda a vida esperou por esse papel.

Porque é que, se o é, não o parece? Porque estamos sempre muito mais atentos a imagens insólitas (os surrealistas sabiam isso tão bem) do que a histórias insólitas (Lautréamont, era um monstro disforme e malquisto, Emily Brontë escrevia para púdicas donzelas). Mas, sobretudo, porque, se as “histórias da carochinha” tiverem por desfecho o casamento da dita com o João Ratão, salvo a tempo de morrer cozido e assado no caldeirão, nós ouvimos com assentimento: se o rato, vestido de fraque, cair ao fundo da panela, à busca da chouriça, e dele sair com queimaduras de terceiro grau, a coisa tem foros chocantes.

Imagine-se que Alvin Straight morria de enfarte durante a viagem ou era marrado por um desses veados que ninguém percebe donde é que vêm. Quinhentas páginas de ensaio para explicar o necessário encontro de Alvin com os veados.

Mas como Alvin sai de casa para encontrar o irmão, o irmão está em casa, o recebe bem e fazem as pazes, não são precisas páginas nenhumas. Apenas dizer que, naquele dia, Lynch quis mostrar que até sabe fazer filmes “normais”, como nos bons tempos do cubismo se dizia que Picasso pintava “realista” para mostrar que sabia pintar.

Nenhum de nós fica a saber se, na zanga de há dez anos, teve razão Alvin ou teve razão o irmão. Mas um dia vê-se a morte mais perto, e, com citação ou sem citação, ouve-se a passagem envangélica que nos diz que se tens qualquer coisa contra o teu irmão, vai e reconcilia-te e só depois volta ao Templo do Senhor. Acontece que é a América e que as yellow roads se medem por centenas de quilómetros (toda a deep América vem deep deste filme, em mais uma das muitas rimas deste ciclo). Acontece que os dois irmãos são pobres e, senão é caminho que se faça a pé, talvez se faça de cortador de relva, dando tempo e tempo para tudo e todos vermos dessa América. Acontece que até há noites à conversa, no quentinho duma fogueira, noites que nos confortam, na certeza que o mundo é melhor para os bons, mesmo se nada alcançarem com essa vontade. Estamos fartos de tais histórias da carochinha? Contadas de modo tão straight, não, não e não. O que vemos neste filme é um arquetípico melodrama. Está lá tudo: a família, a doença, a viagem, os happy-end, o amor, o amor e o amor. É um american melodrama, pois nada disto seria possível se não fosse na América e se não fosse com americanos.

The Straight Story é também um “filme fantástico”? Todos em dado momento o são. “Arrependido, maravilhado e resignado”, diz, no final, um dos protagonistas. É só isso que devemos estar, quando o amor é omnia como neste filme é.

João Bénard da Costa

"O Belo é o Vero e o Vero é o Belo"
Fiquei bastante impressionado com a força dos planos construídos por Nicolas Klotz em La Question Humaine. Impressivo como tudo estando ao serviço de um vazio e de convocações fantasmáticas é tão compacto, tão carregado – plano a plano, e eles são secamente poucos – de tensões e fricção.
Nem é o grande mistério que no final me seduz, sim, como diz o título, a questão humana e a maneira como os efeitos vão alastrando na epiderme.
Por esta via o filme é uma resposta ao bem mais pacífico e afinal tão rotineiro (na altura não me pareceu) Michael Clayton, aproximando-se dos abismos infernais do Fuller de Shock Corridor.
Movement should be a counter, whether in action scenes or dialogue or whatever. It counters where your eye is going. This style thing, for me it's all fitted to the action, to the script, to the characters.

Samuel Fuller
Quels films vous ont intéressé ces dernières années ?

Certains qui ont eu peu de succès, qui résistent. Ils sont indépendants. Des films comme Toutes les nuits d'Eugène Green. Je ne sais pas s'il réussira les suivants, mais celui-là est intéressant. Je le mettrais dans un top 100.

Il y a donc de bons Américains...

Oui, Manny Farber, c'est un bon Américain. Il y en a d'autres. Mais je ne tiens pas spécialement à critiquer le cinéma américain. D'autant plus qu'il existe aussi une "qualité internationale", où tout se ressemble. Ce sont les films qu'on présente dans les festivals comme Cannes. Les films de Kiarostami, Gus Van Sant, Elia Suleiman... C'est une idée assez commune du cinéma d'art. Je vois ça très bien avec mon prof de tennis. Il n'ira jamais voir un film de Luc Moullet, dont il ne connaît même pas le nom, mais il va voir Elephant. Ça correspond à l'idée qu'il se fait du grand art.

Et en quoi, Kiarostami et Van Sant, est-ce la même chose ?

En tout cas, ça l'est devenu. Gus Van Sant n'a jamais fait un film aussi beau que Et la vie continue. Mais Ten ou Elephant, c'est la même chose. Du cinéma intellectuel, où tout pourrait se formuler par de la parole. C'est des mots. Pour faire ça, il n'y a pas besoin de caméra. Dans le gros cinéma hollywoodien commercial, il n'y a pas besoin de caméra, mais il y a une telle puissance de feu ­ comme disait Staline : "A force de quantité, on finit par écraser la qualité" ­ que ça produit quelque chose. Je vais voir ces films, j'arrive à les oublier tout de suite, ou alors je n'y arrive pas et je m'en veux. Mais pour revenir à Ten et Elephant, je dirais que c'est du sous-Antonioni. Antonioni est le cinéaste qui a le plus influencé le cinéma contemporain, et cette influence est délétère. On a l'influence qu'on peut. Paradjanov par contre n'a pas beaucoup d'influence aujourd'hui et c'est dommage.

Jean-Luc Godard

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Le Monde Vivant é um dos objectos mais insólitos desta década. Ponto. Ou Ponte. Le Pont de Arts, sendo já neste mundo, é igualmente estranho e secreto. Não vale pena dizer muito – toda a fascinação se encontra na visão dos filmes – a não ser que são os mais concretos e surreais, ou os mais hieráticos e místicos que se pode hoje em dia presenciar.
Pode-se ainda dizer que Eugène Green é o último grande cineasta que apareceu em França.

MOJICA

Aproveitando a apresentação de José Mojica Marins por Luís Miguel Oliveira, fica aqui a frase que eu sempre esperei ouvir, confidenciada pelo próprio Mójica a um amigo:


"a telinha é pra divulgar a telona"

(perfeito , perfeito para o tipo de arte que eu penso ser hoje possivél na telinha).

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Ne touchez pas la hache continua-me a deixar de rastos e sem reacção perante o restante cinema. (enfim, sobram poucos, mas são os do costume e pertencem à mesma equipa.)
É, mais uma vez, o seu filme mais noiseuse, possuidor daquela brutal secura no modo como imagens e sons se pegam, despegam e se confrontam entre eles. Uma agudeza formal que se relaciona sempre, mas sempre, com o meio físico e, acima de tudo, vive ao serviço do constante eterno retorno em que se esculpe cada imagem dos filmes de Rivette.

Esculpir é a expressão certa , porque se as imagens, esgotado o ciclo, irão nascer sempre aos primórdios, a atitude do Francês é como que encarar de frente o estado das coisas, esta crosta indefinível que possuem as imagens do nosso presente, e resgatar a candura.

Nunca gesto passivo – nem completamente anacrónico me parece – pois a noiseuse é de tal modo aplicada – esse combate das matérias – que os seus filmes são sempre os mais simples e os mais complexos, os mais primitivos e os mais modernos.

Um dia destes falo dos actores...não há palavras para Jeanne Balibar e Guillaume Depardieu.

O mais perigoso homem vivo, Dwan

domingo, 24 de agosto de 2008

Cineasta fabuloso, cineasta caído no esquecimento. Acho que já tinha aqui escrito sobre ele. É verdade. Apenas un delincuente, 1949, foi o último filme realizado pelo argentino Hugo Fregonese antes de embarcar para Hollywood. O próximo, One Way Street, do exacto ano seguinte, já contou com James Mason e certamente com outros dinheiros, apesar de ter sido fundamentalmente um cineasta de filmes série-b.
Mas este policial é algo portentoso e vital, tão fortemente iconoclasta como clássico. Ou como escreveu Serge Daney: "APENAS UN DELINCUENTE dá uma ideia do imenso talento do Fregonese de 1949, no seu período argentino. Trata-se de um filme policial, barroco e nervoso, que ainda tem um pé na estética do cinema mudo, mas já tem outro em Aldrich, com uma maneira de filmar Buenos Aires como se fosse Nova Iorque que dá à cidade uma presença alucinante"

É mesmo, peça tão poética, tocante e dinâmica como um mudo de Hitchcock ou de Walsh, e tão enérgico e estridente como o referido por Daney, ou como um Fuller ou um Scorsese (aquela organização temporal dá que pensar...) . É nesta linhagem que se traçam as virtudes de um grande estilista e de um cineasta igualmente tão preocupado com o sensível.

O importante aqui é que a mise en scene de Fregonese nunca entra em desvarios incontroláveis e divagatórios. Tudo é transmitido pela função natural da câmara e por uma visão e sensibilidade plena aquando do embate com as situações e com as matérias.
Neste aspecto o ressalvo para as angulações, subtilmente estilizadas nas acelerações, pacientemente atentas às variações e alterações a que o humano se submete.
Isto é um ponto de vista e isto é estar nos domínios plenos de uma arte, da sua história e das suas técnicas.

Que hoje em dia se eleve ao estatuo de génios nomes como Guillermo del Toro, Iñárritu ou Cuarón, ou seja, realizadores mexicanos que foram chamados para Hollywood, e que não passam de académicos a tentarem fazer moderno, muito moderno, também dá para comparar a evolução da politica de contratações da grande máquina de cinema americana (analogias aparte).

sábado, 23 de agosto de 2008


Esquecendo tudo o resto - qualquer coisa entre Fritz Lang e Edgar Hopper.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

R-i-d-í-c-u-l-o

"O que diferencia Del Toro da concorrência é o pé que ele tem em ambos os lados do Atlântico, alternando filmes "mais pessoais" com grandes produções de estúdio - e impondo em todos uma marca pessoal muito forte que encaixa na perfeição na "política dos autores" que a revista francesa "Cahiers du Cinéma" lançou na década de 1950, e que, para o bem e para o mal, se tornou desde então na base de quase toda a crítica cinematográfica moderna."

Realmente aquele movimento francês tem as costas muito largas, para o bem e para o mal. Só não é o estado da crítica em Portugal pois existem outras coisas, e perto…

(andávamos todos a brincar e o Fragata também encaixava perfeitamente.)
«Só há uma maneira de combater o espectáculo que mata, e o falso medo que nos fazem suportar. É mostrar o nosso verdadeiro medo, nos filmes, na poesia, na música. É a violência da forma. Eu estou convencido que andamos nesta terra de mortos, nos cineastas, para fazer o mal. O pior dos males possível. Devia ser esta a verdade histórica para qualquer cineasta contemporâneo. Sim, pode ser esta a minha herança..."Quando se fazem coisas destas, quando se pensa e se sente assim, vejam no que dá."»

P.C
......


…é isso, posso ser generalista, duro, fechado, etc. Mas o que faço é isso – mostrar o verdadeiro medo. O medo que certas coisas desvaneçam, se extingam.
E depois…não sou eu quem ando a fazer essas porcarias a que se tem a lata de chamar cinema, não sou eu quem ando com esses discursos semióticos, antropológicos, sociológicos etc., sobre o cinema e a televisão e os jogos de vídeo, também nunca utilizaria esse aberrante expressão de história generalista dos audiovisuais (ou coisa que o valha). Pelo menos com o fim subliminar que tais pessoas querem fazer crer.

Depois de estar a explorar demoradamente La Religieuse, não tenho dúvidas – Jacques Rivette é o maior dos metteur en scene. Já o era por esses anos sessenta, é-o ainda mais hoje em dia.
O maior e o mais grave, o mais vertiginoso, o mais radical. Comparativamente só mesmo os Straub. Existe uma incumbência própria inquebrável: limpar, limpar.

Limpar a porcaria toda e fixar-se na potência do mundo físico, do real.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

quando Stone* lixou tudo

Alguém num destes dias me convenceu a ver Natural Born Killers de Oliver Stone. Deste polémico americano gosto muito, muitíssimo, de JFK e de WTC. E então o que é NBK e o que representa?
Bem, simples e directo – é a maior merda dos anos noventa. É o mais exibicionista, fútil e pretensioso dos filmes, não tem nada lá dentro, a não ser a tal mensagem, muito moderna, muito em voga, que nos diz que são os media que andam a lixar isto tudo, a incitar violência, etc. Isto que pode ser a sociedade e os valores.

E embora concorde com a ideia, a maneira fascista, aleatória e dispersiva – mas paradoxalmente tão académica como o mais pastoso Ron Howard – como Stone trabalha as formas, desenvolve a narrativa e transforma os personagens, tornam este exercício de denúncia e de libertação num brinquedo perfeitamente inerte, coisa que não mete medo e muito menos deixa a pensar.

E que seja este o filme de uma geração de realizadores de videoclipes e publicitários (e de filmes) – porque o é, bem sei – mostra bem o estado como estas coisas das imagens estão. Mostra bem o que esta coisa poderia ter sido e só muito levemente, esporadicamente e nas margens o é efectivamente.
Mostra bem porque é que os produtos e as mercadorias andam todos iguais.
Também mostra o quanto esses realizadorzinhos estão enganados, e são tão inocentes, ao pensarem que são livres e modernos e no final de contas são miúdos impressionados e presos a um estilo que é tão fácil e que nada é virtuoso que nem dá para acreditar, não dá não.

*e não só ele, mas NBK é paradigmático.

Lucky Star, Frank Borzage

Falo de um filme dos anos 20? Falo de um filme dos anos 90?
Lucky Star é dessas duas décadas. Rodado no primeiro semestre de 1929, estreado a 20 de Julho de 1929, muito poucos o viram fora da América (e mesmo na América) no ano que teve uma terça-feira negra. Não por causa dela, mas por causa do som que ainda lhe faltava em tempos em que o bom do público trocava tudo por vozes e música fanhosas. A Fox (nessa altura Fox Films e ainda não 20th Century) tentou emendar a mão e lançou uma versão sonorizada à pressa. Não pegou.
Depois, o filme levou sumiço, como tantos outros desses anos fatídicos de 28-29 (fatídicos para os cinéfilos). Pelo menos, entre 1940 e 1990 (talvez mais) ninguém o conhecia de vista. «Missing film», era a seca menção, tão dura de engolir como «missing in action». Até que, em 1990, a Cinemateca de Amesterdão descobriu, nas caves, uma velha cópia em nitrato (das mudas) que para lá jazia. A 18 de Outubro de 1990, no Festival de Pordenone, recuperado e restaurado, Lucky Star ressuscitou. Eu estive lá, eu vi.
Depois (Janeiro de 91) o filme abriu o XX Festival de Roterdão. Houve Godard e Kazan, houve os irmãos Kaurismaki e Muratova, houve, até, uma integral de Nicohlas Ray. Mas, mesmo com Nick Ray, não atiro nem a primeira nem a última pedra aos resultados do referendo, como de costume organizado entre o público para designar o melhor filme da manifestação.
À cabeça, de longe, Lucky star, a maior das descobertas dos últimos anos.
Pouco depois (Fevereiro de 1991) Lucky Star veio até Portugal, onde nunca fora visto, e estreou-se em Lisboa, na cinemateca (onde queriam que fosse?) sessenta e dois anos depois de feito.
Quem esteve na sala, sabe porque é que é um dos melhores filmes da nossa vida.

Lucky Star é um filme de Frank Borzage (1893-1962). Borzage, como todos os cineastas americanos da sua geração, abordou muitos géneros. Mas há um em que ninguém lhe levou a palma: o melodrama. Mesmo Douglas Sirk (e Deus sabe quanto o amo) é menor ao lado deste maior. Mesmo Griffith, só lhe abriu os caminhos. Porque se Lucky Star, como outros melodramas dos finais dos twenties, não seriam possíveis sem Griffith (por exemplo, aquele True Heart Susie já aqui evocado), nunca houve corpos tão anímicos e almas tão carnais como na obra deste místico, por um lado muito religioso, por outro muito atento às correspondências secretas entre ritmos ocultos e aparências geométricas. Homem muito sabido em símbolos (nada a ver com alegorias) maçon cultivadíssimo, cultor exotérico. Os surrealistas não se enganaram quando o meteram na família, eles que tanto amaram The River, o filme anterior a este.
Lucky Star tem Janet Gaynor e Charles Farrel nos protagonistas. È um dos três filmes (com Seventh Heaven e Street Angel) em que Borzage dirigiu o par, outrora célebre, dos «America`s favorite lovebirds», como entre 1927 e 1934 foram conhecidos. Borzage criou esse par que, depois dele, mais nove vezes apareceu junto. Estranhíssimo par: ela, palmo e meio de altura, «piccina, tanto piccina, troppo piccina», como escreveu o meu heterónimo Ramperti, pintas na cara e nos olhos, mozartianíssima, assustadíssima (foi a actriz de Sunrise, de Murnau, do mesmo ano de Seventh Heaven). Ele, com quase dois metros de altura, um corpanzil imensíssimo, pés e mãos quase do tamanho dela e, lá em cima, uma cara simpática e imberbe. Corpo de quem morde, cara que não ladra.
Em Lucky Star, Charles Farrel chama-se Tim. Estamos em 1917, em um canto perdido da Nova Inglaterra. Décor minimal. Meia dúzia de cabanas, algumas colinas, muito nevoeiro, muito frio. Tim foi para lá quando para lá foi a luz eléctrica. E é quando está no alto de um poste a concertar qualquer coisa, que repara numa valente zaragata entra Mary (Janet Gaynor) e um calmeirão que a acusa de lhe ter roubado uma moeda. Mete o outro na ordem até descobrir que a miúda fizera mesmo batota. Mary não era só suja por fora. Era suja por dentro. E a primeira vez que se tocam é para Tim agarrar Mary e lhe dar uma data de valentes açoites no rabo. Açoites mesmo, rabo mesmo. Não estava a brincar, nem a ser meigo. Borzage sublinha-o com uma série de planos em que vemos Mary levar a mão a essa parte do corpo, mostrando bem quanto a sério lhe doeu.
A personagem começa uma das suas muitas transformações. Quando volta para casa rodeia-a uma fabulosa e irreal iluminação. A mudança dela proveio tanto do acto físico (a sova que levou) como da razão dele: pela primeira vez conheceu alguém que sai fora do mundo de enganos e mentira que até então vivera.

Mas Borzage sabe dar o tempo ao tempo e o espaço ao espaço. No alto do poste, Tim soube que a América entrou na guerra e para a guerra parte. Mary tenta uma nova aproximação, no dia dessa partida. Na omnipresente carroça dela (até aí puxada por uma pileca preta, a partir dai puxada por uma pileca branca) oferece-lhe boleia até à estação. Desta vez, é Tim que não a percebe. Responde-lhe que tem pernas para andar. Tê-las-á por pouco tempo. Na guerra (alguns flashes) fica sem elas. Paralítico. Dois anos de ausência.
E é de novo um acto físico e um acto de agressão que atira aquelas almas uma para a outra. Como quem se vinga da sova de antigamente, Mary atira-lhe uma pedra ao vidro da janela. Não tem resposta. Entra-lhe então em casa – pela primeira vez – e descobre a cadeira de rodas. Quando percebe, deixa cair a pedra muito devagar e fica a piscar os olhos, dividida entre a luz e as trevas, a emoção e o susto. Não disfarça nem espiritualiza. A personagem reveste-se de uma impressionante sinceridade, meio infantil meio feminina, e Tim, no assombroso feitichismo de Borzage, começa a limpá-la (lava-lhe as mãos) e a paramentá-la, com um lenço que tanto serve para a enfeitar como para lhe assoar o nariz. E é nessa cena que começa a chamar-lhe «Baa-Baa» e é nessa cena que ela lhe promete (enquanto recua) voltar amanhã, no dia seguinte, em todos os dias.
Se nessa sequência há um erotismo difuso, um erotismo explícito surge na sequência seguinte, de novo a dois, em casa de Tim. É talvez a sequência mais genial do filme e, porventura, de toda a obra de Borzage.
Começa com um balde. Tim decidiu dar um banho a Mary e a limpar de vez a imagem e o corpo dela. E são ovos o que usa para essa ablução, que a transforma também de morena em loura. À medida que a espuma aumenta e que a vergonha e a aflição de Mary crescem, sela-se a relação física entre os dois, sublinhada pelo plano magistral em que vemos a quantidade de cascas de ovo partidas. Tim começa a descer no corpo de Mary, que se lhe oferece. Mas, a dada altura, a evidência do corpo de mulher sobrepõe-se à da criança que até então vira nela. Detém o gesto de a despir e manda-a, para a profundidade de campo, continuar o banho que já não é capaz de lhe dar. Borzage abre, de novo, todo o espaço, para nos dar a entrever um pouco do corpo nu de Mary e um pouco do olhar que Tim não resiste a lançar sobre ela. E, desse banho, Mary sai mulher.
Tão mulher que é depois dessa cena que a mãe começa a congeminar o plano de a «vender» a um sargento que, num breve baile, Mary metera em muita ordem.
E a terceira sequência em casa de Tim é a sequência da absoluta feminilidade, com o vestido novo e o lenço ao peito (como Tim lhe ensinara a pô-lo), lenço que ele lhe retira, para o mudar para a cinta. No colo dele – apontamento erótico fortíssimo – ficam os sapatos dela.
No quarto e último encontro, Mary já não entra em casa de Tim. A mesa está posta na soleira da porta. Ambos sabem como o «dentro» é perigoso.
E muita coisa se passa entre os quatro encontros. A dickensiana mãe obriga a filha a deixar o «aleijado» e impõe-lhe o sargento, que tem dinheiro e não é de rodeios. Sacrificialmente, perdidos todos os apoios, Mary desce a escada de casa, meio cabana de contos de fadas, meio tugúrico e, numa madrugada sinistra (a luz, a luz) é levada para longes terras e um mais do que duvidoso casamento.

Mas Tim sempre lhe prometera que «for a special occasion» voltaria a andar. Quando ela lhe pergunta que ocasião será essa, responde-lhe referindo o casamento e a morte.
E, agora, quando, informado por outros, sabe que Mary vai partir com o sargento, Tim, depois de uma terrível luta contra o corpo próprio, consegue levantar-se e voltar a andar.
E são o amor e a morte quem o guia por essa prodigiosa caminhada, entre a neve e o vento, em que consegue chegar à estação a tempo de impedir que Mary seja levada. De novo, o corpo dele é um corpo de luz como Mary o vira, no principio, no alto do poste de iluminação, situação espiritual e física que marca todo o percurso do personagem. Vezes sem conta cai, vezes sem conta se levanta. Tudo é totalmente irreal e onírico, como se, em corpo e alma, o personagem ressuscitasse para a redenção e a vingança. E, pessoalmente, não recordo muitos planos mais redentores do que o genial long-shot em que o vemos surgir, no alto da colina, na sequência final. Simultaneamente fantomático e colosso físico, dominando todo o espaço, onde a outro nível Mary – e só ela – o vê surgir como se fosse a materialização do seu desejo, o milagre. Aquela era, na verdade, «a special occasion» a que ele se referira e que o abraço final sela na fusão dos dois corpos.
Nenhum filme, como Lucky Star, existe, talvez, tão desarmantemente simples. Nenhum filme, como Lucky Star, existe, talvez, tão desarmantemente complexo. Só os grandes sentimentais são capazes de ser tão perversos e só o melodrama pode ser tão fundamentalmente transgressor. Nunca ouvi uma história de almas tão belas como esta e nunca vi uma história de corpos tão poderosos e tão vulneráveis como estes. O milagre daqueles corpos – corpo de Janet Gaynor, corpo de Charles Farrel – é igual ao milagre daquelas almas. Só a carne ressuscita.

João Bénard da Costa

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

«Mas o cinema não falhou, os seus pais é que falharam (se pensarmos no cinema como infância). Por isso era tão popular. Toda a gente pode gostar de um Van Gogh, mas então alguém inventou uma maneira de espalhar os corvos de Van Gogh por todo o lado (mesmo que numa forma menos terrificante), para que todos gostassem deles e se sentissem próximos deles.
O cinema era como a terra. Depois veio a televisão, que foi como a invenção do arado. Se não o soubermos usar, o arado é uma coisa má. Se não soubermos como lavrar a terra ou cultivar este ou aquele tipo de trigo. Mas a televisão tornou-se toda uma outra coisa. Julgo que os pontos cardeais se perderam. O cinema tinha feito o Leste e o Oeste, de Moscovo a Hollywood, com a Europa Central de permeio (porque é de lá que vem o cinema, só de lá). Há um grande eixo – como este.
O cinema é feito para espalhar, para aplainar. Comparo-o sempre aos tribunais: abre-se uma pasta, é cinema [Godard abre uma pasta]. E depois avalia-se…É como um romance, porque as páginas são consecutivas. Mas, porque é visual, há o peso de uma página e o peso da seguinte…E depois há outra coisa: a sua direcção, ou seja, os seus pontos cardeais. Agora a televisão detêm-se no Leste-Oeste, e não cobre o Norte-Sul; e no entanto, o Norte-Sul competia à televisão. Isto era o que o cinema não podia fazer, não tinha que fazer.
A televisão, por seu lado, há de ter o seu dia, não importa quão estupidamente. »

Jean-Luc Godard
«O cinema é uma arte, como a ciência é uma arte. Mas alguma coisa aconteceu com a chegada das comunicações, da técnica. Técnica num sentido operacional, não artístico. Não o movimento de um relógio feito por um artesão do Juras, mas cento e vinte milhões de Swatches.
As Télécoms e os semáforos nasceram ao mesmo tempo que a tolice, que “Madam Bovary”. Flaubert descobriu-o.
A ciência é como a arte, é a mesma coisa. E num determinado momento do século XIX, a ciência – não a arte – tornou-se naquilo que então ficou conhecido por cultura – porque a palavra não existia antes. E quando isso aconteceu, a ciência tornou-se noutra coisa. Pouco a pouco, o cinema, que era uma arte popular, e talvez por causa da sua popularidade mas sobretudo por causa da ciência, que entretanto se tinha desenvolvido, gerou a televisão. Mas a televisão não é arte, é cultura, comércio e difusão

Jean-Luc Godard
«A linguagem, o discurso e a imprensa vieram sobrepor-se. E com eles veio o que acontece quando “dizemos” qualquer coisa, e ainda não nos curámos da linguagem (excepto quando o dizemos porque estamos muito doentes e temos que ir ver um especialista, e o especialista é um bom médico). Há uma grande batalha a ser travada entre os olhos e a língua. Só Freud, e outras pessoas como ele, que hoje tendemos a ridicularizar, tentaram ver as coisas de maneira diferente.
Provavelmente o facto de o meu pai ser médico levou-me, inconscientemente, a isto. Porque a linguagem di-lo imediatamente: é sinusite, ou, é montagem. Com o cinema, havia o sinal de que algo era possível se nos déssemos ao trabalho de chamar as coisas pelos seus nomes. O sinal de que o cinema era uma nova maneira – que até então ninguém tinha visto – de chamar as coisas pelos seus nomes, uma maneira que também era abrangente e popular porque precisava, imediatamente, de um público.»

Jean-Luc Godard
«Portanto, diria: olhem, eis aqui uma coisa que existiu e que era relativamente única – o cinema. Coisas destas devem ter acontecido há quatrocentos milhões de anos (mais milhar de anos, menos milhar de anos) quando Mycenae desapareceu, ou uma determinada espécie de animal ou vegetação. E então havia qualquer coisa, uma imagem, uma imagem que era só um movimento. E essa imagem dizia-nos qualquer coisa que não queríamos ouvir. Então preferíamos, em vez de ouvir, falar sobre ela. Deste ponto de vista, se quiser, a obra é para mim a criança e a pessoa é o adulto, o pai. E algo aconteceu – a criança mostrou aos pais quem eles eram, e falou sobre ela ao mesmo tempo! E os pais não quiseram ouvir e assustaram-se. Foi a única vez nos últimos quatrocentos milhões de anos que uma certa forma de contar histórias foi “História”.
Mas para vermos isto temos que o mostrar, fazer o que Lévi – Strauss, Copérnico e Einstein fizeram. Se disser que em 1540 Copérnico introduziu a ideia de que o Sol não girava à volta da Terra, e se vir que alguns anos mais tarde Vesalius publicou “De Corporis Humanis Fabrica”, que mostra o interior do corpo humano, o esqueleto e “ecorchés”, bom, então tem Copérnico num livro e Vesalius noutro…E depois, quatrocentos anos mais tarde, tem François Jacob que diz, “No mesmo ano, Copérnico e Vesalius…”; bem, Jacob já não está a fazer biologia, está a fazer cinema. E isso é tudo o que a história realmente é. Tal como quando Cocteau dizia: “Se Rimbaud tivesse vivido mais tempo, teria morrido no mesmo ano em que Marechal Pétain”. Vê-se o retrato do jovem Rimbaud, vê-se o retrato de Pétain em 1948, pomo-los ao lado um do outro, e então tem-se uma história, tem-se “História”. Isso é cinema. A única coisa que eu queria dizer é que “só o cinema…”. De facto, começo com um capítulo intitulado “Toda (s) a (s) História (s)”, depois continuo com “Só uma História/Uma História Só”. E depois “Só o cinema”, que significa que “só o cinema fez isto”, mas também que “o cinema estava só, tão só que…”.»

Jean-Luc Godard
Acabou. O cinema acabou. Nunca acreditei na ideia, mas por hoje sim. Depois de assistir a Lucky Star de Frank Borzage, sim.

Volto à ideia: como o cinema já foi assim e hoje temos estas coisas nas salas? Como?

É o mais belo e o mais comovente filme do mundo. Mas é mesmo. É arte que já acabou. Pelo menos deste jeito.

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“Sem tocar a trombeta do apocalipse, digo que o cinema acabou, apesar de ser uma arte que durou tão pouco. É fácil entender. Se você vê a riqueza de sentimentos e emoções que nos davam um filme de Griffith ou de Stroheim, e vê o que nos oferece qualquer filme contemporâneo, percebe a perda imensa que ocorre entre estes tempos. Perdemos progressivamente 90% da energia estética que havia na época do cinema soviético, no cinema hollywoodiano da época de ouro, no cinema de Weimar”.

Jean-Marie Straub
U Samogo Sinevo Morya é de 1935, mais anos menos anos foi realizado em tempos da viragem do mudo para o sonoro.
E é também significativo e decisivo. Isto pois depois de Murnau raramente, ou se calhar nunca, tive o prazer de assistir a imagens tão cândidas, tão inocentemente belas, tão transparentes e clarividentes. Cintilantes.
Há diálogos, há canções trauteadas, há ruídos of, mas a combinação entre a desmesura visual e a não submissão à banda som e ao falado jamais atingiu este nível de comunhão, de encanto em direcção a um infinito.

E depois temos o lirismo. O mar a fundir-se com o sol, os raios a trespassar as nuvens e a chegar aos cabelos, os amanheceres, tudo no nível mais alto de vibração e de temperatura.
Lembrei-me de Malick, melhor, acho que se hoje em dia é possível existir um herdeiro desta arte que incendeia, e que foi levada por Barnet aos píncaros, é ele.
E entes dele só me lembra de sensações assim num outro cineasta que na altura me impressionou totalmente e que está entre os maiores: Artavazd Peleshian.
Ou seja: começa-se nas imagens que ardem e que permitem a perfuração a todos os elementos naturais, e dá-se espessura e sentido pela montagem, pela construção de durações e correspondências rítmicas harmoniosas, contrárias, paralelas, etc…acho que o lirismo acontece por aqui.

U Samogo Sinevo Morya, Boris Barnet


À Beira do Mar Azul

Em 1956, Fernando Gil «apresentou-me» Jean Victor Hocquard. Devo-lhe – através de um pequeno livro da colecção «Solfèges» publicada pela Seuil – a descoberta central da minha vida: Wolfgang Amadeus Mozart, no ano do bicentenário do nascimento.
Devo também a Hocquard a expressão «ouvres de pure intimité» que usou, para destacar no corpus mozartiano, «peças relativamente pouco conhecidas que os ouvintes se arriscam a escutar com indiferença, sem a atenção recolhida que é fundamental para permitir a sensibilidade ao despojamento final da arte mozartiana.» Desde então, eu e alguns raros outros nunca mais deixámos de chamar de «pure intimité» obras e pessoas que só a essa atenção e só a esse recolhimento plenamente se revelam.
Mozart é, certamente, como Schubert também o é, um compositor de «pure intimité». Muitos escritores, poetas, pintores o são também. Evidentemente, muitos filmes e alguns cineastas. Nicholas Ray vem à cabeça. Tarde, demasiado tarde na vida, descobri essa pure intimité na obra do russo Boris Barnet. E, nela, o mais transparente e o mais secreto dos filmes, U Samogo Sinevo Morya (1936) que a partir daqui designarei pela tradução literal À Beira do Mar Azul.

Barnet, que se suicidou em 1965, aos 63 anos, não foi muito apreciado em vida. Nem na Rússia – nesse tempo, U.R.S.S – poucos deram atenção a um homem que cultivou, sobretudo, o mais «burguês» dos géneros: o melodrama. Fora da Rússia, os companheiros de caminho ou os «idiotas úteis» limitaram-se a repetir as «verdades» oficiosas. Sadoul, por exemplo, que, no ocidente, foi quem mais viu cinema soviético, quase lhe reduziu a obra a Okraina (1933), o seu título mais célebre, achando tudo o resto interessante mas menor.
Que eu saiba, apenas um homem (e não lhe conhecia a obra toda) lutou por Barnet, no ocidente, ainda em vida dele. Foi, com as suas mil antenas, Henri Langlois, que, a partir dos anos 50, organizou na Cinemateca Francesa algumas retrospectivas dele e o achava o grande poeta do cinema russo. Por esses anos – 1953 – um jovem de 26 anos escreveu nos Cahiers du Cinéma o primeiro texto da vida dele, aproximando Chtchedroie Leto (Um Verão Prodigioso), filme de 1951, de Renoir e de Becker, outros cineastas de «pure intimité». Chamava-se (chama-se Jacques Rivette e foi a primeira vez que teve o nome impresso. Contudo, quando Barnet se matou, mesmo os Cahiers se confessavam «hesitantes» quanto a uma apreciação global, alegando falta de informação. Que conheciam eles, de facto, das 21 longas-metragens ou das muitas curtas-metragens que Barnet assinara entre 1926 e 1963, ao longo de quase quarenta anos?
Menos desculpas teve e tem a Cinemateca Portuguesa para, em 1987, em nota assinada por um ex-militante do PCP, o caracterizar como um «René Clair soviético», comparação absurda, comparação obscena. E menos desculpa porque, por esses anos, já Barnet começava a ser objecto de culto na Europa Ocidental. Em 1980, o National Film Theatre organizou-lhe uma integral em Londres. Em 1982, o acontecimento repetiu-se no Festival de La Rochelle. Em 1983, foi a vez de Locarno, que editou, por essa altura, o primeiro volume consagrado a Barnet, com notáveis contribuições de Ian Christie, Noël Burch, Bernard Eisenschitz, etc. Só nos anos 90, a Cinemateca Portuguesa acordou. Em 1994, À Beira do Mar Azul foi exibido, pela primeira vez em Portugal, no ciclo «Os Melhores Filmes Europeus», co-organizado com a Lisboa 94. Voltou a passar em 1995, entre os filmes-chave da história do cinema. E, em 1996, organizou – finalmente – uma integral Barnet, e publicou um catálogo que é basicamente a tradução da edição de Locarno.

A Portugal, Barnet chegou cerca de trinta anos depois de ter morrido e cerca de sessenta anos depois do primeiro filme. Antes de 1994, só conhecíamos dele – sempre a Cinemateca, para o bem ou para o mal – Devuchka S Korobkoi (A Rapariga da Caixa de Chapéus) de 1927, Okraina (ambos exibidos em 1987) e Miss Mend (1926) revelado em 1995.
Em A Rapariga da Caixa de Chapéus, Barnet descobriu a belíssima Anna Sten que, dois anos depois, passou à Alemanha (foi a Grushenka numa célebre versão dos Irmãos Karamazov de 1930) e que, em 1932, Goldwyn levou para a América, anunciando-a como uma nova Garbo ou uma nova Marlene. Tinha a mesma star-allure mas, vá lá saber-se porquê, apesar de alguns Vidor e de um Mamoulian em que foi resplandecente, crítica e público não lhe pegaram e as más-línguas chamaram-lhe injustissimamente «Goldwyn`s folly». Adiante. E adiante porque, depois de Anna Sten, Barnet descobriu a não menos fabulosa Elena Kuzmina em Okraina. E Elena Kuzmina – louríssima, humidíssima, azulíssima – é a Macha de À Beira do Mar Azul, milagre feito mulher ou mulher feita milagre, neste filme entre todos milagroso e de que o último dos grandes críticos – Serge Daney – falou obsessiva e obcecadamente até à hora de morrer (1993).
Antes de falar do milagre, devo dizer que jamais percebi por que insistem em classificar À Beira do Mar Azul como uma comédia. È um melodrama – se quiserem uma comédia melodramática – e jamais, à sua visão, tive qualquer vontade de rir. Nada que ver com a comédia sofisticada americana e tudo a enunciar os imponderáveis «filmes de amor» da «nouvelle vague» como Adieu Philippine de Jacques Rozier, Jules et Jim de François Truffaut ou Lola de Jaques Demy. Como as obras citadas, é um filme de amor a três: amor entre Aliocha (Nicholas Krintchov) e Jusuf (Lev Sverdlin), os dois amigos tão novos na terra, amor dos dois por Macha, a rapariga da ilha, a rapariga que conhecem na ilha.
Chegam à ilha depois de um naufrágio. Os primeiros planos do filme são fabulosos planos de mar e de ondas (dos mais belos planos de mar e de ondas que já vi, quase tácteis, quase minerais) donde emergem brevemente a cabeça loura e a cabeça morena dos dois náufragos. Um intertítulo diz-nos que «lutaram dois dias e duas noites contra a morte». Ainda nada sabemos deles, para que esse combate nos possa apaixonar. Mas aquele mar é tão desmedidamente sensual, são tão desmedidamente sensuais os muitos planos de nuvens, sol, crepúsculos, auroras, noites, dias, que nos fixamos naqueles vultos como imagens transfiguradas por uma inexplicável irrealidade e o sul do Cáspio, no Azerbaijão, começa a invadir-nos e a contaminar-nos.
Se a fotografia de Kirlov é prodigiosa, é também dos melhores exemplos que conheço de uma fotografia rigorosamente submetida a uma visão que a ultrapassa. Um só plano género «bilhete postal» e tudo estaria perdido. É porque a ordem de beleza nunca é essa, mas a do abraço telúrico de elementos e homens, que esses planos nos assombram tanto, como se aqueles vultos viessem de um fundo mítico semelhantes ao de mares e céus, náufragos eternos, de que fossemos convidados a seguir – agora – uma outra e particular história.
Depois desses minutos inebriantes do mais puro cinema, novo intertítulo nos prepara para a «história». «Era uma vez numa ilha». E o rapaz louro e o rapaz moreno já estão a salvo, a dormir um contra o outro, de tronco nu, no fundo de uma barcaça, iluminados, no meio das areias, por um sol prodigioso. Ainda não apareceu mais ninguém, ainda não vimos Macha, mas já se selou a aliança entre os dois protagonistas, aliança que nada nem ninguém – nem uma mulher como Macha – pode destruir.

Mas Macha chega pouco depois e é o primeiro ser humano daquele lugar a vê-los. Vemo-la em contraplano (primeiro grande plano do filme) como se fosse a personificação do espírito daqueles lugares, com um sorriso meio trocista meio terno. Ele acordam, vêem-na como visão. Contracampos. Sorriso dela, sorriso deles. E ouve-se a belíssima canção que fala da gaivota, dos dias claros e das turbações escuras.
Os rapazes arranjam trabalho na «companha» e a narrativa prossegue em elipses. Apaixonam-se os dois por Macha. Dizem-lhe que têm medo das mulheres. Um dia, Aliocha ousa mais e oferece-lhe um colar de vidros como pérolas. Mas o colar rompe-se quando ela o põe ao pescoço e as pérolas desligam-se uma a uma, apagando no chão o seu brilho, como se fossem estrelas cadentes tilintando contra o solo. É muito mais do que um plano simbólico. É um plano transfigurador. E Macha oferece-se e recusa-se aos dois, como uma criança que brinca com outras crianças e que sabe como começam e onde acabam os jogos.
Muito depois, a sequência que Daney tanto amou. As ondas levam macha e todos se convencem que ela morreu. O povo já se reuniu para o velório. Só Aliocha e Jusuf continuam à procura, até a verem desmaiada, repousando na orla da praia. Tão alegres como num musical americano, levam-na para o velório dela, até ela realizar que ela era a morta por quem a aldeia chorava.
Daney dizia que só se podia falar dessa sequência contando-a, como se só a oralidade perfizesse a beleza daquele momento único, daquelas imagens únicas. «Lembras-te» - dizia ele - «lembras-te como é tão bonito quando o mar enche a tela toda? Lembras-te quando ela ainda não percebeu que estão todos a chorar porque julgam que ela morreu e que ela começa a rir com os dois rapazes? Lembras-te quando eles os três começam a dançar de alegria e, pouco a pouco, todo o povo dança também?» Lembras-te? É a pergunta que apetece fazer a propósito do milagre dessa sequência. Lembras-te quando ela, espantadíssima, pergunta «quem morreu?» e a resposta é a mais bela dança que vi em cinema, incluindo a do Singin´in the Rain? Nunca, talvez, o cinema tenha estado tão perto de nos fazer tocar na alegria como «dom de Deus (…) que traz em si um carácter eterno que passa através do sofrimento» (Sophia de Mello Breyner). E nunca, a não ser em Ordet de Dreyer, o triunfo de um corpo «ressuscitado» foi tão físico e tão anímico, tão carne e tão espírito.
Depois, Jusuf convence-se que Macha ama Aliocha e prepara-se para partir. Depois é Aliocha quem pensa que é ao contrário e, mais ciumento e rezingão, decide ir-se embora também. Depois, ambos descobrem que Macha é casada com um marinheiro bigodudo (que só vemos em retrato, feiíssimo) que andava longe ao serviço da pátria e do proletariado e que ela não trocará por nenhum dos jovens. Depois, os dois vão-se embora, sorrindo da vida ser assim, cúmplices do engano daqueles dias. Todos, no fim, sorriem melhor uns para os outros. O céu, a terra, o vento sossegado. Como se viéssemos de um sonho ou a um sonho regressássemos.

João Bénard da Costa

terça-feira, 19 de agosto de 2008


Tive este sonho. Mas nada de delírios, acredito mesmo nisto. No encontro entre Ford, Ray (Nicholas) e Stallone. Com Hawks por lá, pois claro.
Por onde anda sempre a câmara? Qual as suas alturas? Reparem e digam qualquer coisa.
Os filtros? Esqueçam-nos e constatem como o que interessa é sempre o humano, a carne e as fissuras.

...ou como diz o Bruno:

"Stallone entendeu Hollywood muito melhor que Scorsese. A técnica é mais rudimentar e menos ciselada, mas o coração está lá e é a única coisa que importa"

"Stallone ja sabia que não sairia ganhador com esse filme, vivemos numa época em que o herói recebe a ingratidão e o impostor (Honoré, Desplechin), os louros"
Como combinado, foram 50 os melhores filmes ou o melhor filme. 50 melhor filme? Exactamente. E podiam ter sido 500. E podiam ter sido 1000. O melhor filme, graças a Deus e a uns cem ou duzentos cineastas, é muitos, como escrevia o Camilo. Coisas que não são destes tempos. Mas serei eu destes tempos? Se sou, não quero ser. Não quero ser dos tempos em que a IBM ganha ao Kasparov e em que os audiovisuais querem convencer o nosso Primeiro que há duzentos milhões de lusoparlantes à espera de se embasbacarem com as «audiovisualices» deles. Nem sequer é «une des plus belles escroqueries du monde».

(...)

Muito me têm censurado o meu «reaccionarismo». Só gosto dos filmes dos tempos da Maria Cachucha. Não é verdade, porque felizmente muita gente continua a acreditar na Maria Cachucha, sobretudo quando a Maria Cachucha dorme com o tempo que é tempo e não com o tempo que finge que tempo é. Muito mais gente do que se calcula anda a filmar contra a corrente e continua a acreditar que o cinema é uma arte e não um meio de comunicação. Muito mais gente do que se calcula continua a distinguir o prazer de ver um filme, a beleza de fazer um filme, do recado deixado na folha de fax ou no gravador do ausente que naquele momento não pode atender a chamada.
Mas deixo os mais relutantes ou os mais influenciáveis a pensar num curioso fenómeno. Por mais que digam que o cinema dominante é o cinema que o público quer, de cada vez que há uma reposição, mesmo de filmes que no seu tempo estiveram longe de ser consensuais, correm-no a cinco estrelas. Podem dizer o que disserem mas ainda não os vi com coragem de dar uma bola preta a Renoir, a Mizoguchi, a Sternberg ou até mesmo a Cassavetes ou a Kubrick.
Quando a unanimidade de critica se dá, é quase sempre no passado. Como ia dizendo, deixo-os a pensar.

(...)

Jean-Marie Straub, sempre provocador, foi até aos Cahiers du Cinema e, como bom marxista, propôs-lhes comprar a capa para o último filme dele. Responderam-lhe indignados que os Cahiers não estavam à venda. «Pois não», respondeu ele, «já se venderam». A capa dos Cahiers desse mês foi a célebre fotografia do Larry Flint com o homem crucificado nas cuequinhas da senhora.
Como escreveu Jonathan Rosenbaum, critico americano, «a decadência da critica de cinema destes últimos anos – perceptível nos hábitos da maior parte dos chefes de redacção de jornais e revistas, europeus ou americanos, e nos hábitos dos universitários americanos que se dedicam ao cinema – é um reflexo, não tanto de uma mudança de gostos do público (como normalmente pretendem todos esses especialistas) mas do poder dos grandes grupos que eliminam tudo o que possa perturbar as suas campanhas publicitárias. Tal como os chamados «cineastas independentes americanos», que Hollywood promove através do Sundance Festival, são normalmente cineastas que já perderam a sua independência, a “crítica de cinema” para o grande público é hoje, essencialmente, publicidade redaccional. Os verdadeiros independentes e os críticos tem de trabalhar à margem e na margem.»
Quanto a mim, não me queixo das margens. Têm sido bastante generosas. Só não gosto é que continuem a falar-me em nome do público, quando não é o público mas os estados e os estúdios que determinam que as coisas tenham chegado onde chegaram e o cinema dominante tenha chegado onde chegou.
Ao lembrar os 50 melhores filmes da nossa vida, resisti como pude e como posso. Dei testemunho do que vai durar contra o que parece que está para durar, para citar umas das minhas frases favoritas, de um certo Georges Bernanos.

João Bénard da Costa - OS FILMES DA MINHA VIDA, 2º volume

Ne touchez pas la hache

http://www.amazon.fr/touchez-pas-hache-Jeanne-Balibar/dp/B000VIFMFO/ref=sr_1_3?ie=UTF8&s=dvd&qid=1219140275&sr=8-3

(ou então é baixar no eMule. Foda-se, vale tudo para ver a obra-prima de Rivette)

(neste país onde preferem os Honorés, Ozons, Jeunets ou Desplechins deste mundo ...ou Bonecas Russas....)

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Under Capricorn

É dos filmes mais complexos e vertiginosos de Hitchcock. De uma grandeza e de um experimentalismo que destrói qualquer convenção de filme de época ou de estudo psicológico/comportamental.
Tábua rasa sobre todo esse peso e essa vaidade que ainda hoje faz a glória dos académicos.

Está lá uma cena, aquela em que a governante (a fabulosa Margaret Leighton) enche a cabeça a Joseph Cotten, que é definidora.
Toda uma espiral das aparências e dos seus contrários. Toda a difusão e gravidade no plano (o fora e o dentro como elemento fundamental). Toda a fugidez narrativa.
Bem como aqueles estonteantes bailados entre a câmara e Michael Wilding que mais não são do que prenúncio superior daquela ferramenta que iria surgir nos anos 70.
Significantes para toda a obra e para este filme que continua tão misterioso, e se calhar tão difícil de decifrar, como aquando da sua estreia.

(Isto sim Sr. Frodon: uma curta-metragem ao acelerador)

Under Capricorn
O preço foi altíssimo, se foi. Mas Carax só pode mesmo ser o último dos poetas de um realismo tão real, tão profundo e visceral, que resvala logo para a outra ponta.
É como Michael Mann, embora as pontas contrárias sejam diferentes.

E depois há a distância entre refugiar-se na história e na moda (C.H e alguns mais) e perder-se nela quando há corpos, matérias e motivos realmente vivos e pulsantes.
A distância entre o que promove e publicita e o que habita e faz questão total.

Paga-se, mas o tempo não apaga, antes agudiza.

domingo, 17 de agosto de 2008

comeback

É verdade. The Lusty Men, o filme de Nicholas Ray com Robert MitchumO actor – inicia com o mais belo regresso a casa da história dos filmes. A par com The Searchers, exacto.
Regressos no início das respectivas obras, porque caso contrário teria de juntar o de Stallone em John Rambo.
Esse portentoso filme do homem com a cabeça e o coração no cinema clássico (como disse um amigo meu) mas também em filmes que só ele sabe (Fulci? Bava?), na tal violência sem prazer (como disse outro meu amigo).
Mas não interessa – um dos grandes comebacks desta arte de ligar imagens e um grande, grandioso, filme.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Acabo de ver Ice. Assim, a quente, a obra parece estar sem dúvida ligada e fazer parte do mesmo corpo de um Godard engajado (One+One, Alphaville ou Wee Kend, etc…), da liberdade de Cassavetes (pró lado de Faces) ou mesmo do Antonioni de Zabriskie Point.

Mas é que estou a ler o monumental catálogo que a cinemateca dedicou a Robert Kramer em 2000, e uma das coisas que impressiona é a forma como ele fala tão pouco de filmes ou cineastas. E quando fala é quase sempre sobre as margens e sobre modos alternativos de produção, etc…

Portanto, calminha. O que me impressiona nesta fascinante e estranhíssima tangente à ficção científica, é a maneira como a câmara de Kramer elide esses maneirismos e essa busca de uma vérité que tanto fez posteriormente escola em aberrações que vão desde o Dogma até a essa impregnação fascista de mexer a câmara aleatoriamente – certas grandes produções, certas publicidades, certas séries, certos clipeiros, etc…

Aqui a moral é dar a ver, seguir os corpos e a palavra, e no final tudo fica muito mais forte.