quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Lucky Star, Frank Borzage

Falo de um filme dos anos 20? Falo de um filme dos anos 90?
Lucky Star é dessas duas décadas. Rodado no primeiro semestre de 1929, estreado a 20 de Julho de 1929, muito poucos o viram fora da América (e mesmo na América) no ano que teve uma terça-feira negra. Não por causa dela, mas por causa do som que ainda lhe faltava em tempos em que o bom do público trocava tudo por vozes e música fanhosas. A Fox (nessa altura Fox Films e ainda não 20th Century) tentou emendar a mão e lançou uma versão sonorizada à pressa. Não pegou.
Depois, o filme levou sumiço, como tantos outros desses anos fatídicos de 28-29 (fatídicos para os cinéfilos). Pelo menos, entre 1940 e 1990 (talvez mais) ninguém o conhecia de vista. «Missing film», era a seca menção, tão dura de engolir como «missing in action». Até que, em 1990, a Cinemateca de Amesterdão descobriu, nas caves, uma velha cópia em nitrato (das mudas) que para lá jazia. A 18 de Outubro de 1990, no Festival de Pordenone, recuperado e restaurado, Lucky Star ressuscitou. Eu estive lá, eu vi.
Depois (Janeiro de 91) o filme abriu o XX Festival de Roterdão. Houve Godard e Kazan, houve os irmãos Kaurismaki e Muratova, houve, até, uma integral de Nicohlas Ray. Mas, mesmo com Nick Ray, não atiro nem a primeira nem a última pedra aos resultados do referendo, como de costume organizado entre o público para designar o melhor filme da manifestação.
À cabeça, de longe, Lucky star, a maior das descobertas dos últimos anos.
Pouco depois (Fevereiro de 1991) Lucky Star veio até Portugal, onde nunca fora visto, e estreou-se em Lisboa, na cinemateca (onde queriam que fosse?) sessenta e dois anos depois de feito.
Quem esteve na sala, sabe porque é que é um dos melhores filmes da nossa vida.

Lucky Star é um filme de Frank Borzage (1893-1962). Borzage, como todos os cineastas americanos da sua geração, abordou muitos géneros. Mas há um em que ninguém lhe levou a palma: o melodrama. Mesmo Douglas Sirk (e Deus sabe quanto o amo) é menor ao lado deste maior. Mesmo Griffith, só lhe abriu os caminhos. Porque se Lucky Star, como outros melodramas dos finais dos twenties, não seriam possíveis sem Griffith (por exemplo, aquele True Heart Susie já aqui evocado), nunca houve corpos tão anímicos e almas tão carnais como na obra deste místico, por um lado muito religioso, por outro muito atento às correspondências secretas entre ritmos ocultos e aparências geométricas. Homem muito sabido em símbolos (nada a ver com alegorias) maçon cultivadíssimo, cultor exotérico. Os surrealistas não se enganaram quando o meteram na família, eles que tanto amaram The River, o filme anterior a este.
Lucky Star tem Janet Gaynor e Charles Farrel nos protagonistas. È um dos três filmes (com Seventh Heaven e Street Angel) em que Borzage dirigiu o par, outrora célebre, dos «America`s favorite lovebirds», como entre 1927 e 1934 foram conhecidos. Borzage criou esse par que, depois dele, mais nove vezes apareceu junto. Estranhíssimo par: ela, palmo e meio de altura, «piccina, tanto piccina, troppo piccina», como escreveu o meu heterónimo Ramperti, pintas na cara e nos olhos, mozartianíssima, assustadíssima (foi a actriz de Sunrise, de Murnau, do mesmo ano de Seventh Heaven). Ele, com quase dois metros de altura, um corpanzil imensíssimo, pés e mãos quase do tamanho dela e, lá em cima, uma cara simpática e imberbe. Corpo de quem morde, cara que não ladra.
Em Lucky Star, Charles Farrel chama-se Tim. Estamos em 1917, em um canto perdido da Nova Inglaterra. Décor minimal. Meia dúzia de cabanas, algumas colinas, muito nevoeiro, muito frio. Tim foi para lá quando para lá foi a luz eléctrica. E é quando está no alto de um poste a concertar qualquer coisa, que repara numa valente zaragata entra Mary (Janet Gaynor) e um calmeirão que a acusa de lhe ter roubado uma moeda. Mete o outro na ordem até descobrir que a miúda fizera mesmo batota. Mary não era só suja por fora. Era suja por dentro. E a primeira vez que se tocam é para Tim agarrar Mary e lhe dar uma data de valentes açoites no rabo. Açoites mesmo, rabo mesmo. Não estava a brincar, nem a ser meigo. Borzage sublinha-o com uma série de planos em que vemos Mary levar a mão a essa parte do corpo, mostrando bem quanto a sério lhe doeu.
A personagem começa uma das suas muitas transformações. Quando volta para casa rodeia-a uma fabulosa e irreal iluminação. A mudança dela proveio tanto do acto físico (a sova que levou) como da razão dele: pela primeira vez conheceu alguém que sai fora do mundo de enganos e mentira que até então vivera.

Mas Borzage sabe dar o tempo ao tempo e o espaço ao espaço. No alto do poste, Tim soube que a América entrou na guerra e para a guerra parte. Mary tenta uma nova aproximação, no dia dessa partida. Na omnipresente carroça dela (até aí puxada por uma pileca preta, a partir dai puxada por uma pileca branca) oferece-lhe boleia até à estação. Desta vez, é Tim que não a percebe. Responde-lhe que tem pernas para andar. Tê-las-á por pouco tempo. Na guerra (alguns flashes) fica sem elas. Paralítico. Dois anos de ausência.
E é de novo um acto físico e um acto de agressão que atira aquelas almas uma para a outra. Como quem se vinga da sova de antigamente, Mary atira-lhe uma pedra ao vidro da janela. Não tem resposta. Entra-lhe então em casa – pela primeira vez – e descobre a cadeira de rodas. Quando percebe, deixa cair a pedra muito devagar e fica a piscar os olhos, dividida entre a luz e as trevas, a emoção e o susto. Não disfarça nem espiritualiza. A personagem reveste-se de uma impressionante sinceridade, meio infantil meio feminina, e Tim, no assombroso feitichismo de Borzage, começa a limpá-la (lava-lhe as mãos) e a paramentá-la, com um lenço que tanto serve para a enfeitar como para lhe assoar o nariz. E é nessa cena que começa a chamar-lhe «Baa-Baa» e é nessa cena que ela lhe promete (enquanto recua) voltar amanhã, no dia seguinte, em todos os dias.
Se nessa sequência há um erotismo difuso, um erotismo explícito surge na sequência seguinte, de novo a dois, em casa de Tim. É talvez a sequência mais genial do filme e, porventura, de toda a obra de Borzage.
Começa com um balde. Tim decidiu dar um banho a Mary e a limpar de vez a imagem e o corpo dela. E são ovos o que usa para essa ablução, que a transforma também de morena em loura. À medida que a espuma aumenta e que a vergonha e a aflição de Mary crescem, sela-se a relação física entre os dois, sublinhada pelo plano magistral em que vemos a quantidade de cascas de ovo partidas. Tim começa a descer no corpo de Mary, que se lhe oferece. Mas, a dada altura, a evidência do corpo de mulher sobrepõe-se à da criança que até então vira nela. Detém o gesto de a despir e manda-a, para a profundidade de campo, continuar o banho que já não é capaz de lhe dar. Borzage abre, de novo, todo o espaço, para nos dar a entrever um pouco do corpo nu de Mary e um pouco do olhar que Tim não resiste a lançar sobre ela. E, desse banho, Mary sai mulher.
Tão mulher que é depois dessa cena que a mãe começa a congeminar o plano de a «vender» a um sargento que, num breve baile, Mary metera em muita ordem.
E a terceira sequência em casa de Tim é a sequência da absoluta feminilidade, com o vestido novo e o lenço ao peito (como Tim lhe ensinara a pô-lo), lenço que ele lhe retira, para o mudar para a cinta. No colo dele – apontamento erótico fortíssimo – ficam os sapatos dela.
No quarto e último encontro, Mary já não entra em casa de Tim. A mesa está posta na soleira da porta. Ambos sabem como o «dentro» é perigoso.
E muita coisa se passa entre os quatro encontros. A dickensiana mãe obriga a filha a deixar o «aleijado» e impõe-lhe o sargento, que tem dinheiro e não é de rodeios. Sacrificialmente, perdidos todos os apoios, Mary desce a escada de casa, meio cabana de contos de fadas, meio tugúrico e, numa madrugada sinistra (a luz, a luz) é levada para longes terras e um mais do que duvidoso casamento.

Mas Tim sempre lhe prometera que «for a special occasion» voltaria a andar. Quando ela lhe pergunta que ocasião será essa, responde-lhe referindo o casamento e a morte.
E, agora, quando, informado por outros, sabe que Mary vai partir com o sargento, Tim, depois de uma terrível luta contra o corpo próprio, consegue levantar-se e voltar a andar.
E são o amor e a morte quem o guia por essa prodigiosa caminhada, entre a neve e o vento, em que consegue chegar à estação a tempo de impedir que Mary seja levada. De novo, o corpo dele é um corpo de luz como Mary o vira, no principio, no alto do poste de iluminação, situação espiritual e física que marca todo o percurso do personagem. Vezes sem conta cai, vezes sem conta se levanta. Tudo é totalmente irreal e onírico, como se, em corpo e alma, o personagem ressuscitasse para a redenção e a vingança. E, pessoalmente, não recordo muitos planos mais redentores do que o genial long-shot em que o vemos surgir, no alto da colina, na sequência final. Simultaneamente fantomático e colosso físico, dominando todo o espaço, onde a outro nível Mary – e só ela – o vê surgir como se fosse a materialização do seu desejo, o milagre. Aquela era, na verdade, «a special occasion» a que ele se referira e que o abraço final sela na fusão dos dois corpos.
Nenhum filme, como Lucky Star, existe, talvez, tão desarmantemente simples. Nenhum filme, como Lucky Star, existe, talvez, tão desarmantemente complexo. Só os grandes sentimentais são capazes de ser tão perversos e só o melodrama pode ser tão fundamentalmente transgressor. Nunca ouvi uma história de almas tão belas como esta e nunca vi uma história de corpos tão poderosos e tão vulneráveis como estes. O milagre daqueles corpos – corpo de Janet Gaynor, corpo de Charles Farrel – é igual ao milagre daquelas almas. Só a carne ressuscita.

João Bénard da Costa

1 comentário:

siby13 disse...

Apaixonante suas palavras...
Borzage é um diretor altamente cultuado por mim. Ler sua matéria me fez reviver sentimentos de amor incomensuráveis pelo cinema.
Adorei cada palavra, como a forma como foi escrita.Um filme que é poesia visual em estado puro!
Parabéns pela matéria, amei!