“Ganhar a vida” é o ponto fulcral da obra de João Canijo, onde todo o seu experimento formal e narrativo, bem como as suas obsessões em relação a um Portugal que não costuma ser visto pelo cinema, nem pelas restantes artes (de maneira geral), se sublimou e se tornou tocante e essencial. Se “Sapatos Pretos” foi um potente soco estético, um abanão formal, onde a rugosidade do vídeo entrou visceralmente pelas provinciazinhas do interior, para captar todo o suor, escuridão e peculiaridade em relação à vida citadina, onde geralmente os cineastas se costumam deter (isto está perfeito), “Ganhar a Vida” é o domínio e a compreensão de um modo pelo seu cineasta.
“É como caminhar para a abstracção, de forma a chegar mais perto de um caminho que a pintura traçou. É passar do figurativo para a abstracção do Matisse, que é uma referência neste momento, no sentido em que o cinema não tem que explicar aquilo que está a mostrar.”
Passar para a abstracção de Matisse. Rejeitar o figurativo convencionado, rejeitar a ilustração classicista, trabalhar em direcção à fragmentação, à sugestão, aos borrões. Obviamente que Canijo é um herdeiro de Cassavetes, porventura um dos cineastas que melhor o compreendeu (seja qual for a cinematografia), aquele investimento fulgurante sobre a cena, sobre os personagens, sobre a matéria. Aquela profissão de fé no pedaço olhado, percorrido, carnalmente agarrado. A renúncia do geral para agarrar a concentração do fragmento e do cerramento. O sequencial-dramático pela câmara e a exposição do falso pela decupagem, em preferência da pretensão academicista de qualquer naturalismo estético/temporal. A condensação e o carregamento como forma de ampliação emocional.
E se toda a dramaturgia das cores se revela crucial para a tal abstracção pretendia, naquele hiper-realismo que se torna, precisamente, pintura diluída (Michael Mann é outro vértice), o que diferencia este gesto dos tão propalados Dogmas e das tangentes ao estilo mtv e afins, é o modo como toda a matéria bruta, toda a mancha granulosa, multicolor, suja e entranhada, surge como organismo vivo, corpo pulsante, substância vital e vibrante que milagrosamente permite a respiração e faz transparecer toda a vivência e íntimo da comunidade, das pessoas e dos acontecimentos em questão. É a transformação do processo em centro essencial e não em pura exibição, como foco penetrador de algo opaco, hermético, de difícil acesso. A vida e a singularidade de uma comunidade que já não é totalmente portuguesa e que não é, definitivamente, francesa.
É também por aqui que a colagem de Canijo às tragédias clássicas nunca fica algo mumificado, pretensioso, composto. A mais fechada e aprisionada das estruturas narrativas, para logo ser estilhaçada e fragmentada pela mise-en-scene e pela montagem. A posta-em-cena que eclode o classicismo literário, a montagem que fragmenta a linearidade da tragédia e faz irromper um fogo humanamente incompreensível.
Logo também estamos longe do dispositivo do documentário, da denúncia social. Sim do lado do mais do que realista, o passo anterior à diluição, à abstracção, e da sua superação. É nesse ir e vir entre os dois estados, nesse abismo entre o que é perfeitamente visionado e o que já está pulverizado e fora de ordem, que o filme se instala numa realidade descarnada em vez de pretender qualquer impressão de realidade e num tempo percebido em vez de pretender qualquer impressão de um tempo. Ou seja, Canijo instalou-se naquela realidade e naquele tempo, não em qualquer ilustração que procurasse a impressão. Os percursos sonoros e a sua porosidade como elevação de tudo isto.
Depois temos Rita Blanco, os não actores e uma ambiência em bruto.
1 comentário:
Noite Escura despertou-me a atenção para a sua obra. Depois vi o Tarde Demais (que foi escrito por ele), e confimei as suspeitas, Canijo é um cineasta corajoso, proximo do documentário e da visceralidade. O teu texto e o facto de ser filmado em dv ainda me aguçou mais a curiosidade. Sem duvida que Canijo é um caso raro em Portugal (no bom sentido).
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