quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Quando se repete uma mentira muitas vezes ela torna-se verdadeira. Por estas bandas resolveram dizer que "Histoire de Marie et Julien" é um filme menor de Jacques Rivette. Nada de anormal neste tipo de critica que perante um constante desfilar de obras geniais de um cineasta como "petit Jacques", Eric Rohmer, ou mesmo um Cronenberg, tem, forçosamente e por qualquer motivo aleatório, fazer brilhar a bola preta ou a mísera estrela, isto para não falar do chorrilho de incongruências em relação ao que se escreveu anteriormente sobre qualquer outro dos filmes do mesmo cineasta.
Martin Scorsese disse certo dia que encontrou a sua formula de lidar com a sua carreira e de executar, dentro da indústria, os seus filmes pessoais: “one movie for them, one for yourself”.
A mesma politica foi adoptada por esses críticos (perdão, jornalistas): cinco estrelas hoje, uma estrela amanhã. Nem que o filme de certo cineasta seja tão bom como o anterior, tenha ele o nome que tiver. Existe uma reputação, antes dos filmes, a manter.

Voltando a "Histoire de Marie et Julien", o filme anterior àquele que é provavelmente o melhor filme desta década, "Ne touchez pas la hache", é incompreensível o tamanho dos disparates que foram escritos. Ninguém, repito, Ninguém, no cinema de hoje tem tal domínio, discernimento e compreensão daquilo a que se chama mise-en-scène, essa arte de respeitar e compreender/apreender o real e a matéria, esse embate fulcral com as texturas, saliências e ambiências de um mundo que está lá, que existe, antes de qualquer artilharia técnica e estilística pré-concebida. Antes de qualquer excitação e fantasia.
Não há assim cineasta que em qualquer enquadramento, em qualquer movimento com a câmara, no corte ou nos infindáveis sons que invadem o quadro, demonstre uma total comunhão entre o mundo, a técnica e os actores, ou como diria Straub, entre a ideia, a matéria e a forma. “Só posso filmar o que está lá”, disse Pedro Costa e diria Rivette.
E depois, já não me lembrava, a não ser quando vejo algo feito há umas décadas, de filme tão erótico, tão carnal, tão misterioso e tão – e aqui é que está o tal segredo por detrás da porta – surreal. Surreal porque em conformidade com a parcela desconhecida e subjectiva do incompreensível deste mundo. Estranho porque em mergulho nesse abismo. E é, neste primitivismo, o filme perfeitamente experimental. As imagens e os sons, em quase todos os seus filmes, sempre entraram em conflito, sempre em quezília, sempre em noiseuse. Aliás, com esse filme, de 1991 e também comEmmanuelle Béart, podemos chamar à mesa Mizoguchi, a arte da modulação e da retribuição de todos os segredos e de todos os mistérios. As poses daqueles amantes e o modo como a luz os envolve e os absorve, o sangue que não brota e que começa a brotar, a duvida sobre o que está morto e o que está vivo, nada mais é do que a negação de qualquer verdade imutável e logo a abertura a toda a subjectividade e perdição. Um filme perdido, foi o que Pedro Costa escreveu um dia sobre “Land of the Pharaohs” de Hawks, foi a sua profissão de fé enquanto cineasta. È também o métier de Jacques, e que todos os fantasmas e outros lugares apareçam a uma só luz, à luz do único mundo que conhecemos, é o verdadeiro milagre deste filme.

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