sábado, 18 de outubro de 2008

...aí, já nem sequer estaremos a olhar para os filmes.

Jean-Luc e françois os irmãos inimigos

Curioso destino: para muita gente Truffaut e Godard tornaram-se palavras de passe para a definição do lado da barricada em que se está. Os nomes mais do que os homens, e provavelmente mais ainda do que as respectivas obras. Decidir entre Truffaut ou Godard tornou-se uma escolha política - e como tal, em última análise, faz sentido, mais sentido do que as tradicionais questiúnculas e oposições (Hawks ou Ford? Ozu ou Mizoguchi? Scorsese ou Coppola?) que a vivência cinéfila sempre teve tendência a criar para se organizar em "clãs" definidos pelo gosto. A oposição Truffaut/Godard é menos pueril, e mais rica em consequências: configurando a grande cisão no bloco apenas ilusoriamente uniforme da "nouvelle vague", é uma escolha tudo menos inocente, que acabou por se tornar, em maior ou menor grau, numa tomada de posição sobre o cinema europeu de autor. O que é outra particularidade: a divisão Godard/Truffaut é uma questão europeia, dificilmente um americano ou um chinês a sentirão da mesma maneira.

A zanga pessoal entre Godard e Truffaut contribuiu para engrossar esta linha de demarcação. A ruptura entre eles era previsível: como disse uma vez Jacques Rivette, o que espanta não é que Godard e Truffaut se tenham zangado, mas que tivessem demorado tanto tempo a fazê-lo. Só que, como acontece em todas as zangas pessoais, não se tratava apenas de um mero confronto idealista. Ele existia, claro, mas há confrontos idealistas (e ideológicos) que não implicam rupturas no plano pessoal. O caso Godard/Truffaut, verdadeiros Lennon e McCartney da "nouvelle vague", é quase uma história de filme, um percurso da irmandade (nos anos 50 dos Cahiers e durante a primeira metade dos 60) à mais aberta inimizade nos anos 70 e 80, com acusações mútuas de deslealdade, traição, mentira e, importantíssimo, questões de afectos pelo meio. A ruptura é datável: Maio de 1973, na altura em que Truffaut estreava "A Noite Americana". Godard escreve-lhe uma carta, chama-lhe mentiroso, pede-lhe dinheiro (!) para produzir um filme que mostrasse "que nem todos fazemos filmes como tu". Truffaut responde, num ajuste de contas fascinante (que repesca coisas antigas e pessoais: "sei muito bem que quando filmavas com Léaud lhe dizias mal de mim"), diz que quem "mudou" foi o outro, defende que foi a sua lealdade para com Godard que foi traída diversas vezes, insulta com ferocidade: "és uma merda". Foi o fim - em vida de Truffaut (que morreu em 1984) não voltaram a trocar (publicamente, pelo menos) palavras amistosas. E foi durante esses dez anos que, cultivada sobretudo por Godard, a oposição entre os dois nomes se solidificou. Aparentemente, na última vez que Truffaut se referiu a Godard, numa entrevista aos Cahiers, chamou-lhe um "invejoso compulsivo", pouco depois de lhe ter sugerido um título para o seu próximo filme autobiográfico: "Une Merde est une Merde".

Depois da morte de Truffaut, Godard pôde voltar a referir-se-lhe em termos mais elogiosos. Mas, com ou sem surpresa, é quase sempre o Truffaut-jovem crítico que merece o elogio de Godard - sobre os filmes, silêncio quase total. Logo a seguir à morte de Truffaut, Godard publica nos Cahiers um depoimento centrado no mais célebre artigo do primeiro, "Uma Certa Tendência do Cinema Francês". Talvez este artigo seja mais essencial do que se pensa: é muito possível que nele Truffaut anuncie o seu cinema futuro, mas ainda mais possível que o que ele escreveu não tenha sido o que os outros (Godard incluído) perceberam. Mas de resto, para o Truffaut-crítico, Godard só tem os maiores elogios: "Houve Diderot, Baudelaire, Élie Faure, André Malraux, e depois François - não houve mais críticos de arte", como reiterava no seu filme sobre o cinema francês, "Deux X 50 Ans", de 1995.

No nosso tempo e contexto, que em termos de "política cinematográfica" é extremamente belicoso, a escolha entre um lado da barricada tem, como dissemos, uma validade "ideológica". Mas, como todas as escolhas de carácter político, implica o risco de um sectarismo cego, que, esse sim, seria desejável evitar: é que nem o cinema de Godard invalida o de Truffaut nem o de Truffaut invalida o de Godard. A menos que os queiramos usar - um ou outro - como rolo compressor. Mas aí, já nem sequer estaremos a olhar para os filmes.

Luis Miguel Oliveira

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