segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Tão imponente como qualquer uma das obras finais de qualquer um dos grandes cineastas é o último Allan Dwan, “Most Dangerous Man Alive”. Das coisas mais secas, singelas e justas que consigo enunciar, e, das mais literalmente emocionantes e significativas de uma nova idade. Dwan foi o cineasta mais simples do mundo, daqueles cujos filmes parecem somente escritos pela câmara e cortados pela tesoura, e isso mete medo. Ainda mais visto nesta era, em que um filme deste tipo seria um festival de piruetas estilísticas e de fogo de artificio (aka CGI). Arrepia a história do homem mais perigoso vivo que rapidamente descobre que quer é ser como os demais.

Pede-se, a quem de direito, uma daquelas reposições de verão, no cinema, cópia impecável e não sei mais o quê. Ou então, simplesmente, uma edição DVD. A minha cassete está podre.
2008 – algumas notas.

Tinha uma série de outras coisas escritas sobre o ano que termina, com muito palavrão, muito insulto, etc. decidi auto censurar-me, por uma vez, e ficou apenas o seguinte:

Continua a ser o país onde o Rui Pedro Tendinha passa por critico de cinema (vou ali vomitar, já venho…), não sei quê do Estoril film festival e vedeta do meio. Quase a mesma coisa para os disparates sensaborões do Eurico de Barros, quase a mesma coisa para Jorge Mourinha, o homem do cinema, da televisão (tem que a ver horas a fio, como consegue fazer isso e ainda descortinar que o Nolan é melhor do que o Burton?) e de tudo um pouco…

A mesma coisa para outras áreas: O Miguel Sousa Tavares a escrever sobre futebol é o degredo dos degredos, a Leonor Pinhão ainda é pior, o Carlos Azenha no "Domingo Desportivo", os comentadores de futebol da sic e da tvi, o António Pedro Vasconcelos a escrever sobre qualquer coisa (vou vomitar outra vez…), ETC…

Foi pena os cortes, havia muita asneirada acerca das novelas da tvi, dos noticiários da tvi, dos apresentadores da tvi, das cores da tvi. Muitos impropérios dirigidos ao Leonel Vieira, a essas modelos que se julgam alguém porque se despiram para umas revistas (mesmo que sejam boas…), a essas modelos e não modelos que passam por actrizes, a esses modelos e não modelos que passam por actores, ao palhaço do Alexandre Valente, aos homens, jovens e putas da publicidade (publicidade publicidade e publicidade=cinema), a Prémiere, etc…

domingo, 28 de dezembro de 2008

4 filmes de 2008 *


"We Own the Night", James Gray

"Coeurs", Alain Resnais

"No Country for Old Men", Joel Coen, Ethan Coen

"Les Amours d'Astrée et de Céladon", Eric Rohmer

Que dizer? que James Gray é um dos maiores cineastas americanos tout court; Ford + Visconti; parábola cristã + filme de terror; cineasta dos silêncios e da fatalidade; ou então que o filme do Resnais é tão bom como qualquer outro dos seus; mise-en-scène do coração, objecto raro; Os Coen? extraordinária explosão de violência, mas não uma violência qualquer, sim uma violência dolorosa, letal, aquela que faz muito mal, que magoa, que nos faz cheirar estes novos tempos e estes novos humanos. Catarse necessária. Além do mais, o filme americano mais bem filmado dos últimos anos, movimentos estonteantes entre o western e o thriller, tudo dito. Rohmer mostra que é possível ser absolutamente diferente de tudo e, finalmente, tão próximo de memórias que já não julgava possível. Do cinema e da infância. Qualquer um me fez voltar a acreditar, Gray e Rohmer de maneira eufórica.

*estreados comercialmente.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Continuo a pensar o mesmo, sabendo que existe um filme de Tourneur. A minha dúvida é: “Out of the Past” é ou não é um film-noir? Todos os livros da especialidade, e todos os especialistas, dizem que, de facto, é, mas…
Tenho para mim que é mais um filme fantástico e insondável – como “Cat People”, “I Walked with a Zombie”, “Night of the Demon”, etc. – do que um noir, apesar de todos os signos, iconografia, predestinação, fumarada, etc.
Repare-se numa cena, a que eu acho mais fabulosa, perto do final, quando Robert Mitchum se encontra, secretamente, com Virginia Huston, na floresta. Por momentos estamos absolutamente no universo lânguido, escorregadio e do outro mundo, onde permanecemos quase sempre no “I Walked with a Zombie”. É uma cena directamente saída desse filme de 1943, com todas essas sensações e com todas as luzes e sombras a trabalharem e a moldarem-se da mesma forma. O molhado, o molhado, húmido…

Mas num filme tão rocambolesco e tão cheio de enigmas (exteriores e interiores) reconheço-me mais dentro desses universos ocultos do que num qualquer noir puríssimo, que é o que todos os compêndios apontam para este filme. Ah, ainda aquela cena da casa, quando Mitchum e Jane Greer combinam pirar-se e enganar o pessoal todo. Aqueles recortes e aquela panorâmica para a porta aberta não enganam, o que está da parte de fora muito menos…

Raymond Chandler esotérico (se é que ele também não o foi muitas vezes…)? Foi o que me ocorreu num determinado instante.

aula de cinema



A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Souza-Cardozo. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.
Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor. E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça, pela própria natureza da sua poesia. Como Antígona, o poeta do nosso tempo diz: Eu sou aquele que não aprendeu a ceder aos desastres. Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas, a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: que não somos apenas animais aguçados na luta pela sobrevivência, mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.

Ó Sofia, se eu fizer um balanço sobre o que tem sido a minha vida, no fundo, o balanço que eu faço é exactamente o balanço que fiz há muitos anos quando escrevi O Coral, que é isto: Creio na nudez da minha vida. Eu não acredito na biografia, que é a vida contada pelos outros. No fundo, a única biografia que eu tenho é a que está na minha poesia.
E essencialmente, aquilo que eu procurei, foi esse espírito de nudez, foi pôr-se em frente de cada coisa, como se ela nunca tivesse sido vista e começar a olhar desde o principio, como se fosse o primeiro dia do mundo, e no fundo quando eu digo, "creio na nudez da minha vida" é a mesma coisa...
em "Sophia de Mello Breyner Andresen", de João César Monteiro.


(O filme é tão belo e tão forte como o mais belo Peleshian ou o mais belo Barnet. Em 1969 e com 17 minutos, Monteiro já era o maior.)

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

"Zwartboek". Sem pedir licença.

again, tão americano e nem um bocadinho americano.
Le film de bourrin ultime est aussi l'un des plus finauds de la décennie. Paul Verhoeven plonge Ken et Barbie dans une guerre gore contre des insectes géants venus de l'espace, et c'est tout le spectacle hollywoodien qui plonge. Dans cet univers asexué où les militaires portent les impers de la gestapo, la logique du de l'industrie du divertissement est poussée dans ses derniers retranchements, et dans les orties aussi.

…et c'est tout le spectacle hollywoodien qui plonge. Exactamente isso, uma suposta inserção num modelo e num meio, com love story e tudo + o fundo totalitário que lhe serve de origem, logo uma ironia e um sarcasmo demolidor, faz desta subversão o filme mais especial do top 10 (97/07) que a Cronicart.com apurou. Simplesmente: além de toda a densidade e riqueza narrativa, bem como todo o não dito e assustadoramente sugerido, é um daqueles tour-de-forces que aos 30 segundos já me relembra o grande cineasta lúdico (que medo desta palavra…) que Paul Verhoeven também é. Excessivo? Assustadoramente livre, inteligente. Brutal.

Próxima revisão: “Basic Instinct”, mais um dos filmes de infância. Grande filme pedagógico.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Todo, claro. Mas, a parte em que o filme vai para o deep south americano, wow, pega fogo e levanta voo…E-X-T-R-A-O-R-D-I-N-Á-R-IO.

domingo, 21 de dezembro de 2008

levar as coisas para a frente…

Em “Play Misty for Me”, entre o minuto 10:48 e o 10: 49, ou seja, a rapariga a sentar-se ao lado de Clint, num bar, e o corte para os dois em casa dele. Sem mais nada.

1. Van Gogh (Maurice Pialat)
2. Miller's Crossing (Ethan & Joel Coen)
3. Barton Fink (Ethan & Joel Coen)
4. The Godfather: Part III (Francis Ford Coppola)
5. Close Up (Abbas Kiarostami)
6. J'entends plus la guitare (Philippe Garrel)
7. Edward Scissorhands (Tim Burton)
8. Hachi-gatsu no kyôshikyoku (Akira Kurosawa)
9. Les Amants du Pont-Neuf (Leos Carax)
10. Paris s'éveille (Olivier Assayas)

Cahiers Du Cinema, 1991
...........


Evidentemente que esta lista está excelente. O filme do Pialat é daquelas coisas para as quais todas as palavras permanecerão sempre em perda. O terceiro Padrinho do Coppola é o melhor de todos. “Close-Up”, a redefinição de quase tudo. O do Carax, uma hecatombe lírica/existencial, de resto, o mesmo para o filme do Garrel. Etc. Mas, de 1991, esse grande ano, falta o meu personal favorite e uma obra-prima absoluta, “Terminator 2: Judgment Day”, de James Cameron. Se a lista fosse minha, esquecia um dos exercícios estilísticos dos Coen e metia lá o Cameron. É daqueles objectos explosivos e seminais, produzidos no centro da grande máquina de Hollywood, mas que estão (ia dizer cabotinamente, mas acho que não) contra a geração mtv, essa juventude que cientificamente, e depois de uma valente guinada na evolução ontológica do homem, deixou de ser capaz de aguentar filmes – e não só filmes – com planos de mais de 10 segundos. Um professor que eu tive jurou-me que a culpa não é dos jovens, nem sequer é estupidez, o cérebro destes novos cinéfilos, e masturbadores das imagens, é que rejeita imediatamente a duração. Oliveira, aí que seca, "Zodiac", muitas palavras, muito longo, parece um filme antigo. Quando é que adaptam o GTA ao cinema? Professor, em vez de filmes inteiros, podemos só ver trechos?

Cameron não só é visceral, obsessivo, dono de um prodigioso sentido espácio-temporal, como também sabe fazer durar as imagens e as emoções. E sabe construi-las como ninguém, isto, sempre ao lado, mesmo que no mesmo campo, dessas novas imagens e conceitos, daí o sucesso do empreendimento. Compare-se qualquer uma das cenas de perseguição entre as duas máquinas e constate-se que Cristopher Nolan, e o seu cavaleiro de negro, são apenas publicidade filmada em película, somente com mais um bocadinho de tempo de produção, com mais um bocadinho de dinheiro, e com uma pompa filosófica (ahh, o bem e o mal) capaz de tornar enfardável os filmes de Lucas. Aquela sensação apocalíptica do filme de Cameron torna o filme de Nolan qualquer coisa próxima dos teletubbies. Merda, já me perdi...

A minha formação foi em grande parte feita com este filme, e é com satisfação que o digo. Não me impediu de descobrir tudo o resto. Sou dos que primeiro se passaram com os filmes de James, com os de Bruce Lee, os com Van Damme, os de Stallone, “Road House”, “Miles from Home”, Steven Seagal, etc. Só mais tarde, muito mais tarde, é que vi carradas de Ozu (“Banshun” foi o despertador), de Mizoguchi, “Ukigumo”, Bresson, Stroheim, alguns Straub, o Dreyer, Souleymane Cissé, “La Belle et la bête”, Fregonese, etc. Só em 2002 me descobri, sozinho numa sala, defronte de Oliveira e do seu “Um Filme Falado”…

Acho que tanta coisa e o meu único objectivo era prestar homenagem a este filmão, de um grande autor americano. O resto da obra de Cameron não comento, mas, novo toque a essa cambada protegida com capa, espada e pose catedrática, deixo Jacques Rivette (o grande auteur e o grande critico) comentar a propósito de. Não concordo com ele, já agora.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Melhores 2008 – plano do ano. Em “Ne touchez pas la hache”, Jeanne Balibar resolve dar uma pianada, Guillaume Depardieu vai-se aproximando, ouve atenciosamente e acaba por lhe dizer que desconhecia que uma música pudesse ser tão comovente. Sai da sala, ela continua. Um fulgor dramático - som, imagem, movimentos - absoluto.

Só mais uma adenda, para desmistificar: não é preciso ser tão sério, reverencial e quadrado. Aposto que Rivette também se divertiu ao organizar o filme. Aqueles intertítulos, são de uma graça e de um ironia capaz de retirar o tapete a esse pessoal que só fica com 1% do cinema que se faz e, que mesmo assim, não sabe o que tem defronte. “Aço contra aço” ? Jacques sabe-a toda e não diz nada a ninguém…

Melhores 2008 - I don't think you should FEEL about a movie. You should feel about a woman. You can't kiss a movie.


Rita Andrade na MaxMen Fev. 2008

Núria Madruga na GQ Maio 2008

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Não podia deixar passar isto em branco. “The Last Picture Show” é talvez o filme americano que eu mais gosto, não digo o melhor, digo o meu favorito e o que mais me comoveu. Dono de uma nostalgia e de um amor por um tempo, que na altura estava a acabar – o cinema clássico (e as gentes das small towns) – que sempre me atirou ao tapete. Como é possível esquecer a cena inicial, os dois putos – entre eles a personagem de Sonny Crawford, de facto, inesquecível – a serem gozados pela humilhação do jogo de basebol, o vento que sopra forte e as canções que tocam em cada bar? A cena em que os três vão de carro, com Cybill Shepherd mais luminosa do que nunca, de cabelo ao vento. Ou o momento em que o cinema local, naquela pradaria, exibe o seu último filme – “Red River”. Enfim, a minha cena predilecta talvez seja aquela em que Sam the Lion (Ben Johnson) conta das suas, junto a um lago, com os putos a escutar, fascinados. De arrepiar esta carta de amor a Hawks, a Ford, a Welles…

O Bogdanovich é dos mais lamentavelmente esquecidos, subestimados e arrumados, no cinema americano.
«É um grande filme de refeições, como muitos de Oliveira, há uma que é espantosa, que é a da boda, pois aqueles que trocam palavras estão de costas, é um pouco "O Vigilante" do Coppola, somos chamados a escutar às portas, debaixo da cadeira e a assistir a esse jogo em permanência de coisas que se contam à volta dela…»

Philippe Azoury, jornalista do Libération, na análise de “O Principio da Incerteza”. Curiosa ligação a Coppola, sendo Oliveira o cineasta menos Coppoliano do mundo, principalmente a um filme tão sui generis e cerebral como “o Vigilante”. Não sei se está bem ou mal dito, não me apetece fazer crítica dos críticos, vale pela invulgaridade. Já agora, o filme é uma bomba estética, o mais radical e louco de Oliveira neste século, carregado de rituais e raccords inacreditáveis. Aquela sequência final em que os palhaços pegam fogo ao bordel, é ou não é o elo ao cinema de Monteiro?
Quando algum dia tiver que me demitir de um emprego, que seja por motivos semelhantes aos de Jack Lemmon em “The Apartment”. Pela mesma dignidade daquele homem e, factor tão importante, por uma Shirley MacLaine qualquer. Aquele homem, que por um misto de distracção, bondade e estupidez se viu no topo daquela empresa assustadora, plantada no centro de New York. E, praticamente pelos mesmos motivos, se apaixonou pela rapariga dos elevadores e ela por ele. Como se sabe, acabaram os dois a jogar às cartas no final de mais um ano. Isto e ainda mais, e, se calhar acima de tudo, muita verdade e muita inteireza, naquele mundo podre e maquinal.

Que filme! Que filmão! Uma coisa inteligentíssima, incatalogável, uma daquelas graciosidades que jamais a Hollywood de hoje produziria. Nem acho que seja uma comédia, pelo menos eu não me ri por aí além, aquilo comove-me mais do que me puxa ao riso. É acima de tudo um daqueles contos americanos, mas universais, claro, de um cinismo e de uma negrura avassaladoras, com um revestimento e um fundo que descentra a coisa de qualquer obviedade e torna o filme inocente, apaixonante. Nem é preciso estar para aqui a dissertar sobre o génio visual e rítmico de Billy Wilder, são um milagre aquelas escalas e o modo como põe as personagens sozinhas e solitárias na grande cidade. O ritmo é algo que nasce, de um argumento bem esgalhado, é verdade, mas acima de tudo de um domínio do plano e da sua tensão interna, que é de mestre. E como estes homens sabiam montar um filme…Fluição, é isso. Estou embasbacado, e o Lemmon é um dos maiores de sempre, na boa…

Por mim dispenso perfeitamente o Woddy Allen (exeptuando certas coisas, evidentemente). Dispenso ainda mais, muito mais, o Alexander Payne, lembro-me de certa revista ter escrito que Wilder tinha encontrado sucessor. AHAHAH…

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Se não existisse “Vale Abraão” (que ideia horrível…) “Viagem ao princípio do Mundo” era o melhor Oliveira dos anos 90. Dane-se estas considerações, é uma jóia única do cinema. É ao mesmo tempo o seu filme mais sereno e límpido (aquelas paisagens e lugares, que tão bem conheço, fazem o resto) e um dos mais graves. Como disse uma vez o Vasco Câmara, Oliveira é um género em si, mas, sendo um pouco espertinho, sempre posso evocar o formalismo e o cinema da memória de Resnais e a pureza e liberdade de Rossellini. Duas formas opostas que tornam o filme grande. Grande e prazeroso, 95 minutinhos que voam como um filme, sei lá, de Ulmer. Mas como diz o outro, aqui a tuga preferiu o caminho das telenovelas.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Por falar em Valério Zurlini.

A Sonia Petrovna continua a ser das coisas mais fascinantes que me lembro.
CASINO

por João Bénard da Costa

O Nuno de Bragança costumava citar um escritor (curioso, não me lembro qual) que dava por conselho aos jovens romancistas nunca escreverem sobre acontecimentos recentes. «Deixem passar pelo menos vinte anos sobre a história “fundamental” que vos aconteceu. Só nessa altura saberão se ela foi mesmo fundamental e – mais importante – só nessa altura ela se poderá tornar fundamental para outros.» Pus aspas nem sei bem porquê. Não estou nada certo que as palavras do Nuno B. tenham sido essas ou que ele citasse ipsis verbis o escritor de que não recordo o nome. Além disso, como conselho para jovens, parece-me absurdo. De que falariam então? Da infância?

Vem isto a propósito das dificuldades de juízos definitivos sobre filmes recentes. Diz-se – costuma dizer-se – que o tempo julgará e que quem demasiado se excita com novidades envelhece depressa. Quantas vezes me disseram (e até eu disse) sobre este ou aquele filme muito amado outrora e jamais recontemplado: «Reviste-o recentemente? Também eu gostei muito em tempos, mas envelheceu imenso e envelheceu mal.» Às vezes acontece, com os filmes como com as pessoas. Mas, pelo menos a partir de uma certa idade, ou não acontece tanto como se diz ou o que de mais grave acontece acontece-nos a nós e não à obra ou pessoas que amámos. Por mim falo, e agora falo só de filmes: o que muito amei, depois da segunda metade dos anos 50, amo ainda mais hoje. O que nunca amei, menos ainda amo hoje. As excepções confirmam a regra.
Por isso, eu não tenho grande medo de corar daqui a vinte anos (se em outro mundo se corar) sobre o que vou escrever de Casino de Scorsese. Julgo que não me enganei. Ou, se me enganei, enganei-me em tudo, o que equivale a dizer que não me enganei em nada. Casino é o mais belo dos filmes de Scorsese. Como New York New York, The Last Waltz, The King of Comedy, After Hours, The Last Temptation of Christ, The Age of Innocence (ia quase escrever Cape Fear mas dei uma nega, ainda estou para perceber porquê)1.

Scorsese, duvido que pelas mesmas razões do tal escritor, filmou acontecimentos passados há cerca de vinte anos. Las Vegas como Las Vegas foi nos anos 70, quando havia aquele «buraco negro» à roda da cidade (assombroso plano, esse) e ainda não se tinha transformado na disneylândia actual, se acreditarmos no que diz, no fim, a título póstumo, Sam Rothstein (Robert De Niro).

Evidentemente, Scorsese, filho de «blue collar workers» de «New York`s Little Italy», nunca foi a Las Vegas no tempo do filme e nada de importante se passou lá que directamente tivesse que ver com ele (a não ser pelo lado italianamerican, esse do documentário de 1975, a que uma vez se referiu como o embrião de uma futura história oral da América). O recuo não vem daí. Desde The King of Comedy (já lá vão doze anos e sete filme e meio) que Scorsese não filma o presente, que Scorsese filma, «after hours», «before the hours». Do presente (mais ou menos, que o que vemos é precisamente situado nos anos 80) só arrancam as sequências iniciais e finais, antes e depois do que é e não é um flash-back. Mas, essas sequências, ou até mais essas sequências, são sublinhadas pela instância do sonho. («No meu bairro natal, Little Italy, para os operários e para os pequenos-burgueses, Las Vegas figurava-se como o reino do sonho, especialmente para os “déclassés”, para os que, no meu filme, eu chamo “wise guys”.»).

E é como um sonho que Casino começa. Em fundo, na banda sonora, Bach (A Paixão Segundo São Mateus) e, na banda imagem, as cores fulgurantes de Las Vegas, lugar da «paixão» a que vamos assistir. Em primeiro plano, a silhueta que depois saberemos ser a de De Niro e, quase logo a seguir, as chamas do carro a arder. Três, quatro planos (não os contei, mas não serão mais) e sabemos onde estamos: num mundo sem amor, num mundo sem amenidade («aus Lieb und Huld») ou no sonho desse mundo.

Simultaneamente, o onirismo é sublinhado por três elementos capitais: a cor (do fato cor de morango esborrachado de De Niro aos diversos amarelos das chamas e do deserto), cor destoante como a do tecnicólor em três bandas dos filmes dos anos 40, com duas dominantes e uma atenuação; a fusão de sombras e chamas; e, logo a seguir, a voz off, voz off da personagem que pressupomos morta. Como Vertigo, Casino começa com uma situação que torna inverosímil a salvação do protagonista e, no entanto, ele salva-se. Como Sunset Boulevard, a história do que aconteceu vai ser-nos narrada por um morto (nesse caso, por alguém que supomos morto). E, apesar do tom bem wellesiano da primeira frase («Quando um homem se apaixona por uma mulher, tem de confiar nela e não lhe resta outra alternativa.»), não temos dúvidas que aquela voz nos fala do «além», um além que conhece este «aquém» e não têm quaisquer ilusões sobre ele. Já sabemos que ele errou: não devia ter-se apaixonado pela mulher que refere, da qual, nessa altura não sabemos ainda nada e que só muito mais tarde irá entrar no filme. Estamos no reino dos mortos, da omnisciência fácil, o mesmo onde se situou William Holden em Sunset Boulevard.

No final, saberemos que Sam Rothstein não morreu e que foi mesmo o único que não morreu, no vórtice que a todos sorveu. Mas, contra as imagens de Las Vegas metamorfoseada em Oz, o protagonista é tão irreal (novamente, tão onírico) como o feiticeiro convertido do final do filme com Judy Garland. Terá alguma razão moral, já não tem nenhuma razão estética. Sobrevivente de uma tragédia, é um fantomático personagem dramático. Ninguém pode ser, ao mesmo tempo, Orestes e o Coro. A não ser que, como De Niro, fique condenado para sempre a errar nos lugares onde errou.

Mas deixem-me com a voz off. Ou com as vozes off, pois que outras, muito mais tarde, se virão juntar à de De Niro, para nos dar outras versões da história. Se já nos últimos filmes, sobretudo a partir de Goodfellas (que, iluminado por Casino, pode ser revisto a outra sombra) Scorsese tinha conferido à voz off um lugar cada vez mais fulcral (e pense-se apenas na voz mágica de Joanne Woodward, conduzindo The Age of Innocence do lugar de Edith Wharton), nunca, como em Casino, o tratamento dado a ela, ou a elas, foi tão radicalmente vertiginoso. Porque é nela, ou nelas, que se perde o ponto de vista, a subjectivização que o principio do filme parecia enunciar, exactamente quando Sam Rothstein perde o dele, ao ver, numa imagem do ecrã do casino (imagem vídeo, ou imagem como vídeo tratada) Ginger Mckenna (Sharon stone), a mulher que não só precipita a derrocada do poder visual dele, como do poder de todos os outros.

Um só filme, de que eu me lembre, conferiu, até hoje, à voz off uma dimensão tão alucinante. Falo de The Saga of Anatahan de Sternberg, em que, como aqui, narra, antecipa, comenta, resume, elide ou mostra o que diz elidir. Associação gratuita, com dois mundos tão diversos? Menos do que se possa supor, porque, num e noutro filme, a paixão dominante é a paixão pelo poder e porque, num e noutro filme, os personagens não são destruídos por inimigos externos mas pelo inimigo que trazem dentro de si. Qualquer deles – De Niro, Sharon Stone, Joe Pesci, o genialíssimo Joe Pesci – bem podia ter dito o que Sternberg disse em Anatahan: «O engenho do homem para se destruir a si próprio é maior do que qualquer outro. Nos seres humanos, os furacões desencadeiam-se imprevisivelmente. É difícil reconhecer os sinais que os anunciam.» Algum, daqueles muitos que se reuniram no casamento de Sam e Ginger (a começar pelos próprios), terá jamais pensado que, nessa tarde, começava o princípio do fim deles?

Guardem esta ideia do princípio do fim. Voltarei a ela. Mas, por agora, quero continuar nas bandas sonoras, que, de Bach a Bach (princípio e fim) nos irão reservar todas as surpresas, de Little Richard a Dean Martin, culminado na citação do tema de Delerue para Le Mépris de Godard, na grande cena do deserto entre Sam e Nicky (Joe Pesci). E, se Casino é, visual, vocal e musicalmente, um filme em forma de fuga, permito-me eu, a propósito dessa sequência, dizer que nunca, depois de Renoir, tinha visto, assim, enquadrados em leve contra-plongée, dois homens contra o céu, sabendo um que a única possibilidade de sair vivo dali é manter o outro sob o poder do seu verbo e aprendendo o outro, que o escuta, que aquele é o único homem que nunca será capaz de matar. E não sabíamos nós – eu não sabia, pelo menos – que Renoir podia assim rimar com Godard e aprendemos nós – eu aprendi, pelo menos – que, no zénite de uma relação de amor entre homens como aqueles, Godard e Renoir podiam vir mais à memória do que Hawks, demasiado americano para os entender. E é a seguir a esse longo plano no deserto, pavidamente estremecente, que a câmara, sobre o chão do casino, varre tudo num travelling a toda a sela, para a última celebração do poder de Sam Rothstein, «the fucked jewish».

O que é que eu estava a dizer? Estava a falar da música. «Quis conservar o espírito dos anos 70. É que se o público ouve, de repente, uma música de compositor, diz com os seus botões «estou num filme» e era isso que eu queria evitar. A ideia veio-me de Truffaut, mas também porque, nos anos 60, as músicas dos filmes entravam logo na moda. A canção de Moulin Rouge, por exemplo, tornou-se um sucesso enorme, tocavam-na a toda a hora. The Barefoot Contessa, a canção de Lara, Rear Window… Há também Walk On the Wild Side, a versão de Jimmy Smith, a melhor que eu conheço…»

Prodigiosa colagem musical, prodigiosa vertigem musical, a banda sonora segue, no vórtice e no vértice, o não menos prodigioso barroquismo da narração e das imagens, com o mesmo fôlego e a mesma dispersão. Porque Casino é um filme disperso, um filme gastador, que enche as margens (os mil e um episódios, aparentemente secundários, que podiam dar mil e um filmes diversos) para desnudar o centro, o centro trágico que é praticamente resumido na frase inicial e na presença-ausência do personagem de L.Q.Jones. E talvez não haja muitos exemplos de absolutismo trágico para pôr ao lado de duas sequências como a da morte de Nick, depois de ver matar o irmão, ou a do corredor do hotel, onde Sharon Stone, penteada à Simone Signoret, esbanjou os milhões de dólares até à última overdose. Uma (a da morte de Pesci) em ruído e fúria, excessiva e operática. A outra (a que nos fala da morte de Sharon Stone) em silêncio e vazio, minimal e surda.

Se, um dia, alguém quiser saber como foram os anos 60 e 70, The Last Waltz de Scorsese diz-lhe tudo. Se, um dia, alguém quiser saber como foram os anos 70 e 90, Casino de Scorsese diz-lhe tudo.

«The beginning of an end?» «the end of a beginning?» «Say, the beginning of the end of the beginning.» «And if you don`t recall the singer, you can still recall the tune.» Casino é a Última Valsa que foi possível dançar. Quem acredita no «princípio do fim do princípio» acredita no eterno retorno. «Fantasmagoria, luzes, muito dinheiro, uma espécie de vórtice, mas nunca sexo». Desde New York New York, pelo menos, foi sempre assim. E assim continuará a ser até no inferno, que, se não é Casino, não sei que seja.

1. Hoje acrescentaria Bringing Out the Dead (1999). Desculpem a póstuma intromissão...

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

top of the world!

Telegraficamente: “White Heat”, de Raoul Walsh, continua um filme perfeito, sinfónico, cósmico. Hoje, 15 de Dezembro de 2008, e sempre.
Cá está o homem, o génio, um dos meus heróis, Don Siegel. Homem duro, lacónico, dos que levavam as coisas para a frente e não se queixavam com coisinhas, foi também o mentor de um tal Sam Peckimpah. Porque o ciclo Eastwood, que está a acontecer na cinemateca, também é um pouco um ciclo Siegel (como é Leone, Wellman, Post, etc.) há que fazer a minha devida homenagem ao único realizador, dos que conheço, que me fez parar um filme para respirar um pouco e limpar o suor do rosto. É verdade, acho que neste caso não estraga a reputação a ninguém, sempre posso dizer que não aconteceu o mesmo, por exemplo, com Stanley Brakhage. Tal coisa sucedeu no doentio “The Beguiled”, esse western, esse filme de guerra, esse melodrama, esse filme de terror, etc. Um bando de mulheres, numa casa que é símbolo de loucura, e que são para Eastwood bem mais perigosas e temerárias do que a própria guerra que explode na parte de fora da casa, acolhem-no e vão tratar-lhe da saúde. Cores desaturadas e ruído insalubre, zooms fora de tudo, um realismo que é logo abstraccionismo. Puta-que-pariu. A cena: as referidas mulheres a amputarem uma das pernas a Eastwood. O que se passa nesses minutos não consigo descrever por palavras. Existe uma serra, uns panos, qualquer coisa para trincar, carne branca e…

“The Beguiled” é a minha recomendação primordial, mas é criminoso perder uma das coisas mais estranhas e sedutoras da sua carreira, “Two Mules for Sister Sara”, têm Clint como um cowboy fora de tempo, uma freira (Shirley MacLaine, fresca, fresquinha) daquelas que se enganaram no oficio e uma batalha final que é uma súmula da arte de Siegel. Acaba com os dois enfiados numa banheira, incluindo a farda, as botas do herói e muita, mas muita poeira.

Claro que “Coogan's Bluff” é obrigatório (outro cowboy), “Escape from Alcatraz” idem, e o outro já se sabe qual é.

Parecendo que não, outro dos que sabia que esta coisa é questão de ontologia. Outro dos que mandava o estilo e as marcas de auteur dar uma grande volta.
Richard Tuggle (na foto), mais um daqueles nomes que não fazem parte da grande história do cinema. Nem da grande nem da pequena, nem de nenhuma, talvez. Assinou apenas duas longas-metragens, e escreveu para Don Siegel (esse génio!) o extraordinário “Escape from Alcatraz”.
Dito isto é um cineasta fabuloso, “Tightrope” é um daqueles pequenos petardos do filme de acção torturado de perder de vista.
Torturado, é como anda pelo filme a personagem de Clint Eastwood, o detective Wes Block. Divorciado da sua mulher, portador de duas pequenas filhas, a braços com um estranhíssimo e perturbante caso de um serial-killer. E a forma como esse paralelismo e interferência, da vida privada com o trabalho (e vice-versa), é trabalhada por Truggle e por Clint é arrasadora. Não é daquele tipo de filmes em que de vez em quando há um plano do detective a sair para o trabalho e a beijar as filhas, não, essa afectação mútua é obsessivamente trabalhada, mostrada, sentida. Com um certo humor, bastante audaz, mas também com um desconforto e um certo desespero indisfarçáveis. O filme é sobre esse balanço e o seu produto, as suas consequências. Consequências e acções que serão um ataque psicológico para Eastwood e para o espectador. Aliás, uma interpretação de Clint a colocar ao lado de qualquer outra das suas – homem já com um passado duro, presente estilhaçado e com muita pouca crença, num acúmulo de raiva que fará a sua explosão numa cena poderosa. Lá estão o basebol e os cães para compor a coisa.
Que filme notável, deliciosamente artesanal e singelo, daqueles que fazem das fraquezas as suas virtudes maiores e o engrandecem. É víscero, sujo, escuro, filmado com aquelas lentes recortadas, com as cores tórridas e com os ruídos que fizeram a história da década transacta a este filme.
Têm lá dentro cenas inclassificáveis, demenciais e não muito imagináveis neste tipo de filmes e do local onde são produzidos – as cenas de sexo, perfeitamente loucas, aqueles percursos de Eastwood pelas casas e bares de prostituição, aquelas luzes e a maneira de tratar o assassino, etc. Ainda as passeatas com as suas filhas e a nova namorada, naqueles lugares – quase cenas antropológicas e documentais – o desenho da personagem da namorada e o seu oficio, tudo inteiramente insólito e anacrónico, é preciso lembrar que o filme nasceu na euforia dos 80´s.
E depois é uma maravilha quando o filme pretende, elegantemente, fazer-nos cheirar os grandes filmes clássicos de detectives, de Walsh a Hawks, ou quando entra num romantismo que nos faz espectralmente sentir coisas que só a Hollywood áurea nos deu (a cena das ostras, no barco).
Os 20 minutos finais são ainda prodigiosamente proto-Michael Mann, nessa busca de realismo total e amplamente diferente dos classicistas que o procuraram e que faria, décadas depois, os milagres de “Miami Vice”. Isso e uma montagem, ala “Madigan”, de cortar a respiração e de fazer corar qualquer Wachowski deste mundo.
Patada final: muito, mas mesmo muito melhor, do que aquele filme com Jack Nicholson e de Polanski que papou uns Óscares, e que faz as delicias da classe dos argumentistas diplomados. Aí era ilustração e pompa, aqui é animalidade, fogosidade, coisa orgânica.

Exagerei? Não. É a minha recomendação para o ciclo Clint Eastwood na Cinemateca-Portuguesa. Para lá das obras-primas maiores do que obras-primas.

domingo, 14 de dezembro de 2008


A mesmíssima coisa para a imobilidade da câmara de Oliveira, aqui em “Party”. Obviamente que ele não acredita em borboletas, e a velocidade do que está no dentro é estonteante, vertiginosa. Velocidade e volúpia, pois é.

Claro que são aqueles filmes-portugueses-falados-em-inglês-e-inspirados-em-tarantino que em comparação a isto são um bando de caracóis.
Num simples corte e num avanço de Duke em direcção à câmara, toda a arte de Ford, que foi, obviamente, toda a arte da grande Hollywood. O turbilhão de emoções dentro da fixidez do plano.

"Rio Grande", já agora.
"I don't have ideas,"

"It's all instinct." L. B

sábado, 13 de dezembro de 2008

Bom, estive a rever "Vale Abraão" (a 2º vez este ano). Ficou claro que para mim é um tratado sobre a beleza, sobre os limites e transgressões desta. Não no sentido corriqueiro, não sobre “belezinha”, enfeite, bonito. Nada disso, nem quero sequer entrar nos terrenos do sublime, pelo menos de maneira vincada. O que acho é que existe uma fronteira para a beleza, uma margem e um limite, que quando é ultrapassado começa a doer, a luz adquire uma aura que já não é deste mundo, começa a queimar, irradia ferozmente, etc. Acho ainda que deverá existir uma segunda borda, que é, obviamente, ainda mais forte, demencial, indefinível. Terminal, sobretudo terminal. Da ordem do sagrado. Claro que é aí, nesse limbo e nessas constelações desmedidas, nesses aléns, que está "Vale Abraão" e a luz que o banha, é aí que está, acima de todas as coisas, Leonor Silveira, a presença mais (e aqui tenho que usar a palavra…) sublime que alguma vez vi na tela. Se é deste mundo, sou eu que não sou deste mundo. Ponto.



Mas a questão do post, para além do pretexto de me declarar a Leonor Silveira, tem a ver com um pedido. Alguém possui cópias de “A Caça”, “Acto da Primavera” ou “Benilde ou a Virgem Mãe”?? A sério, em qualquer formato…

Escrevam-me para o e-mail, joseoliveira_braga@hotmail.com

Compenso com uma cópia do último filme do Glauber Rocha, “A Idade da Terra”, Widescreen Anamórfico (2.35:1), resumindo, cópia deste DVD. Uma das melhores peças do cinema moderno.
Ou então troco por “ Le, Soulier de satin”, cópia integral e perfeitamente impecável…

Fico ainda agradeçido eternamente.

A sério, preciso desses filmes…preciso mesmo.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Frédéric Bonnaud, ao telefone a partir de Paris, garante que nem sequer estava a ser irónico quando escreveu isso. "É uma graça, mas é real. Serge Daney, um grande crítico francês, costumava dizer, quando encontrava Oliveira, "eis o maior cineasta do mundo", e Oliveira ria-se. A questão é que Daney acreditava mesmo nisso. E eu também."

Parabéns
É para mim um dos momentos mais comoventes e vitalistas dos últimos tempos. Jerzy Skolimowski regressou assim ao cinema com um objecto absolutamente virgem e perfeitamente aparte de qualquer coisa que se faça hoje em dia. Aparte de qualquer cinefilia também. Tive muita sorte ter descoberto a obra do polaco no mesmo ano em que ele fez este extraordinário “Quatro Noites com Anna”, pois apesar de tudo ser cândido e novo, e bastante experimental mesmo, está bem próximo de um filme que me impressionou de maneira indizível, “Deep End”. Assim como naquele filme um rapaz expiava e se apaixonava pela rapariga dos balneários públicos, neste temos um homem, já com uma idade bem diferenciada do rapaz, que também expia e vive uma paixão surreal com uma enfermeira que mora em frente da sua casa. E se em “Deep End” era convocada a juventude e, num certo sentido, a perda da inocência e a entrada na idade maior, neste temos um senhor, já bem feito e experimentado, mas possuidor de pulsões e desejos tão à beira da infância (e do todos os universos contíguos) e do crescimento, bem como uma ânsia voyeurista e uma curiosidade tão inevitável como acontece sempre nesse paraíso onde a maravilha ultima é o desejo transgressor. No fundo aquela ideia de que todos os s impulsos e maravilhamentos primitivos poderão sempre voltar. Um eterno retorno do sensível e desse prazer.
E a forma como Skolimowski trabalha essa circularidade, juntando a pureza e os actos jovens daquele homem com todos os sinais de morte e envelhecimento presentes no filme, aquele pequeno quarto como lugar de todo o fascínio e redescoberta e a atmosfera opressora e feia daquele lugar, a intriga paralela de uma violação e o presente da paixão e do encantamento, é assim tão significativa e demonstradora da própria vontade do cineasta numa segunda juventude. Pois é cinema essencial, cheio de desejo experimentador, libertador, sem atenção a qualquer convenção e sem medo algum de arriscar, de criar raccords demenciais, de inventar atmosferas. Mas se é tão próximo daquele filme de 1971 também o será, por exemplo, de “Moonlighting”, nessa vontade voraz de trabalhar cada imagem e cada som como algo absolutamente singular e possuidor de vida própria, como um velho artista que carpinteira pacientemente cada elemento da sua obra. Daí essa paradoxal crispação entre sons e imagens para tudo permanecer tão virgem e caloroso, tão conciso mas tão vibrante.
Insisto no forte sentimento infantil – de resto a banda som enche vários momentos do filme com sons que parecem advir de qualquer brinquedo – na convocação desse mundo, que tão fortemente se desprende do filme. Nesse sentido a cena final, no tribunal, é reveladora e tocante: aquele homem, um empregado de crematório e homem perfeitamente comum, só a dizer verdades e a contar a transgressão que cometeu, mas como uma criança, cheia de vergonha, prestes a corar, as palavras a saírem-lhe com dificuldade. Contra-campo para a Anna do título, que age como verdadeira rapariguinha que descobriu do que foi vitima e que mal consegue enfrentar o rapaz. E até nesse aspecto Skolimowski impõe uma distância e um pudismo que evita qualquer escorregamento para algo explicito, muito menos pornográfico, tudo aparece em surdina e visto pelo entreaberto, pelo olhar hesitante e curioso daquele personagem inesquecível. E aqueles momentos em que o homem observa o objecto da sua loucura, pela janela, no escuro, são de uma fascinação que já não julgava possível, uma excitação mesmo, com as imagens e as suas possibilidades e promessas, com os segredos a desvelar, quase como nos primórdios. E aquele muro final, todos já sabemos o que representa, quem o não souber não é deste mundo. Enfim, foram precisos 15 anos para isto voltar a ser possível.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

filmar em portugal, II

Finalmente uma facção das gentes do audiovisual em Portugal – aquelas da televisão e da publicidade – parecem ter conseguido concretizar um dos seus objectivos máximos: uniformizar de tal modo as mercadorias que produzem para as salas (já não de Cinema mas do que lá lhe puserem, qualquer lixo passa por cinema) para assim elidirem qualquer noção de autoria, qualquer visão minimamente singular. O triunfo das convenções e dos técnicos/especialistas de mercado – os mesmos que fazem os estudos de mercado, à cata do que o pessoal quer, também escrevem o argumento; os que conseguem um restaurante de luxo para a equipa técnica e o elenco comer/ou os que arranjam umas garrafas de vinho tinto para os produtores e os poderosos beberem durante um qualquer jogo da bola, enquanto o operador de câmara filma os planos, são exactamente os mesmos que começam e acabam a montagem do “produto audiovisual”, em uma ou duas semanas. Muito hip-hop, muita mulher nua, muita ordinarice e zero de tempos mortos e… temos uma montagem perfeitamente formatada para o “povão” comer. Palha para os burros, perdoem-me a expressão e perdoem-me os burros.

Voltando à razão deste post: quem é Carlos Coelho da Silva? É que acho que ainda não passei os olhos numa critica que referisse o nome dele, afinal e apesar de tudo, o realizador creditado. Então: quem é o realizador deste filme? Não o será C.C.S, afinal ainda não vi uma única referência ao seu nome num telejornal ou numa discussão qualquer. Mais depressa serão – tenho a certeza – o produtor e o batalhão de analistas de mercado, directores de markting, etc., os realizadores e os inventores do final cut, do que o sujeito que também assinou esse êxito do audiovisual mundial, “O Crime do Padre Amaro”.

Estão prestes a conseguir, estão prestes a lixar tudo, basta ver aquele homem que tramou o João Botelho (quem o mandou meter-se com essa gente?) – outro grande realizador esse Valente – e constatar que o que importa é não levantar ondas, e, acima de tudo, apagar qualquer traço de autorismo ou de intelecto. Objectivos: muito público, muito dinheiro, muitas festas. Isso tudo e a promoção/celebração da azelhice, uma espécie de studio system mas sem redenção possível, sem salvação. É essa também a cruzada do realizador Vieira. Parece que ainda não o apanharam e parece que têm mais 2 ou 3 projectos em carteira. Convençam-se: nesse mundo não há realizadores.

Lixaram tudo, mas, já dizia o outro, a juventude têm sede de sangue. (espero eu)
Nova revisão de “25th Hour” (prai a sétima, há que deixar a marca), maybe, a big maybe, a obra-prima de Spike Lee e, juntamente com “He Got Game”, o meu favorito. Desta vez ficou-me o que James Brogan diz ao seu filho, Monty, durante o percurso que o levará a um inferno de sete anos na prisão. Tudo se passa ainda na cidade de Monty, que é a cidade de Spike: «Give me the word, and I'll take a left turn» sugere-lhe James, mas, Monty, tão destruído interiormente como exteriormente, diz-lhe que se fizer isso vai ser apanhado, fala-lhe do bar, etc., mas o pai repete-lhe: «Give me the word, and we'll go.»

Seguidamente entramos na sequência do sonho, ou, o último contra-campo impossível para aquela suspensão e aquele vazio em que as personagens habitaram todos os planos do filme. Todas elas desfilaram em perda, todas acabarão em perda. E num filme onde a palavra é quase sempre expelida com uma dose de violência atroz, esta foi a frase que desta vez mais ficou a ressoar em mim: «...came so close to never happening. This life came so close to never happening». Plano geral da saída de Nova Iorque, mais melancólica do que nunca, grande plano da cara esborrachada de Monty e…pum, negro para a saída do filme e para a consumação de um destino que jamais esteve em duvida. Tão urgente como a incontável dose de fucks defronte do espelho. Afinal, o que dói mais, o que impressiona mais: a catarse dos fodam-se, vão pró caralho, para este mundo e para o outro; ou então, a lancinante dor de estômago e esse mal-estar causado pelo abismo que se aproxima? Condenar toda a gente à danação eterna ou constatar que quem está fodido, literalmente, é ele mesmo? Impossível não me rever, eu e quase toda a gente. Give me a fucking break! É o ponto alto de um grande cineasta.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Recentemente reabilitado pela cinemateca portuguesa, devido a ter sido uma escolha de Pedro Costa no âmbito das comemorações dos 50 anos da instituição, “So Dark the Night” é mais um inexcedível exemplar da arte de Joseph H. Lewis. Tão bom como este, este, ou mesmo este. Neste momento o meu favorito, juntamente com "Gun Crazy". Certa a sua forte ligação à psicanálise e ao mito de Dr. Jekill and Mr. Hyde, certo que se trata igualmente de uma tangente ao filme noir, mas, é acima de tudo um objecto vertiginoso e abstracto sobre o mal e a sua identidade, sobre a dificuldade de o demarcar. Anyway, na sua curtíssima duração (outro dos segredos deste mestres da economia narrativa e visual) Lewis mergulha, sobretudo, na reversibilidade latente entre a escuridão e a claridade. Raramente a escuridão e a opacidade se fixou em algo assim palpável, orgânico, denso. Tanto no dark side da personagem principal, as trevas que se manifestarão quase sempre em elipse, como nas ambiências taciturnas e concretas. Mas Lewis sabe-a toda e o modo como a suposta luminosidade – em principio o reverso da medalha da escuridão – se faz tão labiríntica e opaca como o escuro da noite e daquele homem, é a preciosidade desta mise-en-scène e desta dialéctica (repare-se naquela cena incrível, imagens 3 e 4, onde no mesmo plano o rosto de Steven Geray nos é dado perfeitamente visível e escurecido, o interior e o exterior, assim plasmado). Pode até ser delírio, mas, diante destes abismos, penso mais no escuro e no negrume de Georges Franju do que propriamente nos mestres do noir americano, de Hawks a Huston. Uma simples ideia que é tornada total, uma recusa do simplismo e maniqueísmo entre o que se pode claramente ver e o que permanece nos fundos e nas entranhas. Sobre a complexidade humana, pois claro. Tudo matéria próxima dos interesses de Costa.
A crítica francesa de então, à míngua de novos autores a defender e de novos territórios a conquistar, lançou-se, por um lado, numa campanha de “autorização” pouco criteriosa (com os abusos que conhecemos – Tim Burton, por exemplo, santificado com demasiada presteza? - e os esquecimentos: Michael Mann, provavelmente um dos maiores cineastas contemporâneos, alvo do mesmo descrédito de que Carpenter havia sido vitima) e por outro lado, confrontou-se com o seu grande mea culpa, exumando das catacumbas pletoras de cineastas, entre os quais Carpenter e alguns dos seus camaradas de armas.

Jean-Baptiste Thoret

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É verdade que esquecimentos terríveis sempre existiram, os cahiers da época de ouro só bastante tarde é que reconheceriam Ford como um dos maiores entre os maiores, por exemplo. É sempre um exercício estimulante esta coisa de tentar adivinhar os exageros e os esquecimentos desta revista, que digam o que disserem, continua a ser a mais discutida. Burton, Shyamalan ou Gray aparte, Mann continua a ser o grande mistério. Mais ou menos desprezado na américa, onde não aquece nem arrefece, continua também em frança a não sair das águas mornas. Para cada elogio de Assayas ou Resnais, uma estrelinha de Frodon e um texto escrito à pressa. Parece-me impressionante que mais ninguém se atire a uma obra contemporaneamente tão fascinante e inovadora, tão deslocada de tudo o resto. Por isso é que Jean-Baptiste Thoret continua a ser alguém tão singular na escrita cinematográfica - Carpenter, Romero, Hopper, Argento, Leone, Cinema americano dos anos 70 e Cimino em paticular, uma festa.

Víctor Erice e o prazer da redescoberta como espectador, num daqueles filmes que ele resolve fazer a cada dez anos.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Tão lacónico e altivo como o Wyatt Earp vivido por Joel McCrea no "Wichita" de Jacques Tourneur, só mesmo a maneira como o realizador utiliza o scope, a forma como esgalha aquelas composições. Não dá para acreditar, é algo desmedido. É tipo o Fuller no Japão ("House of Bamboo") só que no oeste. Estes homens realmente faziam obras-primas em qualquer género. Clássicos e modernos aparte, este é bem capaz de ser aquele single western que eu mais gosto.