por João Bénard da Costa
I was born when she kissed me
I died when she left me
I lived a few weeks
Wile she loved me
(poema dito no filme por Dixon Steele (Humphrey Bogart)
“Sempre achou que toda a gente o queria lixar.
Na verdade, ninguém o queria lixar. Mas quando
alguém acha que toda a gente o quer lixar, acaba
Sempre por haver uma pessoa que faz esse papel.”
(Rodney amateau, conselheiro técnico do filme,
A propósito de Nicholas Ray)
Segundo e último filme de Micholas Ray para Humprhey Bogart e com Humphrey Bogart, IN A LONELY PLACE é um dos cumes da arte de Ray, umas das suas obras mais trágicas, mas excessivas e mais confessionais. Ao longo de toda a vida, sempre que lhe fizeram a sacramental pergunta sobre os filmes de que mais gostava, inclui IN A LONELY PLACE, a par com REBEL WITHOUT A CAUSE e THE LUSTY MEN. Frequentemente juntou-lhes THEY LIVE BY NIGHT e JOHNNY GUITAR.
“Movie on the movies”, IN A LONELY PLACE só singularmente se inscreve nesse género, como só singularmente se inscreve no de filme negro que também o é. No fundo, é um filme que escapa a qualquer categoria. “Feito de ambiguidades e silêncio” - como escreve Eisenschitz – “está tão longe das formulas de qualquer género como das afirmações sociológicas”.
Ainda estamos no genérico e já a imagem se fragmenta, com os olhos de Bogart enquadrados no retrovisor de um carro, que avança a grande velocidade. Ao primeiro sinal de stop percebemos que estamos em Hollywood e que Bogart é um argumentista famoso (sequência do dialogo com o casal do carro que se detém ao lado do dele). Famoso, mas na mó de baixo, como a sequência seguinte – no famoso restaurante Paul – nos vai mostrar. Meia dúzia de apontamentos e Hollywood anos 50 está dado: a menina do vestiário que têm uma história para um filme; o agente; o velho actor Charlie Waterman, declamando Shakespeare. Há novos ricos (Júnior, que troça do actor e lhe deita as cinzas no copo) e há a raiva de Bogart contra esta nova gente, explodindo na segunda sequência violenta do filme. Antes, já tínhamos visto miúdos a pedir autógrafos e a tentar distinguir nobody de somebody.
Nessa fabulosa sequência, a identificação Bogart-Ray é claramente sublinhada. Como Ray, Bogart diz que não faz filmes de que não gosta, que não faz filmes por acaso, “just another Picture”. E o noble prince, como lhe chama o actor, admite os seus fracassos, mas não admite que gente sem talento se meta com quem o tem ou teve. Se há nessa sequência um assombroso retrato mitológico de Bogart (os copos, aquelas mãos, a violência contida, a soberana arrogância) há também um auto-retrato de Ray, mais até projectado na sua imagem futura do que naquela que então tinha. Alguém se refere à personagem como a “um homem doente” e essa expressão engloba-os a ambos. Dixon Seetle é Bogart (e que Bogart!) mas é Ray, também.
Dez anos depois, Fereydoun Hoveyda numa critica a PARTY GIRL (e num texto que Nick particularmente amou) dizia haver sempre “nos heróis de Ray, um sentimento de inferioridade compensado por uma procura frenética de superioridade e domínio sobre os outros (…) um forte sentimento de culpabilidade, uma ´falha´que os personagens sentem como castigo e cuja responsabilidade acabam por atribuir ao mundo inteiro”.
Exemplificava com Mason no BIGGER THAN LIFE, com Dean no REBEL, com Derek no RUN FOR COVER, com Robert Taylor no PARTY GIRL. A lista podia ser muito mais extensa. E “o exemplo mais alucinante”, para citar a expressão do crítico, talvez não seja Mason, mas precisamente Bogart em IN A LONELY PLACE.
É porque na duvida de si próprio e porque se sente cercado na selva (na selva de Hollywood, neste caso) que Boggie assume essa violência frenética que o irá perder.
Ao princípio perde Mildred, a menina do vestiário que sonhava com grandezas e que estava disposta (apesar das aparências) a vender-se ao primeiro. E o filme dentro do filme surge na noite fatal no apartamento de Dixon. O filme que ela lhe conta e Bogart já não ouve (nem nós ouvimos bem, porque à narração dela se sobrepõe a voz off de Bogart, a pensar como se pode ver livre daquilo) é o filme que vamos ver, com pouquíssimas alterações. O “estúpido argumento” contado ao argumentista é o argumento de IN A LONELY PLACE num raccourci dramaticamente prodigioso, porque nem nós nem ele (Bogart) lhe damos, na altura, qualquer importância.
A atenção (nossa e dele) já está centrada na vizinha, que, ainda no pátio da casa, vinda de fora do enquadramento, se interpõe entre os dois, de casaco claro, mãos nos bolsos, atravessando-se. Vemo-la, depois, à janela, ouvindo os helps da pobre Mildred, demasiado excitada com a sua própria narrativa. E assim surge do escuro e em claro, Gloria Grahame.
Impossível aqui não recorrer ao confessionalismo. Sabe-se que os estúdios queriam para esse papel Ginger Rogers e que Ray jogou tudo em Gloria. Os patrões pensaram que era cunha familiar, já que a actriz era a esse tempo mulher de Nick. Só não sabiam que o casamento estava a acabar (divorciaram-se logo a seguir ao termo das filmagens) e já nem juntos viviam. Ray escolheu Gloria não para consagrar a mulher, mas para um terrível ajuste de contas, na dimensão mais apaixonada e demencial de que o cinema conservará memória. IN A LONELY PLACE é também um psicodrama e dele vem uma carga emocional que varre o filme da primeira à última imagem.
O encontro dos protagonistas ocorre na esquadra da policia, sob o signo do falso amigo, antigo camarada de armas, agora suspeitoso que Dixon tenha algo que ver com a morte de Mildred (morte que, aliás, nunca será explicada no filme, numa elipse significativa). Laurel volta as costas a Dixon e, nunca se dirigindo a este (num plano prodigiosamente encenado) é, na verdade, sempre a Dixon que se dirige: ao contrário do que este diz, não vestia um négligé na noite da véspera: referindo-se-lhe, comenta: “I like his face”.
Há copos de papel por onde se bebe café e uma imensa sujidade. Sujidade do décor que rima com a de quase todos os personagens: o capitão da polícia, aparentando simpatia, mas já com convicção feita; um amigo que desconfia; uma mulher que quer engatar um argumentista célebre para deixar de ser actriz em low budjet pictures. O único personagem limpo, o único que confia, é o violento Dixon, que acredita nos piropos de Laurel e no tom fraternal de Brud. “She likes my face”, diz, contente consigo próprio.
Na manhã seguinte, desenvolvem-se as pistas do amor e da traição. Laurel começa a apaixonar-se por Dixon, mas isso não a impede de continuar a desconfiar dele e de continuar a fazer jogo duplo com a polícia.
Em oposição – nessa vertiginosa oposição dos filmes de ray – há o tão belo personagem do agente, o único capaz de amar até ao fim Bogart. “My agent, My Alibi”. Essa apresentação corresponde profundamente a uma e outra coisa? Could be, como em THEY LIVE BY NIGHT.
A partir daí, décor e espaço, fundem-se e dividem-se cada vez mais. Laurel vem viver para o apartamento de Dixon (o plano da cama e das almofadas), mas muita coisa se passa fora do olhar de Dixon, em off de Dixon. Muita coisa se passa nas costas de Dixon, como aquele plano fabuloso sobre as costas nuas de Gloria Grahame, em que a gorda massagista (numa relação mais que ambígua) reforça a distância entre os dois.
Há muitos beijos, há diálogos prodigiosos (“I was looking for someone for a long time. Now, I Know her name, I Know how she loves how she looks”). Mas o cerco aperta-se à roda de um homem, ele também, apesar das aparências, “novo demais na terra”, dum homem cujo tremendous ego era apenas o reverso do amor imenso que tinha para dar e jamais recebera. Outro stranger here, destruído por quem é incapaz de reconhecer e acreditar.
Soará depois uma canção (“Never be my love, till you”) e o till you fica a ressoar muito tempo nesse “momento perfeito”, com o fabuloso beijo de Gloria Grahame. Momento perfeito que se prolonga na sequência da praia, no piquenique a quatro, de noite, até Dixon descobrir que todos o traíram e todos lhe deram o beijo de judas.
Um dos mais geniais momentos do cinema de Ray é a sequência seguinte: o tão vertiginoso quanto silencioso regresso da praia, naquela louca velocidade do carro de Bogart. Laurel ainda esboça o gesto da oferta do cigarro, mas não têm resposta. Ou tem-na: na agressão brutal ao outro automobilista, que mais reforça o medo e a suspeita dela e mais tudo perde em total negrume com as sobras a tomarem conta de tudo. Todo o barroquismo de Ray, toda a arte de Ray, está nessa sequência capital. Como está no seu desfecho. Fim dos travellings, chegada a casam, plano fixo e Dixon a abrir a boca pela primeira vez: “I´ll take that cigarette now”. E, em grande plano, diz o poema que serve de epígrafe a este texto e faz Laurel repeti-lo. Inadjectivável? Precisamente.
Mais tarde, pode Laurel confidenciar à mulher do polícia que tem vergonha do que sente. As palavras terríveis já foram ditas. “I love him but i´m afraid of him. He acts like a maniac” (palavras que tanto se podem aplicar a Bogart como a Ray). A câmara avança até um grande plano da cara dela e há o raccord com o relógio. Já é só uma questão de tempo.
Tempo da inesquecível sequência da toranja (a faca espetada): “Numa boa cena de amor nunca se deve falar de amor. Deve ser como esta, assim, eu a preparar toranjas e tu, sentada aí, meio drogada, meio a dormir”. O actor é o realizador, ou o realizador é o actor?
Tempo do café a subir, dos últimos beijos e das últimas mentiras.
Tempo da prodigiosa conversa de Laurel com o agente: “If you love him, you must trust him, bad or good”. E só ele percebe as consequências horríveis da mentira de Laurel, quando fingira aceitar casar com Dixon. Atá ao fim, esse fabuloso personagem selará essa confiança, mesmo depois de uma sova injusta, de óculos partidos e olhos feridos, no mais belo dos apertos de mão, numa casa de banho.
Tempo de um actor continuar a recitar HAMLET e a chamar “sweet prince” a Bogart e a beijar a mão da princess que não era noble nem sweet.
Tempo de tudo se consumar, com desculpas e descobertas, como se não se tivesse tratado de destruir um homem e a sua última possibilidade.
Á janela, nesse permanente roupão debruado de pele, a mulher que dormia sem pijama, Gloria Grahame, em grande plano, repete, de olhos rasos de lágrimas, os últimos versos do poema: “I lived a few Weeks”. Em plongé Boggie afasta-se. Good-bye Dick. Ou good-bye Nick?
Chego ao fim e reparo que quase me limitei a lembrar-me do filme. Tantas vezes isso me acontece com Nick Ray. O que fica são as memórias dos planos, as memórias dos diálogos, a memória da mise-en-scène, a memória dos actores. E as saudades imensas de tudo isso, sempre a apetecer ver outra vez, para perceber melhor como é feito, como é que se conseguiu e sempre a perdemo-nos (ou a encontramo-nos) naqueles personagens, naquele décor de estátuas e fontes, de escadas e estradas, de mar e de céu.
Filme “entre a espada e a parede” como disse Eisenschitz, a um passo do abismo, do caos? É verdade. Mas nisso mesmo reside, como em todos os grandes filmes de Ray, o seu imenso fascínio. Uma só falha, ou um só excesso e toda a estrutura se desmoronaria, de tal modo se articula em torno do insólito, de tal modo são tão frágeis os seus alicerces.
Mas nunca há esse passo em falso. Como nas grandes tragédias ou nas grandes confissões, a harmonia resulta da discordância e, como Nietzsche ensinava, a finalidade da tragédia e da arte em geral resulta da união de divindades opostas.
É muito difícil estar assim, tão sozinho, no lugar do mais geral (Hollywood, dos códigos e dos géneros) e do mais pessoal (a história mais intima). Tão difícil que é preciso ser-se genial para o conseguir. Quem não se convencer disso com esta obra, nunca mais se convence.
“Now cracks a noble heart. Good night sweet prince / and flights of angels sing thee to thy rest”. Não estou a inventar Shakespeare para cauções culturais. A frase está no filme e é dita pelo velho actor, esse personagem tão belo como, cuja última festa, também em IN A LONELY PLACE se interrompeu.
J.B.C
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