(...) Esse pai, o falso «Doc» (Paul McIsaac é antes um cirurgião da sociedade americana), volta a ser «convocado» como «alter ego» do realizador para percorrer, num périplo filmado, a Estrada nº 1 dos Estados Unidos, a mais importante do país nos anos 30, e que atravessa toda a costa leste, desde o Maine, na fronteira com o Canadá, até à Florida. A razão da busca parece ser evidente: qual a maneira de cruzar ainda a ficção, o documentário e a militância no final dos anos 80, depois do fim das utopias ter sido decretado? Kramer chamou Route One/USA ao seu filme e é esse imenso «rasgo na América», imenso também pela sua riqueza humana ao longo de 4 horas e meia de duração (...) Kramer gastou cinco meses na rodagem, um ano na montagem e utilizou uma equipa extremamente pequena: para além de Paul McIsaac, o próprio Kramer foi operador de câmara, Richard Copans alternou a produção com a direcção de fotografia e Oliver Schwob gravou o som. O que se descobre é surpreendente e invisível no cinema corrente: de «ghetto» em «ghetto», Kramer faz perder a noção de tempo (o tema do seu filme sempre existiu) enquanto revela, numa viagem em que cada encontro é um ponto de partida, a miséria que os Estados Unidos esconde, os seus «eternos exilados», dos hispânicos aos índios ou aos negros. O filme mostra as minorias e apresenta uma sociedade violenta, castigada pela política de consumo do país e permanentemente à margem, como o próprio trabalho de Kramer como cineasta. Trata-se de uma representação pessimista sobre um presente chamado «progresso» que, afinal, se tornou medíocre. A constatação é pesada mas é urgente conhecê-la.
Francisco Ferreira
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