domingo, 2 de março de 2008

Fantas Porto III

Boardin Gate, Olivier Assayas


«It's a thriller, I suppose. Not exactly your classic thriller but fairly within the framework of the genre.»

São palavras do próprio Olivier Assayas, aquando da montagem deste Boarding Gate. De facto é um filme que parece sempre fugir a qualquer designação, a qualquer género. Tão fugidio e escorregadio como as coreografias e os bailados da câmara.
Eu sei que em Portugal sou provavelmente uma das duas ou três pessoas a gostar do cinema do francês, homem que começou como critico dos Cahiers du Cinema, pela mão de senhores como Serge Daney ou Toubiana e que vêm fazendo um cinema pessoalíssimo.
Por aqui chamam-lhe exibicionista, fútil, cinema ultra desequilibrado (oh como eu gosto de filmes desequilibrados…)
Em França a coisa está mais partida a meio, há quem vislumbre um cinema eminentemente moderno, sempre a tocar em temáticas contemporâneas urgentes, quem fale da constante revolução estética/formal, da liberdade narrativa, etc…a outra parte usa os argumentos contrários.
Não me importo que assim seja, nem um segundo: considero Assayas como um dos mais fundamentais realizadores contemporâneos, e os filmes dele são para mim apaixonantes, tout court!

Claro que os temas são sempre os mesmos: as lutas e os males das grandes corporações, das empresas, os constantes vai e vem dos protagonistas, sempre em jet leg, a corrupção do meio, o crime, o sexo e a droga envolvente para aguentar tudo isto, e o que todo este jogo faz ao humano, ao seu sensível.
São estes os temas de Irma Vep, de Demonlover, mesmo de Clean; mas para mim isso não é problema, os grandes autores tão sempre no mesmo tema, já em Ford era assim; e o desequilíbrio narrativo? Que me interessa, não existe filme mais desequilibrado que O Acossado, com a tal cena no cinema de uns dez segundos combinada com a cena do quarto de mais de 10 minutos.
Aliás, para mim Assayas é hoje o mais fiel herdeiro de um impossível retorno a esses anos (a nouvelle vague Francesa). Passo a explicar: se há qualquer coisa que deixou marcas que nunca vão sarar, desde a leveza e experimentação técnica, na câmara, no som, na montagem, até a uma liberdade narrativa praticamente total – Assayas é tudo isto, hoje, mas ligado aos temas contemporâneos.
A tecnologia que enjoa, os jogos niilistas de poder, as drogas sobre os corpos para os manter de pé, etc…

Desequilibrado até à medula…e que maravilha, é de uma renovação formal e violentação sobre uma “mise-en-scène” que já é só de Assayas – já nem Mann se poderá referir – e que em vez de repetir o já feito apura, apura e violenta ainda mais.
Reparemos na fotografia e sua incoerência, por exemplo: a constante sub exposição, onde só conseguimos vislumbrar gestos, coisas a mexer, bem como a sobre exposição, os estouros de luz nos backgrounds ou sobre os corpos.
Bem como uma utilização das cores completamente ajustada á confusão e à velocidade a que anda hoje este nosso mundo e onde estas personagens estão inseridas. A câmara baila sobre estes homens e mulheres como se tivesse uma missão, uma função ou vida própria: captar tudo o que pode antes que o instante desapareça (tais são as convulsões) e daí que funcione como algo vivo, visceral, em alguns momentos outra personagem.

É sensorial sim, é tocante sim, pois todos sabemos que há um mundo assim, que há pessoas que não são definitivamente rotineiras. Há muita música de elevador (como diria Vasco Câmara), mas ela só acentua mais a agudez destas vidas, do que é necessário para os corpos não caírem – sim, é um mundo sempre há beira da ruptura.

A história é a um tempo simples e complexa e não gostaria de entrar muito neste campo: é uma mulher que andou com um grande empresário, que volta para lhe cobrar uma promessa – o que lhe permitirá mudar de vida, segundo ela – mas que trabalha ao mesmo tempo para outra corporação. Enfim, não sou bom em sinopses e deixo isto para quem o seja.
Fico-me pelas duas partes do filme que são ao mesmo tempo os dois mundos de Boarding gate.
A mais do que dúbia relação entre Argento (magistral de força ampliada e indecisão) e Madsen (muito bem como grande empresário que já teve melhores dias e que já se está um pouco a marimbar para a coisa) passada em França; e a de esta com o chinês Carl Ng que resvalará e terá sempre como horizonte Hong Kong.
A primeira é dotada de uma acalmia que chega a irritar, mas que é essencial e que fica como prodígio na obra do Francês. Serve para mostrar sentimentos e relações intimas a que não estamos habituados a ver no cinema, e que mesmo na vida só os entrevemos raríssimas vezes, numa ou noutra viagem, numa ou noutra ida a uma grande corporação.
É em França e tudo parece mais pacífico, embora o espectador saiba que do lado de fora, na empresa de Madsen, no seu telemóvel ou no seu portátil a loucura é incessante.
Quando a acção passa para o outro lado tudo adquire uma lógica mais de thriller intercontinental, uma lógica de série b portentosa, raivosa e visceral. E sabemos que a problemática: planificação/meios de produção/necessidade de improvisação foi fundamental e se torna prodigiosa: raras vezes a câmara à mão, a fragmentação da montagem, o pequeno e o grande ou as simples texturas como acelerador da acção foram tão magistralmente postas em cena.

Claro que Assayas conhece e domina os mecanismos do suspense e da expiação, mas a intenção dele é violenta-los – devido aos poucos recursos – mas também por opção puramente estética, formal: apanhar um mundo que existe mais ao menos na calada.
Se quisesse simplificar poderia dizer que se trata de um encontro sublime entre a lâmina cortante do suspense de Hitchcock, com a iconoclastia que não é só Nouvelle Vague mas que vai de uma linhagem entre Sam Fuller a Cassavetes, mesmo Scorsese, etc…
Cenas de antologia: a passada no apartamento de Madsen, e o espantoso final, embora pudesse referir qualquer cena passada em Hong Kong (ai a cena da discoteca).
Ultra erótico e ultra sensual é o ponto máximo do radicalismo do enfant terrible (só espeto aqui a palavra porque me faz lembrar Eric Cantona) como dizia a folha do Fantasporto, e por isso duvido bastante que estreie em Portugal.
Enfim, nunca se sabe. Fabuloso filme.

5 comentários:

Nuno disse...

Ainda não vi Boarding Gate, e não gostei de alguns filmes de Assayas (Les Destinées sentimentales, Demonlover, Clean), mas concordo contigo quando dizes que é um cineasta contemporâneo fondamental; Irma Vep é o exemplo perfeito de cinema pós-moderno. E também concordo quando falas dele como melhor representante actual das influências da Nouvelle Vague; Fin août, début septembre é a melhor prova disso.

José Oliveira disse...

mais um, não estou só,

Tks

Hugo disse...

Não, não estás. Desde que o Irma Vep me passou pela fuça, que fiquei fã.

Marlon disse...

Excelente..

Coloquei a cena final no youtube: http://youtube.com/watch?v=GcBfZqNE57o

Uma das melhores coisas que o Assayas filmou, na minha opinião.

José Oliveira disse...

Concordo, e depois fez-me arrajar e descobriri a musica dos sparks que eu nao conhecia...
Asia Argento com essa banda em back e uma navalha...não se pode pedir mais...