terça-feira, 25 de março de 2008

Cronenberg como no principio


O melhor texto escrito em Portugal sobre o filme. Ou seja: onde ficam de fora ideias como a de Vasco Câmara que o filme é um cruzamento entre o cinema dos Coen e Lynch ou a proposta de João Lopes sobre os medos e fantasmas do "império do Sul", que embora interessante, penso que não vai ao fundo da coisa.
Carlos Melo Ferreira foi ao ponto, á coisa (the thing), ou seja, Cronenberg continua onde sempre esteve, no mundo “temático de duplos e de metamorfoses”. Agora como no primeiro!
A mesma coisa para Eastern Promisses, evidentemente.
...

Toda a gente sabe que o canadiano David Cronenberg não é um cineasta banal, mas neste tempo de múltiplos e desvairados blockbusters, de grande espectáculo mediático e de grande espectáculo cinematográfico no cinema americano talvez nem toda a gente estivesse à espera de que ele, no primeiro filme que aceitou fazer nos Estados Unidos, se mantivesse ao nível dos seus melhores filmes e fizesse um filme americano típico.
No entanto, é isso que acontece em Uma História de Violência - A History of Violence, de 2005, e que estreou recentemente entre nós.
Das personagens à narrativa, passando pela planificação, estamos perante um verdadeiro filme americano e isso não pode deixar de ser resultado de intuito deliberado do cineasta. Ao protagonista, Tom Skall/Viggo Mortensen, chefe de família típico do interior da América, é dito em determinado momento: "Resolveste adoptar o sonho americano". E isso, que é verdade no contexto narrativo do filme, revela precisamente o carácter americano deste, até porque leva a que a referida personagem seja levada a entrar também no lado de pesadelo de um tal sonho.
Tenho para mim que, ao fazer este filme, David Cronenberg se manteve inteiramente fiel ao seu universo temático de duplos e de metamorfoses, na medida em que é nessa deriva de uma outra vida que o protagonista entra ao tornar-se quem é quando o conhecemos, com família, mulher e filhos. Só que, como em alguns dos mais modelares e violentos filmes americanos, designadamente da série B, do declíneo da era clássica do cinema de Hollywood, alguém, movido pela súbita notoriedade do protagonista, salta do seu passado para lhe vir lembrar que ele já foi outro antes de se ter tornado em quem é (estou a lembrar-me, por exemplo, de Contrato para matar - The Killers, de Donald Siegel, de 1964, um dos maiores especialistas
americanos da série B, e que era um filme belíssimo de um cineasta notável sobre um tema semelhante). Mas este é o lado narrativo do filme, que não atingiria o relevo que atinge se não fosse feito por David Cronenberg, o que faz com que este Uma História de Violência se torne simultaneamente um filme modelar e pessoal. É que, como disse, ao filmar nos Estados Unidos, o cineasta, mantendo-se fiel a si próprio, fez um filme americano, o que, se anteriormente, e até porque nunca aceitara os convites nesse sentido, poderia parecer uma contradição nos termos, se torna algo de inteiramente compatível e compreensível.
Se pessoalmente considero que este filme está ao nível do melhor que o seu autor nos deu até agora (de The Fly - A Mosca, Crash ou eXistenZ, por exemplo), é porque Cronenberg envolve-se completamente em fazer um filme frio e impessoal até ao nível da planificação e da direcção de actores, o que torna Uma História de Violência não só um grande filme, mas também um grande filme de entomólogo sobre a violência. Deste modo, o mais impessoal é também o mais pessoal. Se atentarmos, por exemplo, nas sequências de explosão da violência do pai e do filho, Jack Stall/Ashton Holmes, ou nas de sexo entre marido e mulher, Edie Stall/Maria Bello, ou nas sequências de simples relacionamento no interior da comunidade de que fazem parte, podemos dar-nos conta de como tudo aquilo é americano, especificamente americano, e simultaneamente Cronenberg puro e no seu melhor. Temos sempre, nesses e noutros casos, a distância justa e o ponto de vista justo, sob a aparência de uma secura formal que aqui está ao serviço, como
nem sempre acontece no cinema americano, de uma aguda análise, de um atento estudo de um microcosmos americano, sem complacência e sem concessões.
E o soberbo campo-contracampo final entre marido e mulher, que aparentemente vem reintroduzir uma ordem interrompida, ficará como um momento-chave deste filme e um dos mais assombrosos momentos de cinema a que me foi dado assistir em muitos anos. Terror, violência física e psicológica,
surpresa? Tudo isto está aqui presente, como costuma acontecer no cinema de David
Cronenberg mas de maneira diferente da habitual, já que ao serviço
de uma história que se quer realista e que nos transmite esse tremendo sentimento dos dias comuns subitamente postos em causa. Como em Alfred Hitchcock, precisamente. Como se diz, e bem, tudo se liga e nada é por acaso, como este mais recente e de novo admirável filme de David Cronenberg exemplarmente demonstra, até pelo seu estilo nada acidentalmente específico.
Carlos Melo Ferreira, Cinema nº 36

5 comentários:

Luis disse...

Cinema venéreo????? Não fui eu de certeza...

José Oliveira disse...

foi qualquer coisa assim...peço desculpa, vou tentar corrigir, já agora se me quiseres dizer...não é nenhuma critica, como é evidente...

Cumprimentos.

Luis disse...

Não entendi como uma crítica... mas não gosto de ficar com louros que não mereço... Vou ver se encontro o texto. Mas de certeza que não falei de "cinema venéreo". Quando muito terei feito menção ao tempo do "horror venéreo", designação mais ou menos estabelecida para o período em que o Cronenberg trabalhou dentro duma lógica de "horror movie, série B, etc. Mas vou ver se encontro o texto, já agora quero tirar isso a limpo.

Abraço.

José Oliveira disse...

ahah...obrigado Luis, já o facto de passares pelo meu blog e ligares algum é uma honra,

agradecido

José Oliveira disse...

tens razão Luis, fica reposta a verdade.

Obrigado pela folha

Cumprimentos