O Moderno e o Arcaico
Assistimos a 98 octanas – titulo tão dispersivo como sugestivo – e deparamo-nos com o paradoxo mais fascinante com que alguns dos grandes mestres do passado e do presente souberam lidar com inigualável mestria, a saber: a coexistência dentro de um todo filmico de algo que poderemos considerar eminentemente contemporâneo ao mesmo tempo que sentimos estar presente uma maneira de fazer inegavelmente clássica, “desusada”, anacrónica mesmo.
No último Fernando Lopes a forma vem dos grandes clássicos, de Nicholas Ray por exemplo, e evidentemente passam por lá como fantasmas Antonioni ou Bergman e sempre o espírito rebelde e libertário da Nouvelle Vague francesa – "je m´apelle Ferdinand" dizia Belmondo a Anna Karina no “Pierrot Le Fou” de Godard, entre Rogério Samora e Carla Chambrel haverão tiradas idênticas.
E estas evidências aparentemente antagónicas não estão de modo algum separadas, não caminham num paralelo distanciado, antes cruzam-se, atropelam-se, sobrepõem-se uma á outra, como secantes que se atraem e repelam…
É o que mais impressiona por exemplo em Clint Eastwood nos últimos filmes – e não só poderemos dizer – em que o seu fulgurante classicismo “Fordiano” ou “Hawksiano” é rasgado por temáticas urgentes e eminentemente contemporâneas.
O Velho e o novo, Samora e Chambrel, a forma e os temas, a conformação e a rebeldia.
Se a personagem de Samora – o “velho” – se encontra resignado pelo novo, pelo contemporâneo, espécie de alienação nascente, precisamente, deste nosso “novo mundo”, perdido nos novos mapas das relações e da vivência moderna, á deriva num espaço e num tempo que parece fugir-lhe e esmagá-lo – sentem-se laivos niilistas – já a personagem de Chambrel – “a nova” – é ao mesmo tempo tocada pela rebeldia da juventude, pela fúria de viver, ao mesmo tempo que esconde em si um espectro de medo enraizado num passado…e por vezes estes contrários vão ser ambíguos, de fronteiras difíceis, impossíveis mesmo, de delimitar e de reconhecer.
E é ora pelas estradas, pelas estações de serviço e hotéis, pelas zonas em que o tal “trânsito moderno” se desloca alucinantemente, ora pelos interiores desertos onde a população já passou que o par em fuga vai querer que algo aconteça – qualquer coisa aconteça, apetece dizer.
São todos estes movimentos – geográficos e humanos – as pulsões que fazem o filme vibrar, que o carregam de vida e de sinais proximamente assustadores.
E todo o artificial que o filme produz: a luz divina, os cenários estáticos, espécie de natureza cristalizada, como nos clássicos ou mesmo a dimensão policial incutida pela perseguição, tudo vai no sentido de melhor convocar o deslocamento das personagens.
E é evidente que Fernando Lopes não realiza contra os novos riquismos cinematográficos ou televisivos (embora o filme se transforme, feito, anacrónico) não vai contra a América nem contra o dinheiro, o filme contêm esta forma e este ritmo – que o lugar comum dirá lento e cansativo, mas que sem duvida caminha á velocidade da luz, tal é o afloramento dos sentimentos – porque só pode ser mesmo assim para o realizador, a sua visão é tão definitivamente autoral que só a ele lhe diz respeito o trabalho sobre as matérias em questão.
Isto é evidente na cena em que Lopes aparece na pele de um falsário desconfiado e comoventemente pacificado, com a clarividência e lucidez de um “velho”, precisamente, que já nada tem a justificar ou a temer, que aceitou o seu ser, o seu cinema fluí com aquela pureza luminosa e crepuscular que só depois de muita pedra partida é possível atingir – e vem-nos ai á cabeça Eastwood mais uma vez, mas também João César Monteiro seu velho comparsa, sem duvida.
“Lá Fora” foi o filme anterior de Fernando Lopes. Neste 98 octanas já estamos quase sempre lá fora e os dois filmes funcionam como as duas faces de um mesmo tempo. Em “Lá Fora” estávamos cercados pela imponência do betão e das câmaras de vigilância, em 98 octanas já estamos a céu aberto, mas a densidade e o ar deste tempo continuam carregados e a assombrar irremediavelmente as relações.
O desespero e o pessimismo de Antonioni, o arrebatamento lírico de Nicholas Ray, mas o filme nunca se reduz a mero gesto cinéfilo ou a citação inconsequente, a liberdade e abstracção do argumento de João Lopes e de Fernando Lopes tratam de elevar o percurso a algo de essencial e necessário, espécie de roteiro pelas flutuações interiores – a viagem valeu a pena.
Têm-se dito, com a altivez de quem tudo quer saber, que o filme é completamente fechado em si mesmo, auto-indulgência artística de quem se toma por artista – mas é o filme mais livre e aberto do mundo, não vende nada a ninguém, nada impinge a ninguém e cada um compra o que quiser.
Que o filme pareça ir a lado nenhum e a todo o lado ao mesmo tempo poderá ser o mais imediato paradoxo a que a “demarche” se propõe e que o dialogo final poderá explicitar, mas no fluxo acelerado e calmo de todo o filme não será seguro termos alguma certeza.
O amor ainda pode acontecer a estes ritmos? Perguntaria o realizador. O filme não se atreverá a responder. Que alternativa? Ficarmos com estas sensações e com estas imagens que são magníficas.
Texto escrito á época (sem qualquer pretensão, o filme continua a bater.)
Hoje no Fantasporto: Aula Magistral, 17.15 h
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