"À sua visão, muita gente esbarrou contra um suposto anacronismo do autor: manter os valores da Princesa de Clèves, no filme interpretada por Chiara Mastroianni, no final do século XX, retirando-os do contexto da moral dominante da nossa época. Que uma jovem de hoje se recuse a qualquer contacto físico com o homem que ama por fidelidade às promessas de um casamento sem amor e à sua honra de mulher, eis o que pareceu ou artifício retrógado, ou visão só possível a um homem de 90 anos. Agravada pelo facto da recusa se manter depois da viuvez (como se um segundo casamento fosse ainda traição ao primeiro marido) e da paixão ter por objecto (ou por sujeito) um cantor "pop", certamente o último a poder aceitar semelhantes concepções da castidade e da virtude.Improvável que se apaixonasse por um cantor como Pedro Abrunhosa? Mas esse cantor, que praticamente nunca fala, se veste sempre de preto, e nunca tira os óculos escuros é - ou pode ser - uma visão da morte. Nos concertos dele - e com concertos dele começa e acaba o filme - o que predomina é uma atmosfera de orgia negra, para não dizer uma visão infernal, de que ele é simultaneamente sacerdote e exorcista. É a mão morta quem dita a sua lei de morte à mão e ao corpo de mulher que vão continuar a viver. E é em obediência a essa lei de morte (reforçada pelo último diálogo com o marido moribundo) que Mme de Clèves se proíbe para todo o sempre qualquer contacto com o cantor. Quando este escolhe para viver a casa em frente da dela (permitindo à nossa visão, um dos momentos mais belos da obra de Oliveira) uma sinalização avisa: "proibido estacionar". E Mme de Clèves foge pela última vez, dessa como que sombra dela, que, do outro lado dela, tudo ouve e tudo sabe, mesmo o que era suposto nunca ouvir e nunca saber.
Em A Carta livre adaptação do romance clássico de Mme De Lafayette, La Princesse de Clèves, o destino final da protagonista é exposto numa longa carta (razão de ser do título da obra) que Mme de Clèves escreve a uma sua amiga freira e que esta lê em voz alta.(...) Um texto que, mais do que todos os escassíssimos diálogos do filme, nos revelam o "interior" da protagonista.
Se todos os amores se frustram, se todos os amores são de perdição, é porque homem e mulher não realizam, nem podem realizar, a sua aspiração a serem uma só carne e uma só alma. (...) essa concretização (essa materialização) retiraria esse amor do plano absoluto e inalcançável em que sempre o colocara. O que conta é o amor, não os actos desse amor, como defendiam os jansenistas, de cuja interpretação da Graça Oliveira singularmente se aproxima".
João Bénard da Costa, Manoel de Oliveira: a magia do cinema, in Revista de Occidente, 1994
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